É na zona costeira do Brasil onde estão ecossistemas indispensáveis para o equilíbrio ambiental conhecidas como Áreas de Proteção Ambiental (APPs), formadas por falésias, manguezais, restingas (responsáveis por fixar as dunas), além de ser o lugar onde vivem as comunidades da pesca artesanal. Mas, toda essa região litorânea pode ser privatizada, conforme a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 39/2011, a chamada Pec da privatização das praias, debatida durante audiência pública realizada na tarde desta segunda (27), no Senado Federal.
“Na zona costeira há várias atividades estratégicas para a União, como os portos públicos e privados, alguns aeroportos, usinas eólicas, a industrial de petróleo e gás, pesca industrial e artesanal. Há infraestrutura crítica como a internet que chega ao Brasil pelo cabeamento da Praia do Futuro, no Ceará. O domínio da União é que garante essa proteção”, alerta Carolina Gabas Stuchi, do Ministério da Gestão e Inovação dos Serviços Públicos.
A chamada Pec da privatização das praias, prevê o fim das áreas de ‘Terrenos de Marinha’, que corresponde a uma faixa de 33 metros na costa marítima, contando do fim da praia em direção ao continente.
Há uma estimativa de que os terrenos de marinha tenham uma extensão territorial de 48 mil quilômetros em todo o país, dos quais apenas cerca de 15 mil estariam demarcados. No Rio Grande do Norte, está essas áreas estão com o processo de demarcação em andamento, segundo as informações apresentadas na audiência. Ao todo, há 565 mil imóveis cadastrados no país, enquanto o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima a existência de 2,9 milhões de imóveis.
A Pec, que tem relatoria de Flávio Bolsonaro (PL-RJ), já foi aprovada na Câmara dos Deputados em 2022. A proposta foi apresentada por Arnaldo Jordy (PPS-PA), José Chaves (PTB-PE) e Zoinho (PR-RJ).
A representante do Ministério da Gestão e Inovação dos Serviços Públicos resumiu os problemas da Pec em duas questões principais:
“Há uma inversão de lógica quando já temos na Constituição os bens que são constitucionais e suas competências. A Pec inverte, a regra é passar para os particulares que ocupam ou para estados e municípios, como se tivesse congelado o interesse público da União. É um conjunto de terras essenciais para que a União possa exercer, coordenar e executar um conjunto de políticas públicas e programas prioritários. Outro problema da Pec é que ela extingue esse conceito de faixa de segurança e permite a alienação e transferência de domínio pleno dessas áreas que são importantes para o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro. A Pec favorece a ocupação desordenada, ameaçando os ecossistemas brasileiros, tornando esses territórios mais vulneráveis aos eventos climáticos extremos. Contraria o rumo da legislação adotada por outros países, que vem avançando na proteção dessas áreas. Favorece a privatização e cerceamento das praias, provoca queda nas receitas da União e municípios, interfere na indústria da pesca, intensifica os conflitos fundiários e ameaça a sobrevivência dos povos e comunidades tradicionais”, resume Carolina Gabas Stuchi.
Na justificativa, os autores da Pec afirmaram que o atual sistema de regulação dos Terrenos de Marinha tem causado “prejuízos” ao cidadão por causa da “tributação exagerada”.
“Podemos reservar áreas para expansão de infraestrutura e expansão urbana, dar agilidade e simplificar o processo de demarcação, tornar o pagamento de taxas, foros, anuênio e remissão de foro mais justas e institucionalizar a gestão compartilhada com estados e municípios”, rebateu Carolina Gabas Stuchi, durante a apresentação.
Atualmente, esses terrenos são regulados por meio da Constituição que estabelece o pagamento do aforamento, que é quando a pessoa adquire o domínio útil do imóvel e paga pelo direito de utilizar este terreno.
