O Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio), órgão do governo que cuida das áreas protegidas do país, passará a adotar, a partir deste mês, novos procedimentos ao tratar do complexo tema da presença de populações tradicionais em unidades de conservação de proteção integral. As novas práticas seguem recomendação da Advocacia Geral da União, que fez uma “releitura” da norma que rege o tema, a Lei Federal nº 9.985/2000, conhecida como Lei do SNUC. O novo posicionamento do ICMBio tem dividido a opinião de especialistas.
A recomendação da AGU é para que o órgão ambiental federal não mais proceda com a desafetação das áreas ou celebre Termos de Compromisso temporários com as comunidades residentes no interior das unidades de proteção integral, como tem sido prática, desde a instituição do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, em 2000.
A Lei do SNUC, que em 2021 atingiu a maioridade, considera como Unidades de Conservação de Proteção Integral aquelas com o objetivo básico de preservar a natureza, livrando-a, o quanto possível, da interferência humana. Nesta categoria de unidade, criada para salvaguardar a representatividade de porções significativas e ecologicamente viáveis dos ecossistemas brasileiros, só as atividades indiretas de uso são permitidas.
Segundo o artigo 42 da Lei do SNUC, as populações tradicionais residentes em unidades de conservação nas quais sua permanência não seja permitida serão indenizadas ou compensadas, e devidamente realocadas pelo Poder Público. Até que o reassentamento seja possível, um Termo de Compromisso é firmado, no qual são estabelecidas as normas e ações específicas destinadas a compatibilizar a presença de tais populações com os objetivos da unidade.
Releitura da Lei do SNUC
O que a AGU propõe é que o ICMBio passe a considerar uma “dupla afetação”, na qual as comunidades tradicionais não serão mais retiradas das unidades, mas “compatibilizadas” a elas, tendo suas práticas e usos incorporados no Plano de Manejo da UC.
“[…] Não há sentido em se pensar em indenizações das populações tradicionais afetadas pelo simples fato de que não terão que ser retiradas dos limites da UC, e sim compatibilizadas”, diz trecho do despacho, enviado no dia 8 de novembro pelo Procurador-Chefe Nacional da Procuradoria Federal Especializada (PFE) ao ICMBio, Dilermando Gomes de Alencar. Com histórico profissional no setor Elétrico, Alencar assumiu o cargo em 29 de junho de 2020.
O despacho da PFE é baseado em um parecer do mesmo órgão, um pouco mais antigo, de setembro de 2021. No parecer, um documento de 25 páginas, os procuradores da PFE defendem que o direito das populações tradicionais de permanecerem em seus territórios está previsto na Constituição Federal (artigos 215, 216 e 231 da CF/88 e Artigo 68 da Ato das Disposições Constitucionais Transitórias) e na Convenção nº 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais.
“[…] opina-se pela releitura da Lei n° 9.985/2000, especialmente as regras relativas ao seu art. 42, passando por um filtro constitucional e convencional e interpretação sistemática em relação ao ordenamento jurídico vigente, no sentido de se considerar a possibilidade de manutenção permanente (ou sem prazo determinado) das populações tradicionais inerentes à diversidade biocultural afeta à unidade de conservação, que precisam e dependem desse espaço necessário e inamovível para sua identidade ser afirmada, conforme fundamentação do presente parecer”, diz trecho do documento, ao qual ((o))eco teve acesso.
Segundo webinar realizado nesta quarta-feira (24) pelo ICMBio e pela Procuradoria Federal Especializada da AGU junto ao órgão para discutir o assunto, a existência de populações tradicionais em UCs de proteção integral é realidade para a maioria das 149 unidades que hoje existem neste grupo.
“A procuradoria e o ICMBio avançaram e foram além da literalidade do SNUC para assegurar a convivência das populações. Tirar a temporalidade dessa convivência e trazer para uma noção de permanência é de destacada importância […] Estamos compatibilizando direitos e valores”, disse o procurador Martin Rodachi, durante o evento online.
O webinar não contou com a participação de críticos à proposta, nem deu espaço para participação do público.
Instrumentos de compatibilização
Como forma de “compatibilizar” a permanência das populações nas unidades de conservação de proteção integral, a Procuradoria Federal Especializada propõe uma série de medidas.
