“Intelectual por vocação e ofício, ecólogo militante, pioneiro da área de História Ambiental no país, Soffiati é um carioca radicado em Campos. Ser multiativo e multidisciplinar combina bem com o camaleônico Arthur Soffiati, que também é crítico de cinema e escritor. Colunista Arthur ao repassar a coluna para sua rede de e-mails, jornais locais entre outros artigos, é dotado de variações de identidade exercidas com naturalidade de quem é filho e neto de Aristides Arthur”.
MEU ENCONTRO COM A QUESTÃO AMBIENTAL
Arthur Soffiati
1971- Vim do Rio de Janeiro em 1970 para passar um ano em Campos e acabei ficando. Produzi uma série de poemas-processo sobre a questão ambiental um ano antes da Conferência de Estocolmo. O poema processo usa desenhos e esquemas como forma de expressão no lugar da palavra. Eu já havia lido alguns livros sobre o tema, manifestando sensibilidade em relação à emergente questão ambiental.
1972- Acompanhei os debates travados na Conferência de Estocolmo, que inaugura oficialmente a grande questão do nosso tempo. Não era mais a Guerra Fria, que estava demonstrando cansaço. Não era apenas a questão social. Como escreveu o historiador britânico Arnold Toynbee em “A humanidade e a mãe Terra”, a humanidade sempre dependeu da natureza. Com a economia ocidental e a globalização, ela julgou ter se emancipado da natureza. A tecnosfera avançou perigosamente sobre a biosfera, que agora dava sinais de esgotamento. A biosfera mostrava seus limites. A participação do Brasil, orientada pelo diplomata Araújo Castro, foi sofrível. A delegação brasileira defendeu a poluição como símbolo do desenvolvimento.
1973- Apesar de tudo, o Brasil acabou criando a Secretaria Especial de Meio Ambiente, germe do Ministério do Meio Ambiente, e nomeou o biólogo e advogado Paulo Nogueira Neto como seu titular.
1977- Dois alunos do Liceu de Humanidades de Campos me convidaram a fundar uma organização não governamental de meio ambiente para combater a destruição da natureza em Campos e no norte fluminense, que, na época, englobava o noroeste fluminense. Recusei a princípio por entender que a organização era apenas um modismo. Mas acabei participando da fundação do Centro Norte Fluminense para a Conservação da Natureza (CNFCN), em 13 de dezembro de 1977. Relacionamos os problemas que deveríamos combater: defesa do Parque Estadual do Desengano, combate às queimadas de canavial e poluição do ar; poluição das águas e defesa do patrimônio cultural. Mas fomos colhidos por um movimento popular de pescadores em defesa das lagoas Feia, do Campelo e de Cima, assim como contra as alterações em Barra do Furado. O grande inimigo era o Departamento Nacional de Obras e Saneamento. A luta em defesa das lagoas e rios teve um momento mais intenso entre 1978 e 1981. Surgiu no horizonte, posteriormente, a luta contra herbicidas.
Manifestação no movimento dos pescadores de Ponta Grossa dos Fidalgos, às margens da lagoa Feia. O autor está assinalado com um traço vrmelho
Década de 1980: devorei com avidez livros escritos por autores que se reuniam sem vínculos fortes sob a denominação de ecologismo. Eu já havia lido “Limites do crescimento”, do Clube de Roma. Agora, eu entrava em contato com socialistas, anarquistas e progressistas que alertavam para o choque da civilização ocidental e ocidentalizada sobre a natureza. Os principais nomes eram Rudolf Bahro, Murray Bookchin, Michel Bosquet, Jean-Pierre Dupuy, Laura Conti, Nicholas Georgescu-Roegen, René Dubos e René Dumont.
No início da década de 1980, o CNFCN foi convidado a opinar sobre o anteprojeto de lei da Política Nacional de Meio Ambiente. O governo militar estertorava, apesar de ter posturas não condizentes com um regime autoritário, pendendo para o que vai se chamar de desenvolvimento sustentável. Inúmeras entidades foram chamadas a opinar sobre o anteprojeto de lei. Debrucei-me sobre ele e dei minha contribuição em nome do CNFCN.
Autor na detonação de diques ilegais na lagoa Feia, em 2009
Ainda na década de 1980, como presidente do CNFCN, participei de uma das duas audiências públicas da comissão da ONU presidida pela primeira-ministra da Noruega Gro Harlem Brundtland. Uma audiência ocorreu em Brasília e a outra em São Paulo. Estive na segunda, ocasião em que passei para a comissão minhas propostas por escrito. Eram derivadas de um artigo que eu havia publicado no informativo do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) em 1981.Creio que o artigo de 1981 foi a primeira manifestação de história ambiental no Brasil.
Até o princípio da década de 1990, fui membro do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) e apresentei proposta para o capítulo de meio ambiente da Constituição Brasileira de 1988. A proposta foi publicada em opúsculo. Ainda formulei propostas para a Constituição do Estado do Rio de Janeiro e para as Leis Orgânicas de Campos e São João da Barra.
Década de 1990. Deixei a presidência do CNFCN em 1991, depois de 12 anos à frente da ONG por falta de quem desejasse assumi-la. A Federação das Associações Fluminenses de Meio Ambiente (FAMA) começava a se dispersar. O CNFCN fez parte dela. Pude conhecer nomes que muito me marcaram, como José Lutzenberger, Marcello de Ipanema, Elmo da Silva Amador, Breno Marcondes, Ruth Christie. Ingressei no mestrado em História Social da UFRJ e enfrentei dificuldades ao me propor a estudar as relações da sociedade com terras, águas, florestas, fauna nativa e espécies introduzidas no norte-noroeste fluminense. História Ambiental ainda era uma novidade. Participei ativamente da Conferência Rio-92, na Cúpula dos Povos.
Encontro com o economista ecologista Ignacy Sachs na Conferência Rio 92
Mesmo muito atarefado, aceitei o convite para integrar o Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica. Nos muitos encontros pelo Brasil, tive oportunidade de conhecer outras pessoas, como o Almirante Ibsen de Gusmão Câmara. Já no Doutorado, participei da criação do Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba e do movimento embrionário para a criação do Comitê de Bacia do Baixo Paraíba do Sul.
Década de 2000: terminados mestrado e doutorado em história ambiental durante dez anos ininterruptos, estendi meus interesses para a Região dos Lagos. Eu estudara no doutorado as relações das sociedades com o manguezais entre os rios Itapemirim e São João. Esse interesse me levou, ainda na década de 1990, a me aproximar e participar da Associação Brasileira para Educação Ambiental em Áreas de Manguezal (Edumangue). Foram muitos encontros em todo o Brasil. Eles me permitiram conhecer ainda mais pesquisadores em questões ambientais, notadamente em manguezais. Na primeira década do século XXI, eu continuava muito ativo em conhecimento teórico e ativismo. Ao mesmo tempo, escrevia artigos jornalísticos e acadêmicos, igualmente publicando livros.
No Mangue de Pedra, em Búzios
Década de 2011. Após minha aposentadoria, em 2011, a atividade intelectual aumentou. Sofri um AVC, mas me recuperei e intensifiquei ainda mais minhas pesquisas e produção literária. Houve três momentos distintos no meu ativismo. No primeiro, meu entusiasmo era grande. Eu acreditava que a mudança em direção a um contexto social que mantivesse equilíbrio com a natureza seria rápido. Mas fui percebendo que as poucas conquistas em direção a um novo mundo eram pequenas e frágeis. Além do mais, as derrotas pareciam definitivas. No segundo momento, mergulhei em profundo desencanto. Passei a achar que meus escritos e minhas ações tinham sido inúteis. Foi um momento depressivo. Tive vontade de abandonar tudo. O ecologismo era uma utopia inviável, concluí.Mas no terceiro momento, lembrei-me de que sou historiador. As estruturas e as conjunturas não são maleáveis. Não mudam com facilidade. Otimismo e pessimismo enquanto estado de espírito não produzem transformações no mundo. Otimismo e pessimismo devem decorrer de análises da realidade. Entendo, atualmente, que as forças de mudança estão aquém das necessidades para se alcançar um mundo em que humanidade e natureza se equilibrem, enquanto que as forças de destruição pouco desaceleraram. O nível de consciência aumentou, principalmente entre as novas gerações. No plano empresarial e governamental, o discurso ambiental foi incorporado em grande parte, mas, também em grande parte, ele não é verdadeiro. O futuro ainda é uma incógnita.
Com Edgar Morin em Búzios – 2014
Década de 2021. Estou vivo e atento no ano de 2022. Muitos companheiros meus morreram ou se desinteressaram da questão ambiental. Continuo morando em Campos e acompanhando o que acontece no mundo. Acompanho as ações dos governos municipais e de empresários da região norte-noroeste fluminense e noto uma grande defasagem em seus pronunciamentos e ações em relação à nova e grande questão: a ambiental. Parece mesmo muito difícil sair minimamente das questões da humanidade no seu sentido estrito. Noto o mesmo nos meios de comunicação. Pouco se avançou em relação às exigências do novo tempo. Basta acompanhar uma das manifestações da crise ambiental: os fenômenos climáticos extremos. A imprensa quase que se limita a noticiar o que chama de fatos. Há pouca análise das causar mais profundas deles.
Por outro lado, o número de estudiosos da crise ambiental aumentou significativamente. São poucos aqueles dentro da academia indiferentes a ela ou aqueles que a negam. Os negacionistas assumem essa atitude mais por razões religiosas e políticas. As igrejas, sobretudo as evangélicas, continuam considerando a Bíblia como o livro que contém todas as “verdades”. O governo de Jair Bolsonaro não apenas é insensível às questões ambientais, como não se envergonha de acentuá-las. Existem outros governos no mundo com a mesma orientação do atual governo do Brasil. Eles vivem como em tempos passados, em que se acreditava que destruição da natureza é sinônimo de progresso.
Parece que minha solidão aumentou com o envelhecimento. Aos 75 anos, continuo inquieto intelectualmente. Não me alinho com os novos pensadores da academia que estão buscando conceitos mais que entendimento da questão ambiental. Considero-os confusos, vaidosos, oportunistas, buscando mais se sobressair junto a seus pares do que compreender e explicar o mundo. Também vejo que os trabalhos acadêmicos sobre questões ambientais são fragmentários. Parecem visar mais o currículo dos seus autores. Da minha parte, busco compreender e explicar, segundo o ensinamento de Lucien Febvre, reconhecendo sempre meus limites. Sempre consciente de que é extremamente difícil compreender o mundo que criamos. Mas continuo a escrever artigos e livros.
Da Conferência de Estocolmo aos dias de hoje, passaram-se 70 anos. Eu tinha 25, quando ela foi promovida. De longe, acompanhei muitas outras que se seguiram a ela e à Conferência Rio-92.