Pegada de carbono nos rótulos: transparência e ação climática

Quem estiver à frente da regulação vai conquistar a confiança do consumidor.

Guettyimages

Nos próximos meses, dezenas de milhares de pessoas em mais de 300 refeitórios no Reino Unido e na Irlanda vão poder escolher seus pratos pensando não só na comida mais gostosa ou mais saudável, mas também no tamanho da pegada de carbono deixada, da fazenda até a mesa. Os usuários desses refeitórios vão encontrar as informações necessárias bem explícitas nos cardápios.

Iniciativas do tipo, para deixar bem visíveis as emissões de CO2 associadas a um produto ou serviço, vêm aparecendo em vários setores e países, inclusive o Brasil. Isso acontece por causa de duas forças principais.

Uma é o avanço da transparência – incluída no “G” do ESG. No passado recente, o consumidor nem sonhava em dispor de tantos detalhes sobre cada item que compra. Hoje, encontramos informações sobre eficiência energética de eletrodomésticos, uso de animais no desenvolvimento de cosméticos, conteúdo nutricional de alimentos, materiais empregados nas roupas, locais de fabricação, condições de troca, conservação, reparos, validade, durabilidade e muito mais, em rótulos, embalagens, sites, apps.

A cada novo passo rumo à maior transparência, empresas que souberam avançar no momento certo se mantiveram à frente da regulação e conquistaram a confiança do consumidor.

A segunda força é a urgência climática. Consumidores e empresas querem e precisam reduzir suas emissões de gases causadores de efeito estufa (GEE). E um dos caminhos para as empresas engajarem seus consumidores é apresentar a pegada de carbono dos seus produtos.

Explicando…

pegada de carbono de um produto pode ser apresentada com diferentes recortes: “do berço à prateleira”, quando são contabilizadas as emissões da produção até o momento da compra; “do berço ao túmulo”, quando inclui também o descarte; ou “do berço ao berço”, para os produtos com alto índice de reciclagem.

Também é possível mostrar as emissões de etapas específicas, como “fabricação” ou “transporte”.

É preciso indicar se a pegada indicada é por peso, volume, unidade ou alguma outra medida. Uma forma comum de apresentar a pegada de carbono é algo assim: “1,1 kg de CO2e por unidade”. Traduzindo: uma unidade do produto está associada à emissão de 1,1 kg de carbono – ou o equivalente em carbono para outros gases do efeito-estufa.

Idealmente, essa pegada de carbono já vem diminuindo e vai encolher mais. É hora de compartilhar isso com o mundo.

Divulgar faz mesmo diferença?

A ideia de cada empresa divulgar a pegada de carbono de seus produtos é criar um círculo virtuoso. Com essa transparência, os consumidores conscientes podem escolher melhor e direcionar o mercado.

As empresas empenhadas na mudança, por sua vez, conseguem pressionar os parceiros, diferenciar-se da concorrência, formar mais consumidores conscientes – e engrossar esse movimento (também vem por aí uma pressão adicional de órgãos reguladores. Tratamos disso mais abaixo). Não é pensamento positivo. Existe uma boa dose de ciência para apoiar esse esforço.

Só rotular um produto não impede a venda de itens poluidores, mas cria uma pressão saudável, na cadeia de valor inteira, para que cada um faça escolhas melhores.

As ciências comportamentais chamam essa estratégia de “nudge”, um empurrãozinho na direção certa. É um jeito bem moderno, em políticas públicas, para fazer o cidadão economizar água ou facilitar o trânsito, por exemplo.

Sodexo britânica, responsável pelos 300 refeitórios do caso que contamos no início do texto, encomendou um estudo sobre o efeito de rotulagem antes de adotar a iniciativa. O trabalho incluiu entrevistas com mais de 2 mil adultos no Reino Unido e ficou pronto em novembro de 2023.

Segundo a pesquisa, uma em cada cinco pessoas procuram alimentos e lugares para comer que ofereçam informações úteis no esforço de cada um de reduzir sua pegada ambiental. Essa parcela de consumidores conscientes dobrou, para duas em cada cinco pessoas, na faixa mais jovem, dos 18 aos 24 anos de idade – sinal de uma tendência. Entre os entrevistados, 28% concordaram em pagar mais, dentro de limites razoáveis, por alimentos de “baixo carbono” e em lugares para comer que ofereçam opções de “baixo carbono”. E, novamente, surgiu um sinal de tendência: essa parcela foi bem maior, de 47%, na faixa mais jovem, dos 18 aos 24 anos de idade.

A fabricante norueguesa de fertilizantes Yara encomendou uma pesquisa sobre o tema na Europa inteira, em 2023, e a conclusão foi que três em cada quatro europeus querem pegadas de carbono bem visíveis nos rótulos dos alimentos.

Oportunidades surgem com novos comportamentos e demandas dos consumidores. Essas pistas para as empresas mais antenadas vêm se multiplicando faz tempo. O efeito da rotulagem de carbono sobre decisões de compra já foi mostrado por estudos acadêmicos, como um da Universidade de Tecnologia de Sydney, na Austrália, de 2019, com latas de sopa, e outro do Departamento de Psicologia da Universidade de Wurzburgo, na Alemanha, de 2022, com cardápios de restaurantes.

