Os manguezais no Brasil pelo olhar de franceses

ed4f7bed-image

O continente europeu é uma península da Ásia. Ele se situa acima do Trópico de Câncer há bastante tempo na história da Terra. Manguezal é um ecossistema estuarino e costeiro que nasceu, cresceu e se disseminou pelo mundo tropical. Houve um tempo em que o mar Vermelho se comunicava naturalmente com o mar Mediterrâneo. Sementes de plantas de espécies de mangue seguiram por essa rota para alcançar o oceano Atlântico. Depois que essa comunicação se fechou, duas províncias vegetais distintas de formaram: águas salobras com manguezal, no mar Vermelho, e águas salobras sem manguezal, no mar Mediterrâneo.

As civilizações cretense, greco-romana e ocidental cristã não conheciam o manguezal no fundo de sua casa. Gregos e romanos tiveram contato com esse ecossistema em seu processo de expansão pela Ásia e pela África. Pensadores gregos e latinos registraram os manguezais como florestas exóticas, ocorrendo dentro do mar. Esses escritos eram conhecidos dos europeus cristãos. Ao vivo, essas plantas “bizarras” só foram conhecidas ao vivo a partir do século XV, com a expansão marítima dos europeus pelo oceano Atlântico, que os permitiria alcançar os oceanos Índico e Pacífico.

No início desse processo, os europeus não tinham um nome específico para essas plantas. Só no decorrer do século XVI, a língua malaia lhes empresta o nome “mangre”, que será adaptado para o português como mangue, para o espanhol como manglar e para o francês e o inglês como mangrove. Sustenta-se também que a palavra provém da língua falada pela nação Taino, das Antilhas (BARRAU, Jacques e MONTBRUN, Christian. “La mangrove et l’insertion humaine das les écosystèmes insulaires de Petites Antilles: le cas de la Martinique et de la Guadeloupe”, 1978).

Esse ecossistema foi registrado por portugueses e espanhóis, pioneiros na expansão marítima. Certamente que também por franceses, holandeses e ingleses, que se lançaram ao mar logo em seguida. A zona intertropical era um mundo novo para os europeus. Pelo Tratado de Tordesilhas, o planeta foi dividido entre Espanha e Portugal, mas era impossível aos dois países impedir que suas terras fossem visitadas por franceses, holandeses, ingleses e outros povos. Não apenas visitados, mas também explorados.

Sabe-se que a grande ameaça ao domínio português no Brasil eram os franceses, que também desejavam o pau-brasil. Essa ameaça se consolidou com a fundação de uma colônia francesa na baía do Rio de Janeiro, batizada com o nome de França Antártica. Religiosos, militares, escritores e pessoas do povo se instalaram nela. Os escritores se incumbiram de registrar para seus conterrâneos maravilhas do mundo tropical. Uma delas era o manguezal, embora eclipsado pela fauna e pelos costumes dos povos da terra.

Os dois escritores principais foram Jean de Léry e André Thévet. Léry deve ter conhecido os mangroves na baía, pois eles eram muito abundantes nesse território tão deslumbrante no século XVI, mas nada escreveu sobre eles. Já Thévet lhe dedicou uma página. Ele foi frade franciscano bastante viajado. Esteve no Brasil em 1555-56, tendo deixado seus apontamentos em “Les singularitez de la France Antartique”, que foi publicado na Europa em 1557 ou 1558. O livro impressionou seus poucos leitores, entre eles, o famoso filósofo Michel de Montaigne. As descrições e desenhos de Thévet são marcados pelo maravilhoso. A flora e a fauna são fabulosas. 

O primeiro português a escrever sobre manguezal foi o padre José de Anchieta, em carta-relatório de 1560. Thévet escreveu antes dele: “No território que fica ao lado do rio, próximo do mar, encontram-se umas árvores e uns arbustos que ficam inteiramente cobertos e carregados de ostras, de alto a baixo. Como o leitor deve saber, quando a maré sobe, uma grande onda penetra pela terra adentro, repetindo-se este fenômeno duas vezes a cada 24 horas. Esta onda cobre a maioria destes arbustos, especialmente os mais baixos. Como as ostras possuem uma certa viscosidade própria, ficam agarradas nos seus ramos em quantidades incríveis. Por isto, quando os selvagens as querem comer, cortam estes ramos cheios de ostras (lembrando galhos de pereira carregados de frutas), levando-os consigo para casa. Preferem estas ostras do mangue às graúdas de alto mar, alegando que as miúdas são mais saborosas e sadias, ao passo que as outras geralmente produzem febres.” (THÉVET, André. “Singularidades da França Antártica”. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1978). Salvo engano ou nova informação, Thévet foi o primeiro europeu a dar notícia por escrito sobre os manguezais no Brasil. 

