Entre Macaé e Búzios: história ambiental de rios e lagoas (I)

Arthur Soffiati

Considerações gerais

A linha costeira entre Vitória (ES) e Maricá (RJ) pode ser dividida em três fisionomias distintas. Entre a baía de Vitória e rio Itapemirim, formações pedregosas e restingas tocam o mar. Os exemplos notórios desse setor costeiro são as ilhas, os tômbolos (ilhas capturadas por restingas) e o monte Agá. Trata-se de um litoral sinuoso que forma reentrâncias e saliências. Existem nela muitas baías que permitem a instalação de portos. 

Já entre os rios Itapemirim e Macaé, o mar foi afastado da zona serrana por uma grande unidade da Formação Barreiras (tabuleiros), por uma extensa planície aluvial em grande parte formada pelo rio Paraíba do Sul e três significativas restingas. Essa costa não conta com formações pedregosas nem no mar nem no continente, com exceção das pedras lançadas por ação humana. Na desembocadura do rio Itapemirim, encontra-se duas pequenas ilhas pedregosas. Até o arquipélago de Santana, diante da foz do rio Macaé, só a pequena ilha das Andorinhas é registrada. Mesmo assim, ela deriva da erosão da Formação Barreiras. Trata-se de uma costa nova, rasa e tendente a retilínea.

Entre Macaé e o promontório de Búzios, a costa caracteriza-se pelo contato direto do mar com o cristalino e com restingas formadas pelo mar e por pontos de amarração. É visível que a costa abaixo da foz do rio Macaé integra mais a Região dos Lagos. Nessa costa, desembocam os rios Macaé (separador de duas regiões costeiras distintas), das Ostras, São João e Una, além de lagoas perpendiculares à linha costeira, sugerindo terem sido pequenos rios cuja foz foi bloqueada por sedimentos transportados pelo mar e pela perda de capacidade das águas fluviais manterem suas barras abertas. A ação da economia de mercado acentuou essa tendência, sem dúvida. Três rios alagoados se destacam: o de Imboacica, o de Itapebussus e o de Iriri.

Todos os rios com foz aberta ou barrada correm parcialmente em meio a planícies aluviais holocênicas que eles próprios formaram carreando sedimentos das partes mais altas. Suas bacias situam-se quase que inteiramente em terrenos de planície. A do rio São João está separada da do pequeno rio Una por uma extensa restinga holocênica e da do rio das Ostras por uma restinga pleistocênica. As suas planícies constituíram-se nos interstícios da zona cristalina pré-cambriana, que mergulha no mar ou que por ele é afogada. Alguns afloramentos marinhos dão origem a ilhas na altura de Macaé e do Cabo de Búzios (MARTIN, Louis; SUGUIO, Kenitiro; DOMINGUEZ, José Maria Landim; e FLEXOR, Jean-Marie. “Geologia do Quaternário Costeiro do Litoral Norte do Rio de Janeiro e do Espírito Santo”. Belo Horizonte: CPRM, 1997).

Dieter Muehe e Enise Valentini chamam atenção para a tendência da costa, a partir da foz do rio Macaé, em formar baías. De fato, percebem-se claramente as reentrâncias e saliências costeiras entre a desembocadura do Macaé e o promontório de Búzios. Os dois autores esclarecem que, neste trecho da costa, há longos arcos de praia interrompidos por afloramentos do embasamento cristalino. As areias grossas e muito grossas encontradas na curva costeira entre rio das Ostras e Búzios testemunham oscilações do nível do mar ora avançando sobre o continente (progressão marinha e retrogradação continental tanto quanto recuo do mar e avanço do continente (regressão marinha e progradação continental). Sobre essa costa, deposita-se lama proveniente dos rios Paraíba do Sul, Macaé e São João. O mais impressionante é que garrafas lançadas das plataformas da Petrobrás alcançam o trecho Cabo de Búzios-Cabo Frio, levando Saavedra e Muehe a encontrar influência das descargas sólidas do rio Paraíba do Sul em ponto muito distante de seu desaguadouro. O deslocamento em direção ao sul é, todavia, uma tendência preferencial. No inverno, o transporte residual se volta para o norte (MUEHE, Dieter e VALENTINI, Enise. “O litoral do estado do Rio de Janeiro: uma caracterização físico- ambiental”. Rio de Janeiro: Fundação de Estudos do Mar, 1998; e SAAVEDRA, L. e MUEHE, D. “Innsershelf morphology and sediment distribution in front of Cape-Frio – Cape Buzios embayment”. JOPS-I Workshop. Niterói: Brazilian German Victor Hensen Programme Joint Oceanographic Projects, 1993). 

Não podemos nunca esquecer ou negligenciar a ação humana sobre esse ambiente, sobretudo depois da colonização europeia. Os povos nativos que viviam nesse território conformavam-se aos constrangimentos impostos pela natureza, retirando dela o necessário para seu sustento e provocando impactos ambientais mínimos. Já os europeus, movidos por uma economia de mercado, via a natureza como estoque inesgotável a ser explorado em caráter ilimitado. Por outro lado, via também a natureza como área de descarte de resíduos. Obras gigantescas foram empreendidas para adaptar a natureza aos interesses dessa economia.