Para os empreendedores e gestores dispostos a testar iniciativas assim, a oportunidade não fica só nas vendas. Em 2022, um estudo coordenado pela Universidade Oxford Brookes, revisou várias pesquisas anteriores sobre os efeitos dos rótulos de carbono, não só no setor de alimentos. A conclusão dos autores: empresas que tomam a iniciativa da rotulagem podem influenciar a seu favor não apenas os consumidores, mas também suas cadeias de suprimentos e os órgãos reguladores.

Muitas empresas estão adiantadas nessa conversa – e dá para aprender muito com o que elas já fizeram.

Quem já deu esse passo?

Empresas criativas e empenhadas na causa ambiental vêm usando essa novidade de diferentes formas, de acordo com sua estratégia e público.

  • No Brasil, a fabricante de bebidas à base de aveia Nude criou a iniciativa #mostrasuapegada, em 2022. As emissões ficam explícitas na embalagem dos produtos e a Nude detalha o assunto em relatório. O objetivo era envolver na conversa diferentes companhias e setores. Até abril de 2024, outras 28 empresas haviam aderido, incluindo Hering, Grupo Malwee, Movida e Natura. Pelo menos 10 empresas começaram a calcular a pegada só para participar. O Sistema B e o Instituto Akatu, entre outras entidades, apoiam a iniciativa. “Queremos dialogar com o consumidor que não entende do assunto e com o que não se importa”, diz Mariana Malufe, diretora de Sustentabilidade da Nude. “Inventário com xis mil toneladas de carbono não aproxima o consumidor. Nosso grande intuito é trazer a discussão climática para o dia a dia”. Nos EUA, a Oatly, que atua no mesmo segmento de bebidas à base de aveia, adotou a novidade em seus rótulos somente em 2023.
  • No mundo, uma das maiores experiências em andamento é conduzida pela L’Oreal, que começou a rotular alguns produtos para cabelo da marca Garnier na França, em 2020. Em 2023, os rótulos chegaram a produtos para cabelo, pele e corpo, de cinco marcas, em 36 países (o Brasil ainda não está incluído). A L’Oreal é um colosso com faturamento superior a 40 bilhões de euros e usou o recurso de forma bem abrangente: os rótulos vão compactando cada vez mais informação, incluindo pegada de carbono e pelo menos mais sete questões socioambientais importantes. Nos EUA vão além e incluem mais 13 fatores, de reciclagem a impacto na biodiversidade.
  • A fabricante de equipamentos esportivos Asics começou a indicar a pegada de carbono em alguns de seus tênis em 2023. Este ano vai aproveitar a Olimpíada de Paris para exibir seu esforço em escala global. As emissões estarão estampadas em cada item de vestuário da equipe do Japão (as emissões desse conjunto de equipamentos caiu 34% desde os Jogos de 2020, em Tóquio, segundo a Asics).
  • Danone escolheu outro caminho, menos informativo e ainda mais simples. Em vez de divulgar a pegada de carbono, coloca o selo de “neutro em carbono” nos produtos que conseguiram esse status, de acordo com uma avaliação externa, conduzida pela Carbon Trust.
  • A Samsung também prefere divulgar certificações, em vez de apresentar um número quantificando a pegada de carbono. Os selos “CO2 Measured” e “Reducing CO2” indicam, respectivamente, 1) que as emissões são medidas e 2) que as emissões são medidas e caem continuamente ano a ano (sem contar compensações de carbono), ambos de acordo com verificadores externos, como a Carbon Trust e a TÜV Rheinland. Até o fim de 2024, mais de 60 modelos de equipamentos, principalmente TVs, terão selos.
  • Concorrentes também podem adotar juntos a novidade. As redes de supermercados britânicas Co-op, Morrisons, Sainsbury’s e Tesco começaram, em 2022, a uniformizar as informações sobre pegadas de carbono de seus produtos. Os dados ficaram disponíveis primeiro na internet e os supermercados avaliam como levar a rotulagem para os produtos físicos nas lojas.

Como fazer um bom rótulo?

Esse campo segue aberto à experimentação, mas algumas referências a levar em conta são as seguintes:

>> Rótulos podem combinar informações sobre carbono em diferentes formatos – por exemplo, um dado absoluto, que apresente em termos quantitativos a pegada de carbono do produto, e um dado relativo, como ranking ou escala que compare o produto com a média de seu segmento ou com as alternativas.

Os pesquisadores Khan Taufique, da Universidade Oxford Brookes, do Reino Unido, e Kristian Nielsen, da Universidade Curtin, da Malásia, fizeram uma revisão de estudos sobre o tema e recomendam essa combinação.