Dentre elas, estão desde Acordos de Gestão e Termos de Compromisso de caráter permanente, até a redução dos limites da unidade de proteção integral, de modo a excluir a área ocupada pelas populações, ou sua total recategorização.
Segundo parecer da PFE, atualmente existem 124 UCs de proteção integral com algum tipo de sobreposição com populações tradicionais. Isso significa que 83% das áreas protegidas nesta categoria poderão sofrer algum tipo de modificação para atender ao novo entendimento.
No documento da PFE de novembro, o órgão recomendou que o ICMBio desse início à operacionalização do novo entendimento em “projetos-piloto” em quatro unidades de conservação: Parna Lagoa do Peixe (RS), Rebio Trombetas (PA), Parna Cabo Orange (AP) e Parna Lençóis Maranhenses (MA).
O Parna Lagoa do Peixe tem longo histórico de conflitos com residentes. A pressão pelo rebaixamento do parque sempre foi grande, mas aumentou em 2019, com o governo Bolsonaro e uma dança das cadeiras na chefia da unidade, que já mudou três vezes nos últimos três anos. Apesar da grande pressão de pescadores, pecuaristas e empresários do setor de energia eólica, o ICMBio estava em estágio avançado de indenização das famílias ainda residentes e desafetação da área.
Críticas ao entendimento
A “releitura” da Lei do SNUC pela AGU gerou uma série de críticas de especialistas da área. Segundo o advogado e ambientalista Fábio Feldmann, relator da Lei do SNUC na época de sua tramitação na Câmara dos Deputados, se o objetivo da AGU é questionar legalmente os dispositivos da Lei, outros caminhos jurídicos deveriam ser tomados.
“O que eles estão apontando como eventual inconstitucionalidade, pelo menos até aqui, nunca foi percebido como tal. Se querem contestar um dispositivo do SNUC, não deveria ser por meio de um parecer. Eles deveriam entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade e deixar para o Supremo Tribunal Federal decidir”, defende.
Segundo o ambientalista, a mudança dos procedimentos do ICMBio baseada em um parecer da AGU fragiliza as unidades de conservação e descaracteriza o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, que já possui categorias específicas compatíveis com a existência humana em seu interior.
“Assim como a IUCN [União Internacional para Conservação da Natureza], defendo que as áreas de proteção integral devem existir. Um caminho seria saber concretamente quais são essas populações e onde elas estão, para então o Ministério Público, por exemplo, poder questionar uma determinada unidade pontualmente. Agora, colocar [a determinação] num parecer, que na minha opinião abre a porteira, torna o conceito de áreas de proteção integral muito vulnerável e desvirtua as categorias do SNUC”, diz.
A Rede Pró-UC, organização que atua na defesa das Unidades de Conservação do Brasil, também concorda que o novo entendimento da AGU sobre a Lei do SNUC desconfigura a norma.
“A forma como o parecer coloca a questão faz com que, de repente, mais de 80% das unidades de conservação de proteção integral passem a atender ao objetivo principal de proteger o modo de vida de pessoas, algo que as UCs de Uso Sustentável já fazem. É por isso que existe um mosaico, que a gente chama de Sistema de Unidades de Conservação, justamente para atender às várias demandas. O que o parecer propõe é um nivelamento, onde essas UCs de Proteção Integral, na prática, passam a ter um caráter de uso sustentável, que ‘resolve’, no curto prazo, e apenas no curto prazo, a questão das populações humanas, mas cadê a biodiversidade no novo entendimento? Onde está contabilizado o impacto sobre a biodiversidade?”, questiona a bióloga Angela Kuczach, diretora-executiva da Rede Pró-UC. “Existem muitos problemas, mas não é concebendo essa sobreposição de forma tão pouco discutida que teremos esses problemas resolvidos”, complementa.
Segundo Sérgio Brant – analista ambiental que dedicou décadas de trabalho aos órgãos ambientais federais e influenciou decisivamente no estabelecimento e delimitação de sessenta unidades de conservação no país – os documentos da AGU se atêm a apenas um aspecto da legislação, ignorando sua totalidade.