Não analisaremos o rio Macaé, já que existe uma grande bibliografia a respeito dele e por, também, termos regido um artigo nos moldes desse sobre o rio. Ele pode ser encontrado no link https://rotaverde.com.br/entre-os-rios-itapemirim-e-macae-final/. 

Lagoa de Imboacica

Informações antigas esclarecem que, em torno da lagoa de Imboacica, havia uma exuberante vegetação que se estendia em ambas as margens do rio do mesmo nome. Tudo indica que a lagoa resultou do fechamento da barra do rio Imboacica por ação do mar, alastrando-se na forma de lagoa. Antes, o volume d’água acumulado dentro do sistema tinha competência para abrir a barra periodicamente. Hoje, esta abertura só é possível por meios antrópicos.

Maximiliano de Wied-Neuwied encontrou as margens da lagoa de Imboacica, em 1815, cultivadas com mandioca, arroz, café e laranja, registrando em suas águas abundância de peixes (“Viagem ao Brasil”. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Eduff, 1989). Dois anos depois, Manuel Aires de Casal informou que “A Lagoa de Boacica, que fica duas léguas ao sul do rio Macaé, e mui próxima ao Oceano, tem duas mil e quatrocentas braças de comprimento, seiscentas na maior largura, e pouco fundo. É salgada, e abundante de peixe, que sobe do mar, depois que se lhe abre um esgotadouro; e recolhe as águas do córrego, que lhe dá nome, do Serraria, do Mutum, do Riacho da Alagoa, e do Riachinho” (“Corografia brasílica ou relação histórico-geográfica do Reino do Brasil”. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1976).

Repetindo as informações de Casal, Auguste de Saint-Hilaire, em 1818, apenas diverge dele quanto à largura da lagoa, a que atribui 60 braças. Acrescenta, por observação sua, que ela era margeada de grandes florestas (“Viagem pelo Distrito dos Diamantes e litoral do Brasil”. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1974). Henrique Luiz de Niemeyer Bellegarde, em 1837, endossou as medidas de Casal quanto à lagoa e seus afluentes (“Relatório da 4ª Seção de Obras Públicas da Província do Rio de Janeiro”. Rio de Janeiro: Imprensa Americana de I. P. da Costa, 1837). Os dois mais importantes levantamentos cartográficos do século XIX registraram a lagoa de Imboacica como um rio cujo curso flui na direção oeste-leste até incidir perpendicularmente sobre a costa atlântica, onde desembocaria. Na representação cartográfica “Nova carta corográfica da Província do Rio de Janeiro”, de Pedro D’Alcantara Bellegarde e Conrado Jacob de Niemeyer, de 1867, tem-se a nítida impressão de que o córrego de Imboacica, com nascente na serra de Iriri, engorda em sua foz pelo barramento natural dela por força do mar, transformando-a numa lagoa com comunicação intermitente com o oceano. Intervenções antrópicas posteriores teriam consolidado cada vez mais a barra, por tibieza das águas que alimentavam a lagoa.

Lagoa de Imboacica na “Nova carta corográfica da Província do Rio de Janeiro”, 1867

A partir dos anos de 1970, a lagoa de Imboacica passou por um acelerado processo de urbanização decorrente da instalação da Petrobras em Macaé para a exploração de petróleo e gás natural na plataforma continental. Em consequência, os setores norte e oeste da lagoa sofreram aterros para a construção de casas residenciais e comerciais. A produção de esgoto saturou progressivamente suas águas, que foram eutrofizadas. A comunicação com o mar foi sendo perdida e a lagoa, de salgada que era no século XIX, transformou-se em salobra, junto à barra, e em doce, nas cercanias do rio Imboacica, no século XX. Aberturas antrópicas da barra em períodos de cheia provocam impactos fortes sobre o sistema, com a formação de fluxos em direção à antiga embocadura que disseminam material poluente retido nas margens. Deve-se levar em conta igualmente a brusca redução do volume d’água, o choque salino e térmico (ESTEVES, Francisco de Assis. “Lagoa de Imboassica: impactos antrópicos, propostas mitigadoras e sua importância para a pesquisa ecológica.” In: — (Edit.) “Ecologia das lagoas costeiras do Parque Nacional da Restinga de Jurubatiba e do município de Macaé”. Rio de Janeiro: UFRJ/NUPEM, 1998).

Remanso da lagoa de Imboacica em 1957. Foto do DNOS

Tais transformações acabaram por suprimir progressivamente as condições para a existência de bosques de manguezal na lagoa. A prefeitura de Macaé informa que não há mais lançamento de esgoto na lagoa e que as aberturas de barra estão controladas. Deve-se consideram, contudo, o esgoto líquido que pode ser lançado de forma clandestina. É difícil controlar o lançamento de resíduos sólidos, também de forma clandestina. Por fim, cabe considerar que a urbanização das margens da lagoa implica em impermeabilizar o solo e alterar o fluxo de infiltração de águas pluviais. E o que dizer do rio Imboacica? Ele foi transformado numa vala imprensada pela urbanização, que se transformou numa conurbação que envolve Macaé, Rio das Ostras, Barra de São João e Unamar.     

Aspecto do rio e lagoa de Imboacica em 1957. Foto do DNOS