>> Certificados e conquistas da empresa – como ter alcançado a neutralidade em carbono ou ter metas climáticas baseadas em ciência, as SBT – devem ser exibidos. Isso ainda diz pouco ao público em geral, mas atrai a atenção do consumidor mais bem informado e dos formadores de opinião;

>> A empresa pode começar a experiência por um único produto ou serviço e depois expandir a iniciativa;

>> O rótulo precisa deixar claro a quais partes do ciclo de vida do produto se refere. Pode-se pensar nos conceitos de “do berço à prateleira”, “do berço ao túmulo” e “do berço ao berço”; ou em etapas, como “colheita”, “processamento”, “transporte” etc.;

>> Na Coreia do Sul, muito avançada no uso de rótulos verdes variados, o consumidor ganha vantagens (como pontos no cartão de crédito) ao fazer a compra mais ambientalmente correta. Premiar a melhor escolha para o planeta acelera a mudança;

>> O rótulo pode ter informações além da pegada de carbono, mas é melhor evitar termos inexplicados. Na União Europeia, há um grande esforço para acabar com o greenwashing em rótulos, por causa do abuso de expressões como “eco” e “natural”;

>> Rótulos da mesma empresa e de produtos similares podem ter resultados muito diferentes. Evite pensar só no “consumidor verde”, alguém supostamente coerente o tempo todo sobre o impacto ambiental de suas ações. A empresa deve tentar entender também a lógica de cada “compra verde” . É esperado que, dependendo da situação, o consumidor preste mais ou menos atenção à variável ambiental. A recomendação é de Ken Peattie, professor de Estratégia e um dos pais do “marketing verde”;

Regras & ferramentas

O site Ecolabel Index oferece o maior repositório de selos ambientais: pelo menos 456 deles. Desses selos, pelo menos 34 se referem diretamente a emissões de carbono e, nesse grupo, pelo menos 18 podem ser usados por empresas de qualquer setor ou lugar (outros são de uso segmentado, por setor, atividade ou região).

Alguns dos selos mais conhecidos são o Carbon Trust Standard (atesta que a empresa mede, gerencia e corta emissões ano a ano) e o Carbon Reduction Label (atesta que a empresa calcula emissões de acordo com o padrão PAS 2050 e vai reduzi-las nos próximos dois anos). Ambos são da Carbon Trust, consultoria global sem fins lucrativos criada pelo governo do Reino Unido em 2001.

Várias jurisdições têm selos verdes bem regulados há anos. Alguns deles não tratam exclusivamente de emissões de carbono, mas incluem essa variável. Estão nesse conjunto o Ecolabel da União Europeia (criado em 1992), o Climatop da Suíça (2008), o Jemai no Japão (2012), a CEC (Carbon Emission Certification) e a LCPC (Low Carbon Product Certification) da Coreia do Sul (2012).

Há normatizações importantes para rótulos de carbono ainda em discussão em várias grandes economias. Estão nessa categoria:

  • No Brasil, o Projeto de Lei 3.701, de 2021, em tramitação na Câmara dos Deputados. O texto visa a tornar obrigatórios os rótulos de emissão de CO² durante todo o ciclo de vida do produto. O PL está na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, onde aguarda a designação de relator;
  • Na União Europeia, tramitam em estágio avançado duas importantes referências: a Diretiva Verde (Green Directive) e a Diretiva de Alegações Ambientais (Green Claims Directive ou GCD), aprovadas pelo Parlamento Europeu em janeiro e março de 2024. Elas não obrigam a divulgação da pegada de carbono de produtos, mas exigem explicações detalhadas para qualquer expressão ou promessa “verde” em rótulos e propagandas. A preocupação é combater greenwashing e defender o consumidor. Expressões como “climate neutral”, “natural” e “environmentally friendly” só serão aceitas se forem acompanhadas de explicações e evidências; selos de sustentabilidade só serão permitidos se forem criados por governos ou baseados em certificações oficiais. A previsão é que os rótulos precisem embutir a novidade até 2026. A GCD trata de afirmações mais elaboradas, como as promessas de que um produto ou serviço compensa todas as suas emissões de carbono. Empresas que fizerem essas alegações precisarão apresentar os detalhes do que fazem, de forma facilmente acessível, por meio de uma URL ou QRCode. A expectativa no momento é que essa mudança seja implementada até 2027.
  • Na França, a Agência de Transição Ecológica (Ademe) apresentou em março de 2024 sua proposta de rotulagem ambiental para os fabricantes de roupas e deve apresentar nos próximos meses a sugestão para o setor de alimentos. O objetivo é levar ao público um “índice de custo ambiental” de cada produto, que vai incluir emissões de carbono. Os rótulos novos podem se tornar obrigatórios já em 2025. Futuramente o sistema vai incluir outros setores, como cosméticos e móveis.
  • Nos EUA, a Agência de Proteção Ambiental (EPA) colocou sob a lupa outro setor: material de construção. Um programa foi lançado para desenvolver e identificar materiais com menor intensidade de carbono, e para identificar esses materiais com rótulos compreensíveis para o público em geral. A proposta de normatização foi colocada em consulta pública em março.
  • Na China, os rótulos de pegada de carbono começaram a ser testados num projeto piloto com eletroeletrônicos em 2018 e a implementação começou em 2020. O processo de certificação é bem difuso, com participação de governos locais e mais de 100 entidades credenciadas a conceder os selos.