Vamos começar com boas notícias desta vez. O Instituto Dom Phillips será lançado em breve por Alessandra Sampaio, viúva do jornalista britânico assassinado em 2022, no Vale do Javari. A ONG terá foco na educação, salientando o valor da Amazônia e de seus povos. O movimento para levar adiante o legado de Dom é uma expressão de esperança, idealismo e de um espírito humano indomável que se recusa a se curvar diante de um crime horrendo e do contínuo ataque contra os povos Indígenas por poderosos interesses empresariais e políticos.
A ação é ainda mais notável porque as tendências dominantes no Brasil e no mundo seguem na direção oposta. A Floresta, os direitos Indígenas e a liberdade jornalística estão sob ataque. É uma conclusão óbvia diante dos terríveis acontecimentos em Brasília, onde o lobby do agronegócio, da mineração e dos agrotóxicos usa seu poder no Congresso, no Supremo e no governo para suspender as demarcações de Terras Indígenas, ressuscitar a historicamente injusta lei do marco temporal e lançar uma nova tentativa de autorização para mineração em Terras Indígenas.
O dia 5 de junho marcará dois anos dos assassinatos de Dom e do indigenista Bruno Pereira no Rio Itaquaí, no estado do Amazonas. A justiça ainda não foi feita.
Procuradores acusaram pelo duplo homicídio três pescadores locais – Amarildo da Costa de Oliveira, apelidado de “Pelado”, seu irmão Oseney da Costa de Oliveira, o Dos Santos, e Jefferson da Silva Lima. Mas o julgamento deles foi repetidamente adiado, o que aconteceu mais uma vez no mês de abril.
O homem suspeito de liderar a trama, Ruben Dario da Silva Villar, conhecido na região pelo apelido “Colômbia”, foi preso, mas não indiciado por sua ligação com os homicídios. Em vez disso, Ruben e um outro suposto cúmplice são acusados de contrabando transfronteiriço e de fraude documental.
Há também investigações em andamento sobre pelo menos dois políticos locais, porém sem detenções. Em 2023, quando se completou um ano dos assassinatos, a organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF) lamentou a lentidão da Justiça no Brasil. É provável que a mensagem se repita neste ano.
ENCRUZILHADA: NO ENCONTRO DOS RIOS ITUÍ E ITAQUAÍ FICA A ENTRADA DA TERRA INDÍGENA DO VALE DO JAVARI, ONDE DOM E BRUNO FORAM MORTOS. FOTO: LALO DE ALMEIDA/FOLHAPRESS
A impunidade é um flagelo não só do Brasil, mas do mundo moderno. Os assassinos de defensores do meio ambiente, como Bruno, e de jornalistas ambientais, como Dom, raramente encaram a Justiça. No Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, na próxima sexta, dia 3 de maio, a Unesco divulgará um novo relatório sobre os ataques enfrentados por repórteres ambientais. A ONG Repórteres Sem Fronteiras (RSF) e o Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ) já compilaram estudos semelhantes anteriormente.
Em 23 de abril, o Instituto Vladimir Herzog lançou a publicação “Fronteiras da Informação: Relatório sobre jornalismo e violência na Amazônia”. A investigação mostrou que, entre 2013 e 2023, foram registrados 230 casos de violência contra jornalistas por denunciarem atividades de garimpo ilegal, exploração madeireira, expansão agrícola descontrolada e narcotráfico nos nove estados da Amazônia Legal. O Pará, futura sede da COP-30, é o campeão de agressões contra jornalistas, com 89 casos, como mostra reportagem nesta edição.
As notícias sobre a guerra contra a natureza podem gerar menos manchetes do que Gaza ou Ucrânia, mas também representam um risco alto e pouca proteção legal. Em todo o mundo, várias dezenas de repórteres foram mortos por cobrirem histórias ambientais nos últimos 15 anos (o número mais recente será revelado na próxima sexta-feira, 3 de maio), e apenas um em cada dez dos assassinos é condenado. O movimento parece seguir no sentido contrário à lógica da Justiça e aos interesses da democracia: a lei tem sido usada cada vez mais contra jornalistas. Mais de 100 repórteres foram presos por cobrir protestos ambientais.
É claro que as zonas de conflito ativo ainda são mais perigosas. Em 2023, foram registradas 99 mortes de repórteres e outros trabalhadores da mídia, um aumento de 43% em relação a 2022 e o maior número desde 2015. A grande maioria das vítimas era de repórteres palestinos, que, segundo o Comitê para a Proteção dos Jornalistas, podem ter sido alvo das Forças israelenses.
Sem a coragem dos correspondentes para seguir trabalhando em áreas de conflito, organizações de imprensa alertam sobre o fato de que o mundo vai começar a ter “zonas de silêncio”, onde os riscos são tão grandes que histórias importantes não serão reportadas. O mesmo pode ser dito sobre o meio ambiente ou a democracia, que ficam mais vulneráveis quando a verdade é estrangulada.
É por isso que o trabalho de Dom e Bruno – e o de inúmeros outros jornalistas, ativistas Indígenas e defensores da Terra assassinados – deve continuar. Várias organizações jornalísticas e de comunicação, incluindo SUMAÚMA, trabalham visando exatamente isso. O Rainforest Journalism Fund (RJF) distribuiu “bolsas Dom Phillips” a freelancers e o coletivo de jornalismo investigativo Forbidden Stories organizou, no ano passado, equipes com mais de 50 jornalistas de 16 grupos de notícias para fazer uma série de coberturas do caso Bruno e Dom.
Hoje, um conjunto de jornalistas amigos de Dom, incluindo este autor, deixa de lado eventuais rivalidades profissionais e diferenças de pensamento para completar o livro que ele escrevia quando foi morto, intitulado How to Save the Amazon: Ask the People Who Know (Como Salvar a Amazônia: Pergunte às Pessoas que Sabem). Em vez de serem silenciadas, as vozes dos defensores da Floresta e jornalistas – como Bruno e Dom — devem ser amplificadas. Essa convicção sempre fez parte da concepção de SUMAÚMA.
Nossa missão está mais urgente do que nunca. Mas, se alguém está escutando, é uma questão completamente diferente. Como mostramos nesta edição de SUMAÚMA, os povos Indígenas estão sendo ignorados e ameaçados. No Acampamento Terra Livre, em Brasília, o maior encontro anual de povos Indígenas, a editora de fotografia de SUMAÚMA, Lela Beltrão, captou rostos decepcionados e irados que revelaram quanto o cenário piorou desde o ano passado, com uma ofensiva cada vez mais brutal de um Congresso anti-Indígena, contra o meio ambiente e negacionista do clima. O ensaio fotográfico de Lela é acompanhado pela ótima análise de Rafael Moro Martins, cujo diário dos acontecimentos políticos recentes destaca a intensidade do ataque dos interesses do agronegócio e da mineração. A foto de abertura da reportagem é antológica – uma única imagem que contém toda a brutal complexidade do momento.
A terceira reportagem da nossa série Insustentáveis, de Sílvia Lisboa (texto) e João Laet (fotos), realizada em parceria com o Transnational Law Institute do King’s College de Londres, mostra como a Vale, a maior mineradora do Brasil e uma das maiores do mundo, está tomando terras públicas no estado do Pará para seu Projeto Cristalino de extração de cobre e ouro. Se conseguir avançar, a ação envolverá a derrubada de pelo menos meio milhão de árvores. Ativistas locais dizem que a empresa está agindo nos bastidores para sufocar a oposição dos movimentos sociais.
Já o colunista Sidarta Ribeiro aborda a guerra às drogas, que ele descreve