O estranhamento em relação ao manguezal se exprime na comparação das ramificações do mangue vermelho (rizóforos) com ramos de pereira. Como o discurso dirigia-se a leitores europeus, fazia-se necessário estabelecer aproximações que permitissem a sua compreensão. 

Os esforços franceses para estabelecer uma colônia no Brasil estenderam-se de 1555 a 1575. Malograda a tentaviva, a França fez uma nova investida no Brasil. Dessa vez no Maranhão, entre 1612 e 1615. Foi a chamada França Equinocial. Religiosos e cronistas também visitaram a nova colônia e alguns nela se estabeleceram. Os relatos mais conhecidos sobre a França Equinocial foram escritos pelo missionário Claude D’Abbeville e pelo religioso e estudioso de insetos Ives d’Évreux. Apenas D’Abeville fez um detalhado registro sobre o ecossistema manguezal. Em seus apontamentos, as plantas exclusivas desse ecossistema são grafadas com o nome de “apparituriers”, que se transformou em “paretuvier” e “palétuvier”, significando planta tropical anfíbia principal constituinte do manguezal (“Dicionário da Academia Francesa”). D’Abbeville observa que: “Para além do cabo das Tartarugas, até o cabo das Árvores Secas, há somente bancos de areia e recifes que penetram mar adentro quatro a cinco léguas e às vezes até seis, sete, oito e dez, não sendo possível a ninguém aproximar-se da terra nem embarcado, nem a nado ou a pé. Também entre os dois cabos se encontram bancos de areia e recifes, e, sem o conhecimento das duas passagens existentes, não há homem por mais destemido que se atreva a tentar a travessia. É o que concorre para exaltar a coragem dos maranhenses, os quais, sentindo-se em lugar tão seguro, fazem a guerra aos outros sem que ninguém ouse atacá-los (…) Por outro lado, do cabo de Tapuitapera, próximo ao Maranhão, até o rio  das Amazonas, há tantas ilhas ao longo da costa que se faz impossível chegar à terra firme; tanto mais quanto esta se acha coberta de certas árvores que dão o  nome de Apparituriers, cujos galhos se vergam ao tocarem o chão, criam raízes formando outras árvores que crescem e deitam novos galhos, os quais criam raízes e formam novas árvores; e de tal modo se entrelaçam árvores e raízes que parecem constituir uma só planta alastrando-se por toda parte. Quando outra coisa não houvesse, isso bastaria para tornar a costa inacessível a ponto de não se poder imaginar sem o ter visto. Somente um puro espírito, suscetível de penetrar através das coisas, ou um pássaro capaz de voar por cima delas, poderia atravessar esses baluartes erguidos por Deus e pela natureza em redor do país. Mas o acesso se torna tanto mais difícil quanto nessas ilhas e sob os apparituriers, só se deparam charcos e areias movediças, nas quais a gente afunda até a cintura e mesmo até a cabeça e das quais uma vez atolado, não há força humana capaz de safar o sujeito. E acontece ainda que duas vezes ao dia, cobre a maré esses pântanos e areias movediças e passa por cima das raízes dos apparituriers erguidas além da superfície da terra, em muitos lugares à guisa de altas muralhas.” (ABEVILLE, Claude d’. “História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão e terras circunvizinhas”. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975).

