Como a ciência pode dialogar com o conhecimento indígena

Pela primeira vez, revista Science publica artigo de pesquisadores indígenas brasileiros. Texto propõe integração de saberes para conservar biodiversidade e ampliar compreensão do mundo

O diálogo entre o conhecimento científico ocidental e o indígena é fundamental para a conservação da Amazônia. Ele deve ir além da tradução de conceitos e ideias, buscando formas de integrar os sistemas de conhecimento e ampliar nossa compreensão do mundo. Essas são as mensagens de um artigo publicado nesta quinta-feira (12) na revista Science, com autoria de pesquisadores indígenas e não indígenas.

Essa é a primeira vez que a revista publica um artigo com autoria de pesquisadores indígenas brasileiros. O texto não propõe substituir uma forma de conhecimento por outra, mas abrir caminhos para a produção de uma ciência mais holística. Para os autores, a compreensão de certos princípios indígenas — como o de que toda a vida está conectada — é chave para a manutenção da biodiversidade.

Neste texto, o Nexo explica o que são os conhecimentos indígenas, quais são suas contribuições para a conservação ambiental, como tem sido a relação da ciência com esses conhecimentos e o que propõe o artigo. Mostra também quais são os desafios para o diálogo entre a ciência ocidental e os conhecimentos tradicionais. 

O que são os conhecimentos indígenas

A publicação da Science não apresenta um conceito definitivo de  conhecimentos indígenas. Pode-se dizer, no entanto, que eles são as teorias e práticas desenvolvidas por vários desses povos na tentativa de entender o mundo, a partir de suas interações com a natureza. O artigo diz que há mais de 12 mil anos as populações originárias da Amazônia, por exemplo, têm construído seu corpo de conhecimentos sobre a dinâmica da floresta.

27% do território amazônico é formado por terras indígenas, habitadas por mais de 410 povos indígenas que vivem na região, segundo o artigo 

Os conhecimentos indígenas têm uma série de diferenças em relação ao conhecimento científico. Diferentemente da ciência ocidental, por exemplo, eles não distinguem o mundo natural do mundo da cultura, nem tratam os seres humanos como “agentes excepcionais separados dos ecossistemas”, segundo o artigo. O enquadramento indígena também “captura variáveis e relações ecológicas sutis, frequentemente negligenciadas por muitas ciências ocidentais tradicionais”, diz o texto.

O artigo apresenta o exemplo das teorias e práticas de povos indígenas do Alto Rio Negro, na Amazônia. Para essas populações, o mundo pode ser organizado em três domínios: terrestre, aéreo e aquático. Esses domínios são habitados não só por humanos, mas por outros seres, como animais, plantas e rios. Também há os chamados “encantados”, que habitavam o mundo antes dos humanos — e só podem ser acessados por pajés.

“Especialistas indígenas, geralmente xamãs [ou pajés], se comunicam e gerenciam essas relações nos domínios terrestre, aquático e aéreo. Eles entendem os modos de comunicação e relações de outros seres para realizar práticas que facilitem a manutenção de um ambiente saudável para a coexistência” 

Carolina Levis, Justino Sarmento Rezende e outros autores no artigo “Indigenizing Conservation Science for a Sustainable Amazon”, publicado nesta quinta-feira (12), na revista Science 

Orientadas pelos pajés, as práticas cotidianas dos povos do Alto Rio Negro buscam cuidar da saúde humana e do ecossistema. Outra característica de seus hábitos é a experimentação, com a manipulação dos elementos da natureza. Essa informação “ajuda a desconstruir o conceito naturalista e colonialista de floresta “intocada” ou desabitada (ou minimamente impactada) que orientou os sistemas de uso da terra colonial e pós-colonial por séculos e continua a influenciar a pesquisa científica e informar os tomadores de decisão”, diz o artigo.

