Vinte e quatro mulheres Yanomami (Yanomam, Yanomami, Sanöma e Ninam) e Ye’kwana criaram uma cartilha sobre Direitos Humanos para as mulheres da maior terra indígena do Brasil, a Terra Indígena Yanomami. A publicação é resultado de uma oficina sobre Direitos Humanos, ministrada na última semana de novembro, em Boa Vista.
As responsáveis pela cartilha representaram as 10 associações indígenas do território, que em um movimento inédito indicaram apenas mulheres para suas respectivas representações. A Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e o Instituto Socioambiental (ISA) ministraram a formação com apoio do Ministérios dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC)
O documento reflete os aprendizados de combate a violência contra mulher, explicando as leis Maria da Penha e do Feminicídio, além de abordar aspectos culturais da convivência Yanomami, como o direito ao casamento, direitos de serviço do genro e de recursos da floresta. Durante a oficina, as mulheres apresentaram diversas preocupações sobre saúde e as violações do direito à atenção diferenciada, reflexões que também foram transmitidas no material final.
“Nós indígenas queremos ficar em paz vivendo na nossa comunidade, sem ter nem um conflito com os nossos idosos e as nossas crianças. Queremos que os brancos entendam que a gente também precisa viver feliz, assim como eles vivem”, diz um dos poucos trechos em português do material escrito predominantemente em Yanomami e ilustrado com artes indígenas pintadas durante a oficina.
A oficina começou refletindo sobre as regras, direitos e deveres de convivência entre as diferentes comunidades, em seguida os indígenas foram apresentados aos conceitos e história dos Direitos Humanos e Direitos Indígenas. A partir do terceiro dia, a formação se aprofundou nos direitos das mulheres e direito à saúde da mulher.
Ana Lúcia Paixão Vilela, representante da Associação das Mulheres Kumirayoma (AMYK), apoiou com a tradução para as indígenas que não falam português e se sentiu entusiasmada para dividir o que aprendeu com as mulheres de Maturacá. O que mais surpreendeu a ela durante a formação foi como as mulheres passaram a ser inseridas nos Direitos Humanos.
“Antes não havia algo específico para o direito das mulheres porque eram os homens que faziam os direitos, só eles falavam e não éramos totalmente contempladas, mas fomos evoluindo e foi pensada a criação de direitos para as mulheres”, disse.
Conforme Manuela Otero Sturlini, assessora do Instituto Socioambiental (ISA), a participação das mulheres em formações políticas e formação sobre Direitos Humanos era um pedido das Yanomami durante a invasão garimpeira e sequência de ataques do governo de Jair Bolsonaro (2019-2022). Ao mesmo tempo, as mulheres Yanomami pediam, durante o Encontro de Mulheres Yanomami, por uma estruturação de uma linha de cuidado e a reestruturação do Programa de Saúde da Mulher.
“Em 2023, apresentamos o Programa de Saúde da Mulher e foi muito profundo como elas colocaram que havia uma necessidade de respostas. Então, no último ano fizemos uma consolidação de uma rede de atores envolvendo universidades, associações, órgãos públicos e organizações não governamentais para responder a esta necessidade”, explicou Manuela.
Como os cantos Ye’kwana preservam saúde, roças e os Direitos Humanos
Para Jucélia Magalhães Rocha, uma jovem Ye’kwana que participou da oficina e atua como Agente Indígena de Saúde (AIS) na região de Auaris, a parte da oficina focada em saúde irá lhe possibilitar a oportunidade de melhorar os atendimentos que faz junto aos psicólogos da região.
“Eu sou AIS na minha comunidade, acompanho as psicólogas e fazemos reuniões com mulheres. Então, nestas reuniões poderei falar sobre os direitos das mulheres na saúde e na segurança”, disse a jovem Ye’kwana.
Jucélia foi acompanhada por Elisa Ye’kwana, que tem um forte papel entre as comunidades Ye’kwana, sendo conhecedora de cantos que mantém as roças fortes e os indígenas bem nutridos.
A antropóloga Karenina Vieira Andrade, que participou da oficina e que faz parte do corpo docente da UFMG, trabalha com os Ye’kwana e resumiu parte da história de Elisa. Ela explicou que a anciã vivia em Fuduuwaaduinha, onde ocorreu o V Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’kwana, mas em 2008 se mudou para Kuratanha.
Conforme Karenina, as comunidades são muito próximas e os parentes se visitam constantemente, o que ajuda a preservar e repassar aos mais jovens conhecimentos que os anciãos, como Elisa, conhecem profundamente.
