Há sessenta anos

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Em 1963, sessenta anos passados, eu tinha 16 anos de idade. Morava em Padre Miguel, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Estava atrasado nos estudos por só ter ingressado na escola aos nove anos. Em 1963, eu cursava o terceiro ano ginasial. Comecei o ano passando férias em Meaípe, Espírito Santo. De manhã, eu mergulhava com equipamento para admirar o fundo do mar. De tarde, eu excursionava pelas redondezas. De noite, eu exibia filmes num pequeno e primário projetor para alegria geral de crianças e adultos que residiam no local. Meaípe não passava de uma colônia de pescadores. Bem diferente do que é hoje.

Lembro que, nessas férias, senti saudades de um rádio que me permitisse ouvir música erudita. Eu já amava as composições de Brahms e senti vontade de ouvir sua primeira sinfonia. Na volta, comecei o ano letivo. Logo, senti que a escola era pouco para mim. Eu queria muito mais do que ela me oferecia. Eu não tinha clareza de exatamente o que eu desejava. Eu queria muito. Gostava de ciências biológicas, de humanidades e de artes. As disciplinas que mais me atraíam eram português, história e geografia. Mas era pouco.

Eu queria ir além do que a escola me oferecia. Comecei a ler por minha conta. Ao terminar as tarefas de casa, eu ia brincar com os companheiros de rua. Notei uma mudança estranha. Comecei a observar as brincadeiras praticadas e a tomar nota delas. Mais tarde, esses apontamentos serviram para redigir artigos sobre cultura popular infanto-juvenis. Na época, falava-se “folclore”.

Meus questionamentos continuaram. Cheguei ao ponto de não saber mais o que desejava. Aquilo não era depressão, mas confusão mental. Não era depressão por não dar conta do que exigiam de mim. Não me exigiam nada. Lembro que meu pai nem sequer exigia que eu estudasse. Ao final do terceiro ano ginasial, eu não tinha mais tanto desejo pelo conhecimento. Mergulhei num conflito. Se optasse por música, eu deveria renunciar a tudo para só me dedicar a ela. Isso implicaria em esquecer línguas, literatura, artes, história, ciências naturais. Se optasse por história natural (curso ainda existente que abordava as ciências naturais da geologia à biologia), eu enfrentaria o problema de lidar com sangue, algo que ainda hoje me causa pânico.

Cursei o quarto ano nessa confusão. Abandonei o colégio no início de 1965. Passei três anos sem estudar. Fui boy, soldado e bancário. Voltei ao estudo com 20 anos. Eu já não tinha tanta pretensão. Era preciso concluir o ensino médio. Mudei-me para Campos no início de 1970. Optei por história sem nunca abandonar meu amor pelas artes, sobretudo pela música, e pelas ciências naturais. Com história, o mundo foi se acertando. Minha ansiedade diminuiu. Em ciências naturais, eu podia muito bem estudar taxonomia, botânica e paleontologia, como faço até hoje.

Os anos se passaram muito rapidamente. Hoje, estou com 76 anos. Tenho filhos e netos. Nunca pensei que minha vida não se resumiria a mim apenas. Aposentei-me em 2011, depois de 40 anos em sala de aula. Nesse tempo de trabalho, fui obrigado a guardar meus projetos pessoais num armário. Por mais interessante que tenha sido o magistério para mim, não me sobrava tempo para estudar e escrever como eu desejava.

Hoje, dedico meu tempo a ler, estudar, excursionar e escrever. Nunca vivi uma fase tão produtiva e tão alegre. Lamento apenas que tenha de morrer. Meus planos se multiplicam. Nunca poderei dizer, como Toynbee, que tenho uma agenda com itens definidos a cumprir. Sempre que cumpro um, algum projeto novo aparece. Com ele aconteceu o mesmo até sua morte.

Olhando para 1963, concluo que não vim a esse mundo a passeio. Desde criança, sou interessado por aquilo que me cerca, mesmo antes de saber ler e escrever. O rio que passava em frente à minha casa me fascinava, assim como a ilha que ficava na outra margem com sua vegetação pujante. Bem novo, algumas plantas e animais me encantavam. Com nove anos de idade, comecei a me interessar por música erudita.

Minha vida atual é alegre. Não direi feliz porque a felicidade é um estado de euforia que estressa. Mas algo não vai bem. Não é possível ser realizado nesse mundo. Não consigo ficar diante de uma televisão ou passar um tempo sem fazer ou pensar em nada. Noto que estou desenvolvendo uma relação compulsiva com o trabalho. Tenho uma curiosidade insaciável.

Mas começo a perceber que meu tempo passou. Formei-me num mundo analógico e confesso que o mundo virtual das redes sociais me parece muito pobre. As pessoas se divertem com qualquer bobagem. Não me sinto ameaçado pela inteligência artificial, mas sei que ela é um perigo para o mundo do trabalho. Saudosismo? Nem tanto, mas não é possível trocar o mundo analógico pelo mundo virtual. Vivo uma aventura. Vejamos até onde isso será possível sessenta anos depois de 1963.