“Os povos indígenas têm observado e analisado a dinâmica do ecossistema. […] Esses conhecimentos são organizados, legitimados e refinados por especialistas indígenas [os pajés]. Os laboratórios indígenas são atividades e conversas diárias e cerimoniais em que os especialistas transmitem conhecimento válido dentro de suas próprias comunidades. Os especialistas indígenas também compartilham seus conhecimentos com especialistas de outros grupos étnicos, transmitindo-os durante festivais interculturais, cerimônias ou por meio de casamentos interétnicos, por exemplo”

Carolina Levis, Justino Sarmento Rezende e outros autores no artigo “Indigenizing Conservation Science for a Sustainable Amazon”, publicado nesta quinta-feira (12), na revista Science

Quais são suas contribuições

Estudos citados no artigo na Science mostram que terras indígenas conservam pelo menos um terço da vegetação nativa, previnem a degradação e o desmatamento e protegem espécies ameaçadas. “Esses padrões refletem o fato de que muitos povos têm uma relação com o território e os ecossistemas diferente de sociedades ocidentais”, diz o texto. Os conhecimentos indígenas, nesse sentido, podem contribuir para:

  • expandir o conhecimento ecológico científico ocidental 
  • melhorar as avaliações e a conservação da biodiversidade
  • contribuir para a educação ambiental e a formulação de políticas

Para Carolina levis, pesquisadora da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), e Justino Sarmento Rezende, pesquisador indígena da Ufam (Universidade Federal do Amazonas), autores do artigo que conversaram com o Nexo, “as teorias e práticas dos povos indígenas em colaboração com pesquisas e ações orientadas à conservação oferecem um arcabouço maior e potencialmente mais eficaz para uma gestão verdadeiramente sustentável da região [amazônica]”.

O artigo propõe que a pesquisa científica incorpore princípios indígenas para produzir novos conceitos, métodos e ações de conservação na Amazônia. “A troca mútua pode aprimorar ambos os sistemas de conhecimento sem comprometer seus valores essenciais”, segundo o texto. O texto apresenta três princípios conectados com as teorias e práticas indígenas que podem tornar a ciência mais holística:

  • o reconhecimento de que há uma rede de relações entre humanos e outros participantes do ecossistema
  • a compreensão de que são necessárias certas práticas para manter essa rede funcionando
  • a percepção de que essas redes e atividades são cíclicas e seguem os movimentos das constelações e os ritmos da Terra

“Isto não é um argumento para a incorporação de crenças religiosas na prática científica”, diz o artigo. “É uma afirmação bem fundamentada de que as teorias e práticas indígenas, que têm apoiado o manejo do ecossistema amazônico por milênios, podem ser características centrais de uma ciência eficaz de conservação e restauração. E é especialmente apropriada no contexto do novo arcabouço ético e legal que está surgindo para defender os direitos da natureza.”

“Tudo tem limite. A Terra, bem como as espécies que fazem parte dela, têm limites de tolerância às mudanças climáticas. Um único sistema de conhecimento não será suficiente para enfrentar a emergência climática, é necessário o diálogo entre múltiplos conhecimentos, precisamos sentar todos na mesma mesa para decidir o que podemos fazer e projetar estratégias, soluções e inovações”

Justino Sarmento Rezende indígena do Alto Rio Negro, pesquisador da Ufam (Universidade Federal do Amazonas) e um dos autores do artigo, em entrevista ao Nexo 

Quais são suas relações com a ciência ocidental

Apesar das contribuições dos conhecimentos indígenas, a ciência ocidental tem um histórico negativo com eles. Ora ela se apropria desses saberes, ora ela os negligencia, segundo o artigo publicado na Science. Apenas nas últimas décadas os cientistas têm reavaliado essas relações, principalmente nas ciências da conservação, que têm dialogado mais com as teorias e práticas indígenas.

“Uma visão antropocêntrica e utilitária da natureza ainda prevalece em todo o mundo, pressionando os ecossistemas nativos a se tornarem terras agrícolas, pastoris e industriais, consideradas fundamentais para o desenvolvimento econômico. Mesmo quando as ações de conservação veem o valor intrínseco da biodiversidade, […] elas raramente consideram práticas preexistentes, relações históricas entre humanos e outras espécies e as visões indígenas da natureza”

Carolina Levis, Justino Sarmento Rezende e outros autores no artigo “Indigenizing Conservation Science for a Sustainable Amazon”, publicado nesta quinta-feira (12), na revista Science

Estudos citados no artigo mostram que, quando as leis de conservação proíbem qualquer tipo de uso e o manejo de espécies ou locais culturalmente importantes, ela isola os povos indígenas de seus territórios. Essa prática, segundo o texto, pode produzir uma “armadilha do conhecimento” que limita o envolvimento dos povos indígenas com o ambiente. Também reduz o sucesso a longo prazo das estratégias de conservação.