“Os documentos simplesmente desconsideram o que a Constituição e as leis estabelecem com relação à proteção da biodiversidade para se ater apenas à legislação que trata de outros temas, para os quais as unidades de conservação de proteção integral deveriam ser tratadas como exceção à regra. Transformam o acessório em principal e o principal em acessório”, diz.
Segundo Brant, o SNUC é uma lei sobre unidades de conservação e não sobre populações tradicionais. As categorias de uso sustentável são acessórias quando se trata de proteção da biodiversidade exatamente porque não se prestam adequadamente para esse fim.
“Unidades de conservação de proteção integral são as únicas que têm possibilidade de melhor proteger a biodiversidade em todo seu espectro. Se você mantiver as populações que estão lá hoje, elas já estão fazendo uso direto dos recursos, e este uso, que já tem impacto hoje, vai ter mais impacto no futuro, seja pela insularização das áreas, seja pelo inevitável aumento do uso e consumo desses recursos pelos moradores, seja pela mudança de seu modo de vida. Neste último caso as reservas extrativistas são um excelente exemplo do que acontece para pior ao longo do tempo”, defende.
A decisão da AGU pela mudança de postura em relação às populações tradicionais – e seu potencial impacto nas unidades de conservação do país – chamou ainda mais a atenção por ter sido tomada na vigência de um governo que é declaradamente contra tais grupos e contra áreas protegidas.
Ao longo do mandato, Jair Bolsonaro (sem partido) demonstrou por diversas vezes seu desprezo pelas unidades de conservação, com declarações, tentativas de redução de limites, recategorizações, redução de orçamento e até a extinção do órgão responsável pela gestão destas áreas, proposta que acabou não sendo levada adiante.
“Não me estranha que um governo ultraconservador defenda essa posição [do parecer da AGU], porque dessa forma você questiona as unidades de conservação, isso combina com o governo Bolsonaro, não o contrário”, diz Fábio Feldmann.
Definição de populações tradicionais
Outra crítica importante feita à releitura da AGU sobre a lei do SNUC é em relação à definição do que seriam as populações tradicionais. Segundo documento da PFE, estão inseridas nessa categoria não somente indígenas e quilombolas, mas também outras comunidades, como agricultores familiares.
Segundo o parecer do órgão, das 124 unidades identificadas com sobreposição, de fato, a maioria (53) envolve agricultores familiares.
“Do ponto de vista legal, a questão dos povos originários é indiscutível, as comunidades quilombolas também. Agora, legalmente falando, o que está se propondo é que todas as comunidades auto declaradas tradicionais E TAMBÉM a agricultura familiar, sejam equiparadas aos mesmos termos e direitos dos povos originários. Do ponto de vista legal não está correto.”, diz Angela Kuczach, da Rede Pró-UC.
“O que está acontecendo é uma certa estratégia de equiparação de tradicionais a índios e quilombolas e essa equiparação não existe. Estender o conceito de tradicional a outros grupos, em outras palavras, é fazer reforma agrária em unidades de conservação”, defende Fábio Feldmann.
Também neste ponto, no entanto, não há consenso entre os especialistas. Segundo entendimento de Cláudio Maretti, ex-presidente do ICMBio e atual vice-presidente da Comissão Mundial de Áreas Protegidas da IUCN para a América Latina, o parecer não equipara os dois grupos.
“Eu não vejo que o documento equivale os agricultores às populações tradicionais. O parecer cita, de forma conjunta, obviamente ampliando o espectro. O foco do parecer não é só na importância dos povos e populações, mas também nos termos de compromisso que, sim, se aplicam aos agricultores familiares. De qualquer forma, estamos falando de tradicionalidade, então, se a agricultura familiar for trazida para esse conteúdo, ela tem que ter esse aspecto de tradicionalidade”, diz.
((o))eco tentou contato com a AGU e ICMBio por vários dias, por e-mail e telefone, para que os órgãos pudessem comentar as críticas feitas pelos especialistas, mas não teve retorno até o fechamento da matéria. Os mesmos questionamentos foram feitos durante transmissão do webinar, e também na ocasião as perguntas não foram respondidas pelos participantes do evento.