O foro é pago anualmente à União e corresponde 0,6% do valor do terreno, junto com a taxa de ocupação de terrenos, calculada sobre o valor de avaliação do terreno, correspondente aos percentuais de2% (para as ocupações já inscritas e para aquelas cuja inscrição foi requerida à Secretaria de Patrimônio da União – SPU até 30 de setembro de 1988); de 5% (para as ocupações cuja inscrição foi requerida ou promovida ex-ofício a partir de 1º de outubro de 1988) e o Laudêmio, que corresponde a 5% do valor de avaliação do terreno e das benfeitorias existentes, a transferência onerosa, entre vivos, do domínio útil de terreno da União ou de direitos sobre benfeitorias nele construídas e cessão de direito a eles relativos.
Bônus para poucos, ônus para toda a sociedade brasileira
O processo de assoreamento nas praias resultou, nos últimos 40 anos, em uma perda de mais de R$ 1 bilhão, em sua maior parte, pelo setor privado. O problema só seria agravado com a privatização das praias, segundo Marinez Scherer, representante do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima e professora da Universidade Federal de Santa Catariana (UFSC).
“Não podemos negar que há aumento de temperatura não apenas da terra, mas também do mar. Este ano nós já batemos o recorde da maior temperatura registrada em 2023 [que foi de 20,50C], ou seja, batemos o recorde do recorde”, ironizou.
Em 2024, a temperatura do mar alcançou os 210C. Entre 2012 e 2022 foi registrada uma elevação de 10 centímetros do nível do mar.
“Isso leva a um aumento do nível do mar, que vai para cima da terra. É, justamente, nessa área de intersecção entre a terra e o mar que estão os terrenos de marinha e a faixa de segurança”.
A pesquisadora também apontou áreas vulneráveis em todo o país. Em Belém (PA), por exemplo, 27 bairros estão sujeitos a alagamentos e inundações. Já no Ceará, 45% das praias sob risco de erosão.
“A gente fala ‘ah, dez centímetros não é muito. Mas, um centímetro de elevação do nível do mar significa, mais ou menos, um metro pra dentro da terra. Se tivemos o aumento de dez centímetros nos últimos 30 anos, já temos dez metros a mais pra dentro da terra”.
A maioria de terrenos de marinha estão em Áreas de Preservação Permanente (APP). É o caso das restingas, manguezais e áreas de falésias, que se concentram no Nordeste brasileiro.
“Não é à toa que elas são Áreas de Preservação Permanente. São áreas importantes para a preservação e bem estar humano. Esses ecossistemas e biodiversidade têm funções, que nos trazem serviços ecossistêmicos que nos garantem valores ecológicos, culturais e econômicos. Se perdemos essas estruturas, esses ecossistemas, perderemos bem estar humano e a economia. Isso resulta em um gasto que acaba recaindo sobre a população. Não precisamos nem dizer quanto está sendo disponibilizado, e tem que ser, para o Rio Grande do Sul devido a ocupação de Áreas de Preservação Permanente”, lembra a professora da UFSC.
“Se perdemos essas estruturas, esses ecossistemas, perderemos bem estar humano e a economia. Isso resulta em um gasto que acaba recaindo sobre a população. Não precisamos nem dizer quanto está sendo disponibilizado, e tem que ser, para o Rio Grande do Sul devido a ocupação de Áreas de Preservação Permanente. É um bônus para pouquíssimos e um ônus para toda a sociedade brasileira muito alto”, critica Marinez Scherer.
“Quem vai lucrar com isso não somos nós”, alerta pescadores artesanais sobre Pec de privatização das praias
“Esse desenvolvimento não tem nada a ver com nós. Primeiramente, quem mora nas beiras dos rios, lagos e áreas de marinha que sofre com o desmatamento e assoreamento de grandes empreendimentos. O objetivo dessa Pec, na verdade, é a urbanização das orlas por grandes empreendimentos e quem vai lucrar com isso não somos nós”, resumiu Ana Ilda Nogueira Pavão, Representante do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais.