A antropologia e os povos indígenas

O pesquisador Felipe Tuxá recomenda leituras no campo da antropologia que tratam dos povos indígenas e da chamada “questão indígena”, sendo parte delas de autores indígenas

Uma das primeiras coisas que notei quando ingressei no ensino superior em 2010 por meio do primeiro vestibular indígena da Universidade Federal de Minas Gerais foi o quanto o imaginário acadêmico acerca da antropologia e do que fazem os antropólogos estava associado aos povos indígenas. Tão logo surgiam questões de cunho administrativo sobre a realidade dos estudantes indígenas no campus, alguém indicava “vamos consultar os etnólogos. Isso é com eles”. Tal associação não é fruto do acaso. Historicamente, a antropologia se constituiu no Brasil justamente em torno da chamada “questão indígena”, tornando os trabalhos em etnologia e indigenismo uma marca de nossa disciplina.

A antropologia do passado refletiu o imaginário social em vários aspectos: havia um forte ideal salvacionista e/ou catalográfico que se justificava diante da crença de que o desaparecimento dos povos indígenas era algo inevitável. Assim, por um lado, tínhamos estudos com um viés folclorista, voltado para indexação de costumes, mitos e outras manifestações culturais. Por outro, havia os estudos centrados na temática do futuro dos povos indígenas e sua incorporação na sociedade nacional.

Foi na relação com os povos indígenas em seus territórios e em outros locais de luta, que antropólogos(as) puderam rever as suas problemáticas de pesquisa, possibilitando que a etnologia seguisse florescendo. A desestabilização do campo tem sido progressiva e, em um bom espírito antropológico, resulta do próprio rigor etnográfico que também é marca da antropologia brasileira. Logo, podemos nos perguntar: quais são, então, os grandes temas da etnologia indígena hoje?

A seguir indicarei algumas obras, disponíveis gratuitamente no site da ABA (Associação Brasileira de Antropologia), com o intuito de evidenciar a diversidade de caminhos possíveis na relação entre a antropologia e os povos indígenas.

Desde já, destaco que a atuação de antropólogos como especialistas em estudos sobre indigenismo segue uma parceria importante, tanto do ponto de vista estritamente acadêmico como em sua participação na Administração Pública. Ademais, no âmbito etnográfico, o localismo de outrora perdeu espaço para trabalhos que buscam conceber as realidades indígenas a partir de entrecruzamentos diversos, retratando essas coletividades em seus múltiplos agenciamentos: étnicos, cosmológicos, cosmopolíticos, articulações locais, regionais e nacionais, associativismos, redes de parentesco, indígenas em contexto urbano, protagonismos na saúde, na política eleitoral, na educação, na luta pela terra, gênero, sexualidade e luta das mulheres indígenas.

Constituições Nacionais e Povos Indígenas

Alcida Rita Ramos (organizadora) (Editora UFMG, 2012)

Resolvi iniciar as indicações com este livro por dois motivos. O primeiro, diz respeito ao modo como ele evidencia o importante papel da comparação para os estudos antropológicos.

A coletânea, organizada por Alcida Rita Ramos e publicada em 2012, traz o resultado de debates acerca das mudanças constitucionais ocorridas em países sul-americanos e da relação dos povos indígenas com os respectivos Estados-Nação erguidos nesses territórios. Os países selecionados são Venezuela, Colômbia, Brasil, Chile e Argentina, e a situação indígena em cada um deles é analisada a partir de dois textos. Respeitando o rigor necessário para o estabelecimento de boas comparações analíticas, os países escolhidos foram justamente aqueles que, na América do Sul, contam oficialmente com uma população indígena proporcionalmente reduzida, o que permite que o leitor possa perceber as especificidades e semelhanças existentes entre cada um deles.

O segundo motivo da minha escolha é que embora publicado há dez anos, o livro faz um importante exercício de valorização da autoria indígena. Para cada país temos um texto assinado por um intelectual/ativista indígena, potencializando o entendimento do leitor sobre as diversas realidades locais desde diferentes perspectivas étnicas: a indígena e a não-indígena.

Outro ponto importante é o modo como a complexidade do tema do indigenismo, evidenciado no estudo das Constituições, demanda dos antropólogos e demais profissionais interessados, o trânsito e diálogo por diversas áreas de conhecimento como a história, o direito, as ciências políticas e, até mesmo, a literatura. Como exemplo, no caso do Brasil, temos um texto do antropólogo Gersem Baniwa somado ao texto da então Sub-Procuradora Geral da República, Deborah Duprat. A interdisciplinaridade é uma marca do indigenismo, o que também ficará evidenciado na indicação seguinte.

Belo Monte e a Questão Indígena

João Pacheco de Oliveira e Clarice Cohn (organizadores) (ABA, 2014)

A controversa – para usar um termo brando – construção da Hidrelétrica de Belo Monte na Amazônia permanece no presente como alvo de constante reflexão por parte de diferentes intelectuais interessados na compreensão do desenvolvimentismo e seus múltiplos efeitos. Fruto de um projeto que havia sido engavetado na Ditadura Militar, a obra e as suas negociações trouxeram impactos inestimáveis para fauna, flora e milhares de sujeitos, que, individual e coletivamente, se viram direta e indiretamente afetados pela represa. Dentre eles, os povos indígenas.

É nesse contexto que a coletânea “Belo Monte e a questão indígenas” foi elaborada. Organizado por Clarice Cohn e João Pacheco de Oliveira, ambos com vastas contribuições etnográficas à etnologia indígena, o “dossiê” foi elaborado no âmbito da Comissão de Assuntos Indígenas da ABA num esforço comum de congregar análises científicas de diferentes intelectuais acerca de políticas desenvolvimentistas e os modos como os povos indígenas vem sendo atravessados por elas.

O livro permanece importante por tocar em um tema que não se restringe a Belo Monte nem tampouco aos povos indígenas da região do Xingu. Os capítulos reunidos debatem a atuação de antropólogos em licenciamentos ambientais, estudos de impacto ambientais, laudos e todas as fragilidades que existem nesses procedimentos. Discutem sobre as negociações, trâmites burocráticos, e as reiteradas violações de direitos indígenas – marcas de um modelo que atropela pequenas comunidades e seus projetos societários. A complexidade do problema fica evidente no esforço multidisciplinar: o dossiê é composto por análises de antropólogos, jornalistas, advogados, engenheiros, historiadores, sociólogos, cientistas políticos e biólogos. Conta também com textos e testemunhos de lideranças indígenas dos povos Xikrin, Arara e Juruna, que, em um importante exercício antropológico, problematizam a questão, desde a perspectiva indígena.

A expertise antropológica, o rigor etnográfico, e o acúmulo de experiências nos estudos transdisciplinares das comunidades indígenas tornaram-se mais relevantes diante desse modelo desenvolvimentista preconizado nas últimas décadas no Brasil no qual um grande número de obras e projetos ameaçam a integridade dessas e outras comunidades étnicas.

Antropologia da Política Indígena Experiências e dinâmicas de participação e protagonismo indígena em processos eleitorais municipais (Brasil-América Latina)

Ricardo Verdum e Luís Roberto de Paula (organizadores) (ABA, 2020)

Um livro de mais de quinhentas páginas centrado em “Antropologia da Política Indígena Experiências e dinâmicas de participação e protagonismo indígena em processos eleitorais municipais (Brasil-América Latina)” seria, por vários motivos, inviável de ser concebido algumas décadas atrás. Isso porque, o exercício da cidadania por sujeitos indígenas era limitado, ou mesmo negado, devido ao enquadramento jurídico destinado à condição indígena. No Brasil, até o ano de 1988 indígenas poderiam ter suas candidaturas negadas enquanto indivíduos tutelados, inaptos ao exercício pleno da vida civil.

Logo a obra organizada por Ricardo Verdum e Luis Roberto de Paula, de 2020, reflete uma mudança significativa no cenário político nas últimas décadas no que concerne as possibilidades do protagonismo indígena no país e na América Latina. Reflete também o alargamento dos próprios interesses na pesquisa com povos indígenas, ao incorporar outras formas de agenciamentos políticos como algo que merece a devida atenção etnológica. Decerto, o interesse indígena pela “política dos brancos” não é novo, e tampouco se restringe à política eleitoral; todavia, pode-se dizer que o interesse em analisar etnograficamente tais processos é recente.

O livro reúne catorze pesquisadores com interesses de pesquisa comuns. O pontapé inicial para a sua elaboração foi dado na 31ª Reunião Brasileira de Antropologia no Grupo de Trabalho “Política indígena na política não indígena: experiências de participação e protagonismo indígena em processos eleitorais”, coordenado pelos organizadores da obra. Composto por vários capítulos etnográficos, além do Brasil, o livro traz textos sobre o contexto colombiano, peruano, mexicano, equatoriano e argentino.

Este livro mostra, de forma particularmente estimulante, o modo como o enquadramento analítico dos agenciamentos indígenas vem dando relevo ao estudo das ações em si, das formas indígenas de interpelação na arena política e seus efeitos na sociedade. E, desse modo, se afasta da tentativa de percebê-los como atualizações e/ou continuidade dos ordenamentos culturais indígenas em novas situações. Aqui, destaco a obra como ilustrativa da consolidação de uma agenda de pesquisa sobre protagonismo, participação política e, também, intelectualidades indígenas.

A coleção “Lideranças Tradicionais” do Selo ABA

Maria Francisca: a Tembé | Tenetehara líder do Jeju / Maria Francisca da Silva; organização Jane Felipe Beltrão [et al.]. Rio de Janeiro : Mórula, 2017.

Judite: a menina da zona rural, guerreira Tenetehara / Judite Vital da Silva; organização Jane Felipe Beltrão. Rio de Janeiro : Mórula, 2017.

Cacique Miguel: o senhor das histórias Tembé | Tenetehara / Miguel Carvalho; organização Jane Felipe Beltrão, Rhuan Carlos dos Santos Lopes, Edimar Antonio Fernandes. Rio de Janeiro : Mórula, 2017

Com o objetivo de evidenciar sistematicidade, interconexões e sentidos às formas culturais, a atenção ao indivíduo foi, por algum tempo, lugar de controvérsia dentro da antropologia. Felizmente, isso ficou no passado. Estudos biográficos, o interesse pelas histórias de vida e as autobiografias tem ganhado mais e mais proeminência nos estudos feitos com povos indígenas. É o que faz a “Coleção Lideranças Tradicionais” publicada com o Selo ABA com o objetivo de oferecer ao leitor livros de caráter paradidático acerca da história de lideranças indígenas e as suas biografias. Atualmente, a coleção conta com três volumes dedicadas a indígenas do povo Tenetehara e Tembé Tenehara, são elas Maria Francisca, Judite Vidal da Silva e Cacique Miguel.

A iniciativa valoriza as histórias individuais e o protagonismo indígena no contar de suas próprias trajetórias. As lideranças foram ouvidas entre 2011-2016 no âmbito do projeto “Patrimônio, Diversidade Sociocultural, Direitos Humanos e Políticas Públicas na Amazônia Contemporânea” executado, por ocasião da cooperação, estabelecida entre o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro e o Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará.

Em um mundo onde os sujeitos indígenas foram transformados em existências opacas, homogêneas e pouco complexas, dar a devida importância às subjetividades individuais tornou-se uma importante luta política da qual a etnologia não pode se ausentar. Em diálogo com a etno-história e com os aportes sobre as histórias de vida, acredito que o gênero etnográfico voltado para escritas biográficas e autobiográficas seguirá crescendo. A “Coleção Lideranças Tradicionais” está alinhada com outros projetos contemporâneos como o “Os Brasis e suas memórias: os indígenas na formação nacional” coordenado por João Pacheco de Oliveira que culminou na criação da revista “Memórias Insurgentes” que tem também como um de seus objetivos reunir biografias de indígenas.

O trabalho dos antropóloges indígenas

No dia 28 de agosto de 2020, em plena pandemia do Coronavírus nós lançamos virtualmente a ABIA (Articulação Brasileira de Indígenas Antropóloges). Algum tempo depois, criamos o Comitê de Antropóloges Indígenas dentro da ABA.

Todavia, a relação do coletivo com a ABA é anterior à criação do comitê: em 21 de novembro de 2017 o nosso grupo embrionário demandou uma reunião com a presidência da ABA, na pessoa de Lia Zanotta. A reunião aconteceu na sede da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), na ocasião lemos uma carta que, dentre alguns pontos, denunciava: “a histórica invisibilização das e dos pensadores indígenas. Sabemos que essa associação tem anualmente publicado um número considerável de teses escritas por antropólogos não-indígenas. Acreditamos ser necessária a criação de uma cota específica de 20% dentre as publicações da ABA para autores indígenas”.

Infelizmente, na escrita desse texto com indicações de obras em antropologia e povos indígenas, não consegui encontrar no site de Publicações da ABA nenhuma coletânea, tese ou dissertação em antropologia de autoria indígena publicada. Diante disso, aproveito o espaço para indicar cinco dissertações e cinco teses defendidas por indígenas em Programas de Pós-Graduação em Antropologia Social. Com isso espero não apenas potencializar a sua leitura, mas quem sabe, chamar a atenção de Editoras para o nosso trabalho.

Dissertações:

“Indígenas Mulheres: Corpo território em movimento” de Braulina Baniwa (2022) com orientação de Sílvia Maria Ferreira Guimarães (PPGAS/UnB).

“Práticas agrícolas e saberes locais do Povo Potiguara da Paraíba: espaços e produção de alimentos a partir da mandioca” de Cristina Potiguara (2023) com orientação de José Glebson Vieira (PPGAS/UFRN).

“Mulheres Lideranças Indígenas em Pernambuco, espaço de poder onde acontece a equidade de gênero” de Elisa Pankararu (2019) com orientação de Russel Parry Scott (PPGA/UFPE).

“Situação social, dinâmica territorial e mobilização étnica na comunidade Serra do Truarú (Terra Indígena Serra da Moça, etnoregião Murupú, Boa Vista-RR)” de Eriki Wapishana (2019) com orientação de Alfredo Wagner Berno de Almeida (PPGAS/UFAM).

“Os Nawa nunca foram extintos”: regimes de memória, trajetórias indígenas e narrativas sobre os Nawa do vale do Juruá, Acre” de Tarisson Nawa (2023) com orientação de João Pacheco de Oliveira (PPGAS MN/UFRJ).

Teses:

“Articulação das Mulheres Indígenas no Brasil: em movimento e movimentando redes” de Jozileia Kaingang (2023) com orientação de Evelyn Martina Schuler Zea (PPGAS/UFSC).

“Nhandereko: nosso direito” de Vilmar Guarany (2022) com orientação de Mônica Thereza Soares Pechincha (PPGAS/UFG).

“Educação Escolar Indígena entre os povos de Mato Grosso: cinco casos, cinco estudos” de Chikinha Paresi (2018) com orientação de Bruna Franchetto (PPGAS MN/UFRJ).

“Letalidade branca: Negacionismo, violência anti-indígena e as políticas de genocídio” de Felipe Tuxá (2022) com orientação de Luís Cayon (PPGAS/UnB).

“Na educação continua do mesmo jeito”: retomando os fios da história Tembé Tenetehara de Santa Maria do Pará” de Rosani Kaingang (2017) com orientação de Jane Beltrão (PPGA/UFPA).


Felipe Tuxá é doutor em antropologia social pela Universidade de Brasília, professor Adjunto no Departamento de Antropologia e Etnologia da Universidade Federal da Bahia, membro do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFBA, Vice-Diretor da ANAI (Associação Nacional Indigenista), membro da Articulação Brasileira de Indígenas Antropóloges, membro da Comissão de Assuntos Indígenas (CAI) da Associação Brasileira de Antropologia.