As palavras do capuchinho ecoam o temor que os navegantes tinham dos manguezais, que, no século XIX, vão reverberar no ofício do Barão de Tefé a Eusebio Paiva Legey Affonso Celso, instruindo-o no reconhecimento e levantamento da costa entre o Maranhão e o Pará: “Toda a costa do Maranhão até a baía Gurupy, e a do Pará até o canal de Bragança, é bordada de baixios que mais ou menos avançam para o mar e cujo limite deve ser determinado.” (Ofício de Antonio Luiz von Hoonholtz – Barão de Teffé – a Eusebio de Paiva Legey Affonso Celso. Rio de Janeiro: Império do Brasil/Repartição Hidrográfica, 28/10/1883. Arquivo do IHGB. Lata 190, Doc. 65). Também é minuciosa a relação de crustáceos que o cronista levanta no Maranhão ocupado pelos franceses, com destaque para o caranguejo-uçá (Ucides cordatus), o aratu (Goniopsis cruentata) e os siris (Calinectes sp): “Outros, chamados uçá, são do mesmo tamanho, mas têm as patas peludas e vermelhas. Encontram-se nas raízes dos apparituriers de beira-mar (…) O ujá-uaçu, caranguejos de mais de um pé, se encontra nas pedras entre as ostras (…) O aratu, um pouco menor do que o precedente, é rajado de amarelo e azul. É encontrado no mar (…) Os siris também se encontram no mar. Há azuis e brancos (…) Há o auará-uçu, caranguejo branco maior do que um punho. Gostam do âmbar cinzento, por isso quando este se encontra à beira-mar, a descoberto, ou mesmo escondido nas areias, os auará-açus fazem círculo em torno dessa substância e carregam quanto podem para os buracos em que habitam e onde a vão buscar os que os conhecem.”  

Malograda a experiência francesa no século XVII, os portugueses enfrentarão a ameaça holandesa nos oceanos Atlântico e Índico. Para a Holanda, Portugal perdeu Malaca e teve de travar guerra para manter Angola. Não pôde evitar, contudo, que os holandeses fundassem uma próspera colônia no Nordeste do Brasil entre 1630 e 1654. Foi difícil recuperá-la. Depois de expulsar os invasores, Portugal fechou as fronteiras do Brasil a estrangeiros. Do século XVIII, só dispomos do relato de Charles-Marie de La Condamine, cientista e explorador que viajou pelo norte da África, Oriente Médio e América do Sul. Ele foi o primeiro explorador com olhar científico a descer o rio Amazonas, descrevendo sua geografia, flora e fauna, assim como sua conexão com o rio Orenoco. No estuário do rio Amazonas, ele se deparou com o estranho ecossistema do manguezal, redigindo algumas linhas sobre ele: “… tive ainda o lazer, durante toda uma semana, de passar a vista por aquela parte, sem perceber outra coisa que mangues (itálico no original), em lugar dessas altas montanhas cujos cimos estão representados com grandes pormenores, nas descrições da costa, anexas às cartas do Flambeau de la Mer, livro traduzido em todas as línguas, e que aqui parece mais apropriado a perder do que a guiar os navegantes.” (LA CONDAMINE, Charles-Marie de. “Viagem na América Meridional”. Rio de Janeiro: Pan-Americana, 1944).

Luís D’Alincourt era filho da portuguesa Anna D’Alincourt e do francês Luis D’Allincourt. Ele nasceu em Oiras, Portugal, em 1787, e faleceu no Espírito Santo em 1839. Radicou-se no Brasil e integrou o Real Corpo de Engenheiros. Como militar, ele foi designado para várias expedições, sobretudo em Mato Grosso. A mais conhecida delas foi empreendida entre Santos e Cuiabá, em 1818. Embora português, sua ascendência francesa imediata justifica a sua presença neste artigo. Em sua saída, em Santos, ele registrou brevemente a presença de manguezais, visto que, eles eram evidentes em toda a baixada antes da urbanização excessiva (D’ALINCOURT, Luiz. “Memória sobre a viagem do porto de Santos à cidade de Cuiabá”. São Paulo: Biblioteca Histórica Paulista, 1953).

No mesmo ano de 1818, o botânico francês Auguste de Saint-Hilaire empreendeu a longa viagem científica entre o Rio de Janeiro e o rio Doce. As anotações sobre ela foram publicadas em dois volumes no Brasil: “Viagem pelo Distrito dos Diamantes e litoral do Brasil” (Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1974) e “Viagem ao Espírito Santo e rio Doce” (Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1974). 

Sendo botânico, era de se esperar que o manguezal ganhasse mais destaque em suas anotações, pois se tratava de um ecossistema bizarro aos olhos europeus. Contudo, Saint-Hilaire, assim como outros naturalistas europeus que visitaram o Brasil no século XIX, estavam interessados na Mata Atlântica e na Amazônia. Mesmo assim, ele fez registros sobre manguezais em suas longas viagens. Na baía de Guanabara, ele anota que: “As águas do mar banham ligeiramente o terreno que atravessei ao deixar a casa de que acabo de descrever a posição; esse terreno que é coberto de pequenos mangues e nele se vê uma quantidade considerável de caranguejos, fazendo buracos no barro (…) A uma légua do Arraial de S. Gonçalo, parei em uma venda construída próximo ao Rio Guaxindiba, chamado também Rio de Alcântara, um dos numerosos afluentes da Baía do Rio de Janeiro. Esse rio tem pouca largura e seu curso é de menos de 3 léguas. Dizem que é muito piscoso e que os caranguejos que por ele sobem tornam-se maiores que os que permanecem nas águas do mar.”