“Ela conhece um conjunto de cantos associado às roças para quando eles abrem as roças porque as mulheres Ye’kwana são as donas das roças, são como se fossem filhos, e elas precisam ter um cuidado constante porque a roça é viva”, explica a antropóloga.
Como a roça é considerada um ser vivo pelos Ye’kwana os cantos associados a rituais de cuidado, mantém o ser agradado para gerar bons alimentos. Cada etapa da roça – plantação, cultivo, cuidados e colheita – está associada a um conjunto de cantos e cuidados diferentes, dos quais Elisa executa com maestria.
“Isso é a garantia de saúde das pessoas. Se esse conhecimento se perde, a comunidade inteira fica sob risco de não ter um bom alimento. Garantir que esse conhecimento das mulheres passe de geração para geração é referendar o que está nos dispositivos constitucionais de que os povos indígenas têm direito a viver de acordo com os seus usos e costumes”, disse Karenina.
O conjunto de conhecimentos mantém Elisa como uma figura forte e extremamente respeitada entre os Ye’kwana. Além disso, há um forte interesse da parte dela para que meninas jovens aprendam os rituais para manter as comunidades Ye’kwana fortes.
XV Encontro de Mulheres
A Oficina de Direitos Humanos para Mulheres da Terra Indígena Yanomami também foi uma atividade de continuação do XV Encontro de Mulheres Yanomami, que ocorreu na segunda semana de outubro. Esta foi a maior edição do evento, discutindo temas como a gestação, o parto, o planejamento reprodutivo, os rastreamentos de câncer de colo do útero, soberania alimentar e os atendimentos na Casa Indígena de Saúde (Casai) e na maternidade.
Para Érica Dumont, professora-adjunta da Escola de Enfermagem da UFMG, que ministrou parte da oficina e esteve no XV Encontro de Mulheres Yanomami, os eventos consolidaram o desejo das indígenas de reestruturar o que foi perdido durante a pandemia de Covid-19 e de resgatar as relações desgastadas durante o governo de Jair Bolsonaro.
“A gente escutou tanto nesta oficina, quanto no Encontro de Mulheres, relatos de violações ao longo dos anos no acesso à maternidade e à Casai no respeito aos costumes, aos hábitos e alimentação, além dos lugares de repouso e de receber comunicação sobre o tipo de tratamento que recebem com um intérprete”, pontuou.
Érica explicou ainda que as violações ocorrem mesmo no território com atendimento precário e falta de exames. “Mas é importante destacar que há uma melhora nesta gestão, elas estão felizes e confiantes com a atuação do DSEI”, destacou.
Ainda conforme a especialista, a atenção diferenciada é um direito garantido na Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, isto quer dizer que os indígenas têm o direito de ser atendimento de um jeito que considere os modos de vida, os costumes, e as perspectivas de saúde deles, como por exemplo, o respeito aos xamãs e as parteiras.
“Essas violações muitas vezes estão ligadas ao desrespeito aos costumes, mas há casos que extrapolam e são desrespeitos que seriam ofensas a qualquer ser humano”, afirmou.
A atenção diferenciada inclui, além dos aspectos do modo de vida, a questão logística. No contexto da Terra Indígena Yanomami, Érica explica que para atender uma mulher Yanomami é preciso uma escala de voos e há uma dinâmica diferente para acessar os lugares, pois cada comunidade tem as suas especificidades.
“A atenção diferenciada pode, ainda, incluir tecnologias diferenciadas. Muitas das mulheres Yanomami seriam classificadas, de acordo com o atual protocolo de pré-natal, como alto risco gestacional por terem baixo, peso, pela idade e pela relação com a malária, tudo isso, implicaria que elas fossem removidas da floresta para a cidade, mas sabemos que é inviável e, de fato, não desejamos que isso aconteça. É preciso incorporar um atendimento de alto risco na floresta”, avalia.
A oficina de Direitos Humanos faz parte de um projeto de extensão da UFMG e tem o financiamento do MDHC, o ISA é parceiro desta iniciativa. O objetivo é formar grupos indígenas Yanomami em Direitos Humanos. Além do grupo de mulheres, jovens diretores das 10 associações da Terra Indígena Yanomami já passaram pelo processo de formação de Direitos Humanos.
Oficinas para os diretores das associações
A I Oficina de Formação em Direitos Humanos para Jovens Diretores Yanomami e Ye’Kwana durou seis dias e contou com a participação de todas as 10 associações que representam a Terra Indígena Yanomami. As lideranças estiveram reunidas em Boa Vista durante a primeira quinzena de julho.
Esta oficina apresentou conceitos base dos Direitos Humanos enquanto os relacionava com a história da maior terra indígena do país, com o Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) e o Protocolo de Consulta.
“A água limpa é parte dos Direitos Humanos. Se você fica doente, precisa ter acesso a remédios que também são Direitos Humanos. Tudo que defende a nossa vida, como a água limpa, a floresta conservada, são Direitos Humanos. Enquanto tudo que ataca a vida, como o garimpo, a guerra, a agressão contra crianças e mulheres, são violações dos direitos humanos”, explicou Marcelo Moura, antropólogo consultor do Ministério de Direitos Humanos, aos indígenas durante a oficina.
A Hutukara Associação Yanomami (HAY), associação com duas décadas de atuação, enviou novas lideranças para participar e aprender sobre o tema, mas líderes com mais experiência, como Dário Kopenawa discursaram durante a oficina. O vice-presidente da HAY apresentou o PGTA e Protocolo de Consulta da Terra Indígena Yanomami aos diretores das outras nove associações.
“Isso é um compromisso nosso, dos povos Yanomami e Ye’kwana. É nossa responsabilidade e tem tudo aqui sobre o que pensamos sobre saúde, língua, educação e geração de renda”, disse durante a explicação.
Para Edmilson Estevão Damião, primeiro secretário da Associação Wanasseduume Ye’kwana, ouvir lideranças como Dário Kopenawa e Maurício Ye’Kwana o inspirou a manter a proximidade entre todas as associações da Terra Indígena Yanomami.
“Achei muito importante a apresentação dos diretores que estão na luta por nós há mais tempo. Foi muito bom ouvir o Maurício e o Dário, eles inspiraram muito as novas lideranças. Também achei bom a união e a aproximação entre todas as associações da Terra Indígena Yanomami”, declarou ao ISA.
Conforme Lídia Montanha Castro, coordenadora do Programa Rio Negro do ISA, a ideia de juntar lideranças experientes com novos líderes é justamente para que haja troca de informações e que os novos diretores possam estar mais capacitados. Montanha e Manuela Otero, estiveram como consultoras representando o ISA.
“O objetivo deste trabalho é alcançar as associações da Terra Indígena Yanomami, por isso há participação de representantes das 10 associações que existem atualmente. Além de ser direcionado às 10 associações, há outra característica mais específica, que é formar novos diretores”, declarou Montanha.
Para além de compartilhar os problemas, as lideranças conseguiram assimilar como o conhecimento sobre Direitos Humanos pode funcionar como uma ferramenta de defesa do território e pretendem fazer o conhecimento ecoar em suas respectivas comunidades, como pontua Francilene dos Santos Pereira, moradora de Maturacá e articuladora da Associação das Mulheres Yanomami Kumirayoma (AMYK).
“Eu gostei muito de descobrir mais ferramentas para que possamos defender o território. Acho que é um tema importante para trabalhar com mulheres e a juventude, é isso que vou levar daqui para a minha comunidade”, afirmou.
Uma das questões recorrentes levantadas pelos indígenas foi a violação dos Direitos de crianças e mulheres Yanomami. Os relatos corroboram as informações de que mulheres são abusadas por garimpeiros, enquanto crianças morrem ou são retiradas de maneira ilegal do território por invasores.
“É importante que estejamos todos ligados, juntos e unidos para enfrentar os problemas, principalmente os abusos contra nossas mulheres e mortes de nossas crianças causadas pelos garimpeiros, assim como evitar que governantes violem os nossos direitos”, declarou o segundo tesoureiro da Associação Kurikama Yanomami, Roni Raitateri Yanomami.
Daniel Jabra, Lídia Montanha Castro e Marcelo Moura explicaram aos Yanomami os conceitos de colonização e escravidão contextualizando com casos atuais e relacionando as situações em que garimpeiros obrigam os indígenas a trabalhar após receberem itens como cobertor, bebida alcoólica e comida.
“Isso é a colonização, eles vão comendo o território, a cultura e tudo mais até não sobrar nada”, disse Jabra ao explicar sobre como a colonização ocorre pela igreja, pelos garimpeiros e até mesmo pelo governo.
Esta primeira oficina foi a primeira iniciativa da parceria UFMG e ISA, com apoio do MHDC, com o objetivo de formar as 10 associações da Terra Indígena Yanomami através de dois públicos: os jovens diretores e as mulheres.