Do início do Holoceno (11.700 anos antes do presente) a 5.100 anos antes do presente, o mar avançou (transgressão) sobre o continente. A foz dos rios recuou. Chegando a um determinado ponto em seu avanço, o mar começou a baixar (regressão).
A representação gráfica abaixo mostra até que ponto, na Região dos Lagos, o mar avançou. Aparece a baía correspondente ao rio Una atualmente. Onde se lê “Marina de Búzios”, devia ler-se “extinto rio Trapiche”.
Note-se que as duas baías formadas pelo avanço do mar não se comunicam. Existe um divisor de águas entre elas. Trata-se de uma observação importante para uma das finalidades desse artigo.

Vários cientistas estudaram as dimensões geológica, paleontológica e arqueológica da Região dos Lagos. Elas são muito ricas. Mas cabe a especialistas de cada área analisá-las. Aqui, pretende-se apenas mostrar o registro (ou a falta dele) dos dois rios pelos cartógrafos.
Nos séculos XVI e XVII, boa parte dos cartógrafos via os continentes como quem contempla um quadro: postando-se de frente a ele. Não do alto. Veja-se esta carta de João Teixeira Albernaz.

Ela corresponde erroneamente à Capitania de São Tomé, pois focaliza a Região dos Lagos entre o cabo de São Tomé e a baía de Guanabara (Rio de Janeiro). Tem-se a nítida impressão de que o continente é visto de um navio. Mas já existiam mapas que representavam o continente a partir do alto. No mapa de Albernaz, a futura Região dos Lagos não mostra ainda os rios Una e Trapiche.
Que se saiba, o Una com possivelmente seu último afluente aparecem no século XVIII, na famosa carta de Manoel Vieira Leão. O rio Trapiche era (não existe mais) tão pequeno que não figurava em representações cartográficas amplas.

Dez anos depois, a carta de Francisco João Roscio parece copiar Vieira Leão, o que era muito comum até o século XIX. Mas Roscio acentua mais o córrego Malhadas, ultimo afluente do Una. Mais uma vez, nenhum vestígio do rio Trapiche

Mais de dez anos depois de Roscio, Simão Antonio da Roza apresenta uma carta reduzida da costa do Brasil. Efetuando um recorte sobre a enseada de Búzios, pode-se visualizar o rio Una e dois afluentes seus, logo abaixo do rio São João. No mapa, em direção à baia do Rio Janeiro, pula-se do Una para a lagoa de Araruama. O detalhe de mais um afluente do Una e de suas nascentes indica aprimoramento da cartografia.

A “Carta geographica da Província do Rio de Janeiro”, a primeira oficial do Brasil independente, foi elaborada em Lisboa no ano de 1823, sem autor conhecido. Talvez ela resulte de uma equipe de cartógrafos. O documento se tornou famoso e merecedor de muitos estudos. Mais uma vez, figura nela apenas o rio Una. Curiosamente, seus maiores afluentes estão assinalados na margem esquerda. Mais uma vez, não há qualquer indício do rio Trapiche.

Em 1830, uma Planta da Província do Rio de Janeiro, assinala o rio São João, que não podia ser ignorado pelas suas dimensões, e o rio Una ao sul dele. Curiosamente, abaixo do rio Una figura um pequeno rio com foz no mar. Embora sem nome na Planta, ele bem poderia ser o rio Trapiche ou o ultimo afluente do Una fora de lugar.

Curiosamente, a “Carta corográfica da Província do Rio de Janeiro”, de 1839, do conceituado engenheiro Pedro Taulois, mostra uma Região dos Lagos simplificada. Nela, figuram os rios São João e Una, assim como a lagoa de Araruama de forma enxuta, sem o detalhamento de trabalhos cartográficos anteriores e posteriores.

Pode-se dizer o mesmo da Carta da Província do Rio de Janeiro lançada em 1840. Sem autor, ela, sem dúvida, quase copia a anterior.

Uma compilação de informações geográficas feitas por H. Mahlmann repete as informações inseridas em trabalhos anteriores, mas curiosamente, abaixo do rio Una, aparece mais destacado o registro de um pequeno rio sem nome que pode ser entendido como o rio Trapiche ou, mais uma vez, o ultimo afluente do Una fora de lugar.

O viajante alemão, Hermann Burmeister, que, em meados do século XIX, tantas informações preciosas registrou sobre a Zona Serrana fluminense, o rio Pomba e Mariana, deixou um informativo mapa sobre as costas do Brasil em 1850. Com relação à Região dos Lagos, ele repete o mapa anterior com um rio abaixo do Una que pode ser entendido como sendo o Trapiche.

O grande salto será dado pelos engenheiros cartógrafos Pedro D’Ancantara Bellegarde e Conrado Jacob de Niemeyer pouco após meados do século XIX. Ambos foram incumbidos de elaborar uma carta da Província do Rio de Janeiro pelo Decreto Provincial de 30 de outubro de 1857, de autoria do Presidente da Província, Conselheiro A. Nicolau Tolentino. Parecia que o presidente provincial desejava dar um basta às cópias e repetições. Bellegarde e Niemeyer reuniram os trabalhos existentes e foram a campo para cumprir a missão recebida. Com extrema competência e detalhamento, os dois cartógrafos elaboraram a “Carta Chorographica da Província do Rio de Janeiro” entre os anos de 1858 e 1861. Acompanha-a um relatório de 1863, com o mesmo título da carta, explicando o trabalho cartográfico e detalhando a metodologia de trabalho. Esse monumental trabalho se compara à carta da Capitania do Rio de Janeiro elaborada por Manoel Vieira Leão, em 1767, e ao Atlas do Império do Brasil organizado por Candido Mendes de Almeida e lançado em 1868.
No trabalho de Bellegarde e Niemeyer, finalmente figura o pequenino rio Trapiche devidamente nomeado, como se constata abaixo.

Essa carta geográfica será retomada pelos autores, que a enriqueceram com detalhes, assim como copiada por outros cartógrafos.
Sobre o rio Una, Milliet de Saint-Adolphe, no seu “Dicionário Geográfico, Histórico e Descritivo do Império do Brasil” (Paris: Vª J. -P. Aillaud, Guillard e Cª de 1863), escreve sobre o Una: “Ribeiro da província do Rio de Janeiro, no distrito da cidade de Cabo Frio; dá navegação a canoas por espaço de 3 léguas, e vai desaguar no mar entre o cabo dos Búzios e a foz do rio de São João. As sumacas entram em sua barra e se acham amparadas contra os ventos do sul e do sueste pelos montes do Cabo Frio” Nenhuma palavra sobre o Trapiche.
Já no século XX, Hildebrando de Araujo Góes, em “Saneamento da Baixada Fluminense” (Rio de Janeiro: Ministério da Viação e Obras Públicas, 1934), registra a existência dos dois rios para fins de canalização. Rio Una: “Com um curso aproximado de 30 km., atravessa os brejais de Itaí, Pau Rachado, Trimurunum, Angelim e Campos Novos até onde a maré se faz sentir. O Una, lançando-se diretamente no Oceano, cerca de seis milhas ao sul da barra do S. João, tem pequena profundidade na foz que é desabrigada. Só em marés de sizígia, é possível a entrada de canoas que navegam até Campos Novos.”
Quanto ao rio Trapiche: “Nasce em Campos Novos, correndo a SE do Estado. Depois de curso aproximado de 20 km, lança suas águas no Oceano, cerca de 4 quilômetros ao sul da foz do Una.”
O rio Una e seus afluentes (Papicu, Flecheiras e Malhada) foram canalizados pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS). Os brejos do Una foram drenados. O rio hoje tem a forma de um M de pernas abertas. Seus afluentes são valas. O rio Trapiche se transformou no canal da Marina de Búzios. Dele, restou apenas uma valeta entre a rodovia e o grande empreendimento imobiliário.
Qualquer ligação entre o canal em que se transformou o rio Trapiche e o córrego da Malhada, ultimo afluente do Una, é sinal de que o divisor de águas das duas pequenas bacias foi removido por ação humana.
- Arthur Soffiati é historiador ambiental, professor e escritor com vasta produção acadêmica publicada.
- Imagem em destaque: Carta corographica da Capitania do Rio de Janeiro, 1777 – Francisco João Roscio
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