Em toda a Capitania do Rio de Janeiro, o manguezal só merecerá mais um registro de Saint-Hilaire. Será no pequenino rio das Ostras: “O Rio das Ostras não tem mais de 2 léguas de curso. Pequenas embarcações podem, contudo, entrar por sua embocadura, porém somente aproveitando a maré alta. Segui o rio num espaço de algumas centenas de passos, notando que ele é margeado por mangues.” Os mangues de rios maiores, como o Macaé, o Paraíba do Sul (cujo manguezal ainda é pujante), o Itabapoana e o Itapemirim não mereceram o mínimo registro do botânico. 

Ao norte de Vitória, no rio Piraquê-Açu, o naturalista observou que “A maré se faz sentir e, nesse trecho, as águas do rio são salgadas como as do oceano. Até a foz, a margem sul, muito alta, apresenta árvores que se diferenciam entre si pelo tamanho e folhagem. Do lado norte, ao contrário, o terreno é baixo, coberto de mangues, bem como de outras árvores amigas dos alagados vizinhos do oceano.” Ele esclarece que são manguezais extensos e de outras árvores de pauis salgados.

Apenas na viagem a Santa Catarina, ele menciona o nome científico do mangue branco, o mais conhecido em todo o Brasil: “O mangue (Laguncularia racemosa, Gaert.) era a única vegetação que crescia no terreno úmido e paludoso que contornava o posto.” Menciona ainda mariscos em abundância nos rochedos e nos mangues (“Viagem à província de Santa Catarina”. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936).

Benjamin Mary foi o primeiro representante diplomático da Bélgica no Brasil, onde viveu entre 1833 e 1838. No Rio de Janeiro, estabeleceu-se no bairro do Catete. Desenhista, ele retratou várias paisagens do país. Em Ubatuba, retratou, numa gravura, dois exemplares de mangue vermelho (Rhizophora mangle). Ela foi aproveitada por von Martius para ilustrar o capítulo sobre manguezal de sua monumental “Flora brasiliensis”.

Hercule Florence chegou ao Brasil em 1824 e estabeleceu-se em São Paulo. Morreu em Campinas em 1879. Além de desenhista, ele foi pioneiro na técnica da fotografia. Uma figura dele mostra a baixada santista coberta de plantas de mangue. Não parece, contudo, que seu objetivo fosse retratar o bosque à beira-mar, senão a estrada no alto da serra. Entretanto, ficou o registro.

Pintor relacionado ao romantismo e pouco conhecido, François-Auguste Biard viajou ao Brasil por conta própria com obras que pretendia vender. Chegou no Rio de Janeiro em maio de 1858. Viajou pelas províncias do Rio de Janeiro, Espírito Santo, Nordeste do Brasil e Amazônia. Retornou a seu país em 1859 e lançou o livro “Dois anos no Brasil”, em 1862, com 180 gravuras. Seu relato é extremamente fantasioso, com muitas aventuras inventadas das quais ele mesmo participa. No Espírito Santo, registrou que “os mangues com suas raízes entrelaçadas se estendiam bem perto da água.” Na Paraíba, também notou que “Os mangues oferecem milhares de raízes, milhares de braços a se reproduzirem quando, curvando-se, tocam a terra e com ela fazem contato. Caranguejos formigam por todos os lados e fogem ao menor ruído de passos.” (“Dois anos no Brasil”. Companhia Editora Nacional, 1945). A confiar em seu relato, Biard parece ter sido o único francês a afundar os pés na lama do mangue, deixando do ecossistema duas fulgurantes gravuras feitas no Espírito Santo. Na tradução do seu livro no Brasil, não figuram tais gravuras, certamente a melhor parte dele.

Por fim, cabe menção ao pintor francês Marcel Gautherot, que se radicou no Brasil em 1940. Viajando por todo o país, ele fez registros fotográficos artísticos e documentais. Ele retratou Brasília em plena construção. São poucas suas fotos de mangue. Ele deve ter ficado impressionado com a dimensão das plantas na Amazônia, onde fez registros.