Esse histórico negativo ocorre com os conhecimentos não só indígenas, mas de outros povos tradicionais. No ensaio “Monoculturas da mente”, a intelectual indiana Vandana Shiva — que escreve a partir de sua experiência com comunidades rurais nos himalaias — diz que “os sistemas locais de saber no mundo inteiro têm sido subjugados por políticas de eliminação, não por políticas de debate e diálogo”. “O desaparecimento do saber local por meio de sua interação com o saber ocidental dominante acontece em muitos planos”, afirma.

“Primeiro fazem o saber local desaparecer simplesmente não o vendo, negando sua existência. Isso é muito fácil para o olhar distante do sistema dominante de globalização. Em geral, os sistemas ocidentais de saber são considerados universais. No entanto, o sistema dominante também é um sistema local, com sua base social em determinada cultura, classe e gênero. Não é universal no sentido epistemológico”

Vandana Shiva intelectual indiana, no ensaio “Monoculturas da mente”

Algumas experiências recentes tentam mudar esse cenário, como mostra o artigo publicado na Science. O Painel Científico para a Amazônia, desenvolvido por mais de 240 cientistas de 40 países, realizou a maior avaliação científica da região até o momento em diálogo com povos indígenas e comunidades locais, por exemplo. Pesquisadores na Tanzânia e em Moçambique também têm estudado trocas culturais entre humanos e outros animais a partir da observação de caçadores de mel, que se comunicam com os pássaros para encontrar ninhos de abelhas.

Os conhecimentos indígenas são ciência?

Os autores do artigo publicado na Science discutem os paralelos entre conhecimento indígena e ciência. Parte dos cientistas sociais e ambientais, segundo o texto, propõe que os saberes tradicionais sejam “reconhecidos em seus próprios termos, [mas] não necessariamente validados pela ciência da conservação para serem considerados legítimos”. O tema é considerado controverso.

Essa controvérsia se deve, entre outros motivos, aos critérios usados para definir o que é ciência ou não. A adoção do método científico, por exemplo, é fundamental para que um conhecimento seja classificado dessa forma. Embora possa variar de acordo com a área de estudo, ele costuma envolver uma sequência bem definida de procedimentos:

  • a definição de uma pergunta de pesquisa 
  • a elaboração de uma hipótese que responda a essa pergunta
  • a condução de experimentos que testem essa hipótese
  • a conclusão, que irá confirmar a hipótese ou não
  • a publicação do estudo, que devem ser passível de ser analisado e replicado

No texto “Relações e dissensões entre saberes tradicionais e saber científico”, a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha defende que os saberes tradicionais não são semelhantes ao científico. Apesar de ambos serem formas de procurar entender o mundo, os saberes tradicionais não têm a pretensão de serem universais, como a ciência, por exemplo. Eles também têm diferenças nas formas como são produzidos, validados e transmitidos.

“Há pelo menos tantos regimes de conhecimento tradicional quanto existem povos. É só por comodidade abusiva, para melhor homogeneizá-lo, para melhor contrastá-lo ao conhecimento científico, que podemos usar no singular a expressão ‘conhecimento tradicional’. Pois enquanto existe, por hipótese, um regime único para o conhecimento científico, há uma legião de regimes de saberes tradicionais”

Manuela Carneiro da Cunha antropóloga, no texto “Relações e dissensões entre saberes tradicionais e saber científico”, resultado de uma conferência em 2007 em reunião da SBPC (Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência)

Os autores do artigo na Science têm uma visão diferente. Para Levis e Rezende, os conhecimentos ocidentais e indígenas têm diferentes visões de mundo, mas “elevar ao status de ciência é uma das formas de reconhecer a relevância dos conhecimentos indígenas que têm sido produzidos ao longo de milênios”. Para eles, é necessário valorizar especialistas indígenas e investir na formação de novas gerações de especialistas, não só nas aldeias, mas nas universidades.

“Embora os conhecimentos e práticas indígenas possam não resultar da aplicação de nenhuma metodologia científica ocidental específica, eles estão envolvidos na elaboração e refinamento constantes de descobertas empíricas e teóricas, que são avaliadas e validadas pelos próprios especialistas dos povos [os pajés], local e regionalmente, ao longo do tempo”

Carolina Levis, Justino Sarmento Rezende e outros autores no artigo “Indigenizing Conservation Science for a Sustainable Amazon”, publicado nesta quinta-feira (12), na revista Science 

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