Comunidades dizem que não foram ouvidas sobre megaprojeto de eólicas na BA

A disputa entre o vento e a água no sertão

Em quase todos os quintais da comunidade Serra dos Morgados, no sertão norte da Bahia, é possível cruzar com pés de café. Trazidos de fazendas da região no fim do século 19 por trabalhadores remanescentes de escravizados, eles dividem espaço com bananeiras, mangueiras, dentre outras espécies de frutas e legumes.

O povoado é uma das 35 comunidades tradicionais identificadas no município de Jaguarari, no semi-árido baiano. Além do café, produzido há gerações de forma artesanal, as serras da região também são ricas em ventos, o que levou a empresa Quinto Energy a decidir erguer ali e no município vizinho de Campo Formoso o Complexo Manacá, projeto de energia eólica e solar. 

O empreendimento, que já teve a licença prévia aprovada pelo Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), do governo da Bahia, prevê a construção de 405 torres de energia eólica e 476 mil placas de energia solar. A capacidade instalada é de 3,43 GW – um quarto de Itaipu, a maior hidrelétrica do país.

Apesar da dimensão do projeto, moradores e organizações de defesa do meio ambiente afirmam que a Quinto Energy não ouviu a população local, ignorando a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante o direito de consulta livre e prévia a populações tradicionais.

Quatro comunidades tradicionais de fundo e fecho de pasto – que criam animais soltos em terras compartilhadas – e um assentamento estão inseridos na área de influência direta do empreendimento, segundo parecer técnico do Inema favorável à liberação da licença prévia do Complexo Manacá.

“Não teve nenhuma audiência pública, apenas alguns encontros da empresa com alguns moradores sem a presença de órgãos do governo”, afirma a agente comunitária e técnica de enfermagem Elisabete Cruz Martins. Ela nasceu e cresceu na Serra dos Morgados, e complementa a sua renda com o café que ela mesma colhe, torra e mói semanalmente em seu quintal, em um processo que aprendeu com a mãe e as avós. 

A obrigação de ouvir comunidades tradicionais antes da construção de empreendimentos como o Complexo Manacá também é citada pelas “Salvaguardas Socioambientais para Energia Renovável“, elaboradas por dezenas de associações e organizações de proteção do meio ambiente do Nordeste. O documento propõe mecanismos de proteção contra os riscos e os impactos gerados por esses projetos. 

“Caso existam comunidades tradicionais na área afetada direta ou indiretamente pelo empreendimento de geração ou transmissão de energia, o processo de licenciamento deve iniciar com a checagem da realização das consultas prévias, livres e informadas, como previsto na OIT 169″, diz um trecho do texto, encaminhado ao poder público no começo do ano. “Se esta não for devidamente comprovada pelos órgãos responsáveis, o processo deve ser paralisado até que seja efetuada a consulta, a fim de garantir o seu caráter prévio”, prossegue o documento. 

O Inema contesta a informação e afirma que foram realizadas consultas prévias junto às comunidades na área do empreendimento nos dias 10,11 e 31 de maio de 2023 a fim de “informar e ouvir”, mas não forneceu mais dados sobre os encontros à reportagem. Apesar do grande porte, o projeto da Quinto Energy é considerado de baixo potencial poluidor pelo órgão ambiental. Leia a íntegra da resposta aqui.

Para Juracy Marques, antropólogo e professor da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), a cultura do café artesanal é uma das atividades ameaçadas pela expansão dos aerogeradores. A Bahia é o segundo estado que mais gera energia eólica no Brasil, atrás apenas do Rio Grande do Norte.

Para o ambientalista Juracy Marques, o café artesanal é uma opção de renda na região, ameaçada pela expansão dos aerogeradores. (Foto: Mariana Greif)
Para o ambientalista Juracy Marques, o café artesanal é uma opção de renda na região, ameaçada pela expansão dos aerogeradores (Foto: Mariana Greif/Repórter Brasil)

Marques faz parte do movimento Salve as Serras, que encaminhou uma denúncia formal contra o projeto ao Ministério Público em janeiro de 2023. O documento afirma que a atuação da empresa “está expondo as comunidades e deflagrando conflitos, desestruturando um modo tradicional de vida secular”. 

O texto cita ainda a necessidade de preservação das áreas remanescentes de Mata Atlântica das serras e o risco de desaparecimento de nascentes de água da região, dentre outros problemas que teriam sido ignorados no processo de licenciamento ambiental da Quinto Energy.

“Nós estamos vendo uma destruição sistemática da cobertura florestal e de uma reserva de Mata Atlântica, de Caatinga e de Cerrado que está no topo de nossas serras, para substituirmos esses ecossistemas, essa biodiversidade, por um grande deserto de concreto e vidro”, afirma Marques.

Procurada, a empresa não respondeu aos questionamentos da Repórter Brasil. A matéria será atualizada se um posicionamento for enviado.

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Contratos de arrendamento de terra geram preocupação

Juraci da Silva Martins é um dos moradores que já assinou contrato de arrendamento com a empresa Quinto Energy. (Foto: Mariana Greif)
Juraci da Silva Martins é um dos moradores que já assinou contrato de arrendamento com a empresa Quinto Energy (Foto: Mariana Greif/Repórter Brasil)

A técnica de enfermagem Elisabete Martins conta que seu esposo cogitou arrendar parte das terras da família para a instalação de torres eólicas, mas ela foi contra. Já o seu sogro, Juraci da Silva Martins, de 81 anos, assinou o contrato com a Quinto Energy. 

Juraci conta que o neto de um conhecido, que tinha sido contratado pela empresa, prometeu a ele ganhos de R$ 1.500 por mês caso arrendasse o terreno. A família se dividiu, mas ele acabou assinando. O aposentado, porém, não soube informar detalhes do contrato, como o período de arrendamento e limitações de uso do terreno. 

Para erguer o parque eólico, a Quinto Energy já arrendou 689 propriedades rurais na região, de acordo com parecer técnico do Inema. Os contratos firmados entre empresas de energia renovável e ocupantes de terras no Nordeste, sobretudo em assentamentos e comunidades tradicionais, vêm sendo objeto de questionamento há anos, com impacto até na saúde das populações afetadas. 

Em Caetés (PE), um estudo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) constatou que na comunidade de Sobradinho, onde a distância média das casas para os aerogeradores é de 411 metros, 70% da população usa medicação contínua e 64% tomam remédios para dormir.

Outro estudo, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), lançado em outubro do ano passado, analisou 50 contratos de arrendamentos de terras e apontou cláusulas que favorecem as empresas, como renovações automáticas de prazo e possibilidade de rompimento unilateral apenas pelo empreendedor. 

Segundo o estudo, as cláusulas impõem “remunerações baixíssimas, sigilo absoluto (o que sugere má-fé) e período longo de vigência sob pena de multas elevadas em caso de descumprimento e/ou rompimento do contrato, pouquíssimas contrapartidas sociais, acordos contrários aos interesses comunitários, entre outros dispositivos prejudiciais aos donos das terras”. 

Além disso, ainda segundo o Inesc, os contratos-padrão se diferenciam somente nas especificações dos locais, dos proprietários e dos valores, apresentando até os mesmos erros ortográficos. Isso evidenciaria elaboração unilateral e acordo por adesão, sem debate prévio com as comunidades diretamente envolvidas ou assistência de instituições públicas para assegurar isonomia nas negociações.

Liderança da comunidade de fundo e fecho de pasto Borda da Mata, localizada no município de Campo Formoso, Rubem de Farias Cruz reclama que as empresas de energia renovável primeiro falam em valores e depois no contrato.

Comunidade tradicional de fundo e fecho de pasto em Campo Formoso conseguiu negociar contrato que prevê distância mínima de 12 quilômetros entre as casas e as torres eólicas. (Foto: Mariana Greif)
Comunidade tradicional de fundo e fecho de pasto em Campo Formoso conseguiu negociar contrato que prevê distância mínima de 12 quilômetros entre as casas e as torres eólicas (Foto: Mariana Greif/Repórter Brasil)

“A abordagem não fala do contrato, fala do recurso: ‘você vai ganhar x ou y’. O agricultor que está aqui vive bem, mas com dificuldade financeira. Quando entra a questão do dinheiro, isso cega as pessoas”, diz.

Cruz liderou sua comunidade até conseguir elaborar um acordo mais favorável para ele e seus vizinhos. “Acredito que o contrato hoje é 95% benéfico”, ele diz. Atualmente, ele se tornou uma referência nacional nesse tipo de negociação.

Ele conta que sua comunidade foi abordada por várias empresas que queriam instalar torres eólicas. Assim que receberam a primeira proposta, o agricultor viajou para o Rio Grande do Norte e para Pernambuco para conversar com moradores de locais que já tinham recebido esse tipo de empreendimento. 

Segundo ele, as negociações levaram dois anos. O contrato, fechado com a empresa PEC Energia, prevê uma série de condicionantes, como a proteção das nascentes da comunidade e uma distância mínima de 12 quilômetros entre as torres e as casas dos moradores. 

Rubem diz que a empresa pediu sigilo sobre o contrato, mas ele se recusou. O agricultor conta que frequentemente recebe ligações de pessoas de comunidades tradicionais de outras partes do país com dúvidas sobre o processo de negociação do contrato. 

“Antes de fazer qualquer empreendimento na comunidade, tem que ouvir, tem que ter uma audiência pública para saber se aquele impedimento vai ser benéfico para a comunidade ou não,  porque o dinheiro não resolve tudo, o mais importante é preservar a nossa cultura”, afirma.

Esta reportagem foi realizada com o apoio do Instituto Climainfo / Nordeste Potência