Até que algum capixaba ou paranaense reclame, o Rio de Janeiro é o estado que conta com a maior área de manguezais da região sudeste, como informa a reportagem “A saga dos manguezais”, publicada em “O Globo” de 12 de outubro de 2020. A maior área de manguezal do Espírito Santo encontra-se na baía de Vitória, enquanto que a maior do Paraná cresceu dentro da baía de Paranaguá.
A matéria jornalística colhe informações do “Atlas dos Manguezais”, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), edição de 2018. O Brasil conta com uma área de manguezal equivalente a 1,3 milhão de hectares, ou seja, uma extensão correspondente a um milhão e trezentos mil campos de futebol. O estado do Rio de Janeiro conta com 13,7 mil hectares, sendo que a maior parte se encontra no interior da baía da Guanabara: 74 Km². A baía de Sepetiba tem 29 Km². Em terceiro lugar vem a baía da Ilha Grande, com 8 Km² quilômetros, enquanto que o delta do Paraíba do Sul tem 6 Km². As estimativas foram feitas a partir de imagens de satélite, que mostram quantidade e ocultam qualidade. Para avaliar a qualidade é preciso o insubstituível exame no terreno.
Minha primeira indagação emerge da expressão “Complexo do Paraíba do Sul”. Qual o significado dela? Estuário (ponto em que a água do rio se encontra com a água do mar) ou os rios e lagoas próximos ao degradado rio? A segunda indagação refere-se à atenção dada à metade meridional do Rio de Janeiro. Considerou-se apenas a baia de Guanabara, a baía de Sepetiba e a baía da Ilha Grande. Em outras palavras, da baía de Guanabara a Parati, no extremo sul fluminense. A metade setentrional – ou seja, as regiões dos Lagos e Norte Fluminense – foi simplesmente ignorada.
Não sou biólogo nem geógrafo. Sou apenas um historiador que estudou e ainda estuda, entre outros temas, a relação das sociedades humanas com o ecossistema costeiro manguezal. A esse respeito, publiquei o livro “Os manguezais do sul do Espírito Santo e do norte do Rio de Janeiro com alguns apontamentos sobre o norte do sul e o sul do norte” (Campos dos Goytacazes: Essentia, 2014).
Conheço relativamente bem os manguezais do sul fluminense, da baía de Sepetiba e da baía da Guanabara. Conheço melhor os manguezais da região dos Lagos e acredito conhecer com intimidade os manguezais que se estendem do rio Macaé ao rio Itapemirim, já no Espírito Santo. Em relação a todos eles, não me contentei com imagens de satélite.
No sul fluminense, afundei os pés na lama de alguns manguezais. A distância entre as nascentes desses rios, na Serra do Mar, e a linha costeira é pequena, não permitindo que eles desenvolvam cursos longos. Portanto, seus estuários também não são expressivos e só permitem o desenvolvimento de pequenos manguezais. Pode ser que somando todos os manguezais do sul fluminense, o total coloque a região em terceiro lugar, mas cabe também examinar as condições desses manguezais. Tirando os da Ilha Grande, que não conheço, os que estão no continente sofrem o assédio da urbanização e de empreendimentos turísticos. Existem marinas e espigões maciços em toda extensão da costa sul-fluminense.
Na baía de Sepetiba, os manguezais também estão estropiados. Mesmo assim, os pesquisadores sempre encontram neles elementos que merecem ser pesquisados, como fez a bióloga Flávia Rebelo Mochel num pequeno manguezal da baía de Sepetiba (“Endofauna do manguezal”. São Luís: Editora da Universidade Federal do Maranhão, 1995). Os manguezais são resilientes, mas todos os manguezais que eu visitei na baía de Sepetiba me pareceram excessivamente poluídos e degradados. Na lama deles, eu não arriscaria a afundar os pés, embora já tenha vivido aventuras perigosas no mundo da lama.
Em 1966, acompanhei um curso de ecologia ministrado pelo professor Segadas Vianna, que havia chegado do Canadá, se bem me lembro, depois de concluir seu doutorado. Suas aulas práticas eram na Barra da Tijuca, então um mundo encantado não muito diferente daquele que Armando de Magalhães Corrêa descreveu em seu livro “O sertão carioca” (Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1936). No ano seguinte, fiquei acampado por quinze dias naquele lugar paradisíaco por conta do serviço militar. Lembro muito bem de que eu complementava a alimentação com frutos de restinga, que eram encontrados em abundância. Os manguezais eram íntegros e fascinantes. Eles ocupavam área muito maior que a atual.
Trinta anos depois, voltei à Barra da Tijuca e não mais reconheci o lugar em que passei dias maravilhosos. A urbanização arrasou uma restinga frágil. Jamais caberia uma urbanização tão pesada e anárquica como a que lá ocorreu. As limpas lagoas foram cercadas por arranha-céus, condomínios fechados e favelas. Quem desejar uma aula prática sobre desigualdades sociais visite a Barra da Tijuca. Quem quiser conhecer a criminalidade, a violência e as milícias visite a Barra da Tijuca. Quem desejar conhecer intensos impactos sociais visite a Barra da Tijuca. O manguezal é um ecossistema com grande resiliência, mas as condições ambientais da Barra da Tijuca são ultrajantes. Todas as lagoas estão poluídas no seu limite de resiliência. Na verdade, a poluição já ultrapassou esse limite.
E a gente navega a baía de Guanabara estarrecido. A área dos manguezais pode até ter aumentado em Guapimirim, mas que sejam examinados os pequeninos rios que ainda desembocam na baía. A poluição deles por esgoto e lixo ultrapassa qualquer limite. Examinemos as margens da baía. Enormes lixões ainda existem por ali. Lembremos o grande derramamento de óleo causado pela Petrobras em 2000. Os especialistas asseguram que o óleo é letal para o manguezal. Na Guerra do Golfo (1991), o petróleo foi usado por Saddam Hussein como arma contra a coalização anti-Iraque. Se sua área foi reduzida, as espécies ensinaram aos cientistas a arte de resistir. Existe, inclusive, um estudo sobre os mecanismos desenvolvidos pela “Avicennia maritima” para sobreviver (BÖER, Benno. Anomalous pneumatophores and adventitious roots of Avicennia marina (Forssk.) Vierh. Mangroves two years after the 1991 Gulf War oil spill in Saudi Arabia. “Marine Pollution Bulletin” nº. 27. 1993).
Na baía de Guanabara, que sofre um processo estrutural e contínuo de degradação já denunciado por Pedro Soares Caldeira (“O corte do mangue: breves considerações sobre o antigo e atual estado da Baía do Rio de Janeiro, consequências da destruição da árvore denominada mangue, método bárbaro da pesca e decadência desta indústria”. Rio de Janeiro: Tipografia Imp. e Const. de J. Villeneuve & C., 1884), Magalhães Correa na década de 1930 (“Águas cariocas: a Guanabara como natureza”. Rio de Janeiro: Outras Letras, 2016) e Dorothy de Araújo e Norma Crud (“Os manguezais do recôncavo da baía de Guanabara”. Rio de Janeiro: Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente, 1979), os pescadores são unânimes em afirmar que a pesca é uma atividade em declínio.
Atravessemos a serra do Inoã, que separa a baía de Guanabara da Região dos Lagos. Entramos em Maricá, com seu complexo de lagoas interligadas. Há contato do complexo com o mar e, em vários pontos, desenvolvem-se manguezais, embora pequenos em virtude dos exíguos espaços disponíveis para o ecossistema.
Em direção leste, atingimos o complexo lagunar de Saquarema, onde também existem manguezais. A salinidade aumenta em direção à lagoa de Araruama, uma das maiores do Brasil e hipersalina. Uma das crenças populares é a de que mangue gosta de sal. Sim, gosta. O sal afasta plantas concorrentes de água doce. Mas a tolerância das plantas de mangue à salinidade tem limites. Por isso, é impressionante encontrar exemplares de siribeira (“Avicennia schaueriana”) e de mangue-de-botão (“Conocarpos erectus”) na lagoa de Araruama em vários pontos. Existe o Parque Ecológico Dormitório das Garças Walter Bessa Teixeira para proteger um pequeno bosque com essas espécies no Porto dos Carros, às margens da lagoa de Araruama.
Em Búzios, uma surpresa nos aguarda: típicos manguezais de franja ou borda, ou seja, manguezais que não se desenvolvem em estuários, como é comum, mas na enseada do munício, entre o rio Una e a Ponta da Sapata. A enseada é protegida da forte energia marinha, o que permite o desenvolvimento de manguezais sem a necessidade de uma fonte visível de água doce na sua retaguarda. O mais famoso manguezal de franja do estado é o conhecido Mangue de Pedra.
A partir do rio Una, que ainda é pequeno, começam a se suceder os maiores rios do estado. Numa Região dos Lagos ampliada que eu convencionei, desembocam os rios São João, das Ostras e Macaé, todos eles, como é de se esperar, com manguezais nos estuários. O rio Macaé separa duas províncias geológicas e botânicas. Na sua margem direita, a costa é toda pedregosa, com pequenas restingas entre uma proeminência pedregosa e outra. Na foz do rio São João, a restinga capturou uma ilha e a transformou num tômbolo.
Pelo prisma da botânica, o rio Macaé marca o limite meridional de distribuição da “Avicennia germinans”, uma espécie de siribeira cujos limites meridionais foram se deslocando de acordo com a pesquisa. Jorge A. Jimenez e Ariel E. Lugo situaram esse limite no Espirito Santo (“Avicennia germinans” (L) L. Black mangrove. “United State Forest Service Silviculture” n. 4, 1985). Posteriormente, Norma Crud e Dorothy de Araujo fixaram esse limite no rio Paraíba do Sul (FEEMA. “Relatório técnico sobre manguezal. RT 1123”. Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente: Rio de Janeiro, 1980). Por fim, Norma Crud reconheceu o rio Macaé como limite meridional (MACIEL, Norma Crud e SOFFIATI NETTO, Aristides Arthur. Novos limites para a distribuição geográfica de “Avicennia germinans” (L.) Stern – Avicenniaceae – e “Montrichardia arborecens” (L.) Schott – Araceae, Brasil. “Anais do IV Simpósio de Ecossistemas Brasileiros”, vol. IV. Águas de Lindóia: Aciesp, 1998). Há poucos quilômetros ao sul, no rio das Ostras, a siribeira que ocorre é a “Avicennia schaueriana”. Todos os pesquisadores que consultei são unânimes em reconhecer que só encontram esta segunda espécie de metade do estado do Rio de janeiro para baixo.
O manguezal do rio Macaé apresenta grande interesse para quem estuda anomalias em plantas. O impacto da urbanização e do óleo na água, pelo que se supõe, causou deformações em exemplares de siribeira. Já existem estudos sobre tais anomalias (LUGO, A. E.; CINTRÓN, G.; GOENAGA, C. El ecosistema del manglar bajo tensión. “Anales del seminario sobre el estudio científico e impacto humano en el ecosistema de manglares”. Colômbia: Unesco, 1980; SNADEKER, S.C.; JIMENEZ, J.A. e BROWN, M.S. Anomalous aerial roots in Avicennia germinans (L.) in Florida and Costa Rica. “Bull. Mar. Sci” nº 31 (2). 1986, 467-470; MACIEL, Norma Crud e SOFFIATI NETTO, Aristides Arthur. Raízes aéreas em Avicennia germinans (L.) Stern – Avicenniaceae, com emissão de subpneumatóforos. Rio Macaé, Macaé, RJ, Brasil. “Anais do IV Simpósio de Ecossistemas Brasileiros”. Águas de Lindóia: Aciesp, 1998).
Mas não há motivos para exaltar os manguezais da Região dos Lagos. Muitos estão ameaçados, enquanto que outros estão degradados, como o de Macaé. Lá, a urbanização caminha para a sua supressão. Caminhando pela restinga de Jurubatiba, como fiz nos anos de 1980, não se encontra, sequer, um pé mangue. Todavia, Renato Herz, valendo-se de imagens de satélite, encontrou um manguezal considerável na lagoa de Carapebus (“Manguezais do Brasil”. São Paulo: EDUSP, 1991). Somente no fim dessa restinga, em Barra do Furado, três pequenos manguezais se formaram. Dois são antigos, com origem ainda não elucidada. Um deles, o menor de todos, é um verdadeiro enigma. O terceiro é novo. Acompanhei sua formação de perto. Hoje, ele já é frequentado pelo caranguejo-uçá.
Seguindo adiante, mais uma zona comprida representada por estreita faixa de areia ligando a restinga de Jurubatiba à restinga de Paraíba do Sul, a maior do estado do Rio de Janeiro. No final dela, encontra-se uma relíquia na lagoa do Açu, antigamente um rio que perdeu a competência de manter sua foz aberta por interferência do Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS). Era o belo rio Iguaçu, hoje lagoa do Açu. Resistiu nela um manguezal ribeirinho, hoje manguezal de bacia ou enclausurado. Quatro espécies são encontradas nele: o mangue vermelho, o mangue branco, a siribeira e o mangue de botão. Esta última aprecia salinidade, mas não é uma verdadeira espécie de mangue. Ocorre na restinga também. A salinidade aumenta no Cabo de São Tomé, acidente geográfico de referência já no século XVI. Além da maior população de mangue-de-botão do estado, o complexo lagunar abrange a lagoa Salgada, mais hipersalina que a de Araruama. Suspeito da existência de marismas em suas margens e espero um ecólogo para examiná-la. A formação de estromatólitos recentes projetou a lagoa Salgada no mundo. O conjunto forma um dos recantos mais privilegiados do estado em termos de biodiversidade. Navegar a lagoa do Açu é navegar num mundo encantado. Embora o conjunto esteja protegido pelo Parque Estadual da Lagoa do Açu – PELAG, os perigos sempre existem.
O próximo passo nos coloca na foz do rio Paraíba do Sul, onde se desenvolveu um típico manguezal ribeirinho. A água doce na composição do estuário favorece a invasão de plantas não-exclusivas de manguezal, como a samambaia-do-brejo (“Acrostichum aureum”), o mololô (“Annona glabra”), o algodoeiro-da-praia (“Talipariti pernambucense”), o rabo-de-galo (“Dalbergia ecastaphyllum”), a amendoeira (“Terminalia catappa”), aroeira (“Schinus terebinthifolius”) e a aninga (“Montrichardia linifera”). Esta última confere ao manguezal um aspecto amazonense. O Paraíba do Sul já foi tomado como o limite meridional de distribuição dessa espécie de aninga. Ela foi confundida por muito com a “Montrichardia arborecens”. Uma comunicação de Norma Crud mostrou que a espécie alcança a lagoa de Gruçaí, outrora um dos braços do delta do Paraíba do Sul (MACIEL, Norma Crud e SOFFIATI NETTO, Aristides Arthur. Novos limites para a distribuição geográfica de Avicennia germinans (L.) Stern – Avicenniaceae e Montrichardia arborecens (L.) Schott – Araceae, no Rio de Janeiro, Brasil. “Anais do IV Simpósio de Ecossistemas Brasileiros”, vol. IV. Águas de Lindóia: Aciesp, 1998). Cabe agora discutir o que vem a ser complexo do Rio Paraíba do Sul, conforme menciona a matéria jornalística que ensejou estes comentários. É a foz atual dele, com dois ou três braços ou inclui mais os três braços do passado?
Outro aspecto da foz do rio Paraíba do Sul é o substrato argiloso ao lado do lamoso. O transporte de sedimentos argilosos pelo rio na formação da planície é responsável por esta característica. Daí, proprietários rurais terem desmatado grandes extensões do manguezal para a criação de gado. No manguezal do Paraíba do Sul, a boiada solta pelo ministro Ricardo Salles realmente passou. Mas os bois ainda não atuaram como bombeiros porque a umidade é acentuada e não deixa incêndios ocorrerem.
Seguindo em direção ao Espírito Santo, encontramos manguezais significativos no pequeno rio Guaxindiba, sempre confundido com o Guaxindiba que deságua na baía da Guanabara, e no rio Itabapoana, cuja inteira extensão foi usada como divisa entre Rio de Janeiro, Espírito Santo e Minas Gerais.
Não há, nesse artigo, nenhuma intenção ufanista de exaltar os manguezais das Regiões dos Lagos e Norte Fluminense. A intenção é mostrar que eles também existem a leste da baía da Guanabara e que contém particularidades não encontradas nos manguezais da Guanabara e Parati. Essas particularidades não podem ser percebidas em imagens de satélite. Não é a área ocupada pelos manguezais o que importa, mas a natureza deles. Isso só é possível com um conhecimento próximo ao ecossistema.
De todos os manguezais que apontei a leste da baía da Guanabara, destaco três para o conhecimento de leigos, imprensa e cientistas: o Mangue de Pedra, em Búzios, o mangue da lagoa do Açu e o mangue do Paraíba do Sul. O do Açu fica quase inteiramente nos limites do município de Campos, com apenas uma parte mínima no município de São João da Barra. O do Paraíba do Sul tem a maior parte dentro do município de São Francisco de Itabapoana, com algumas manchas no município de Campos dos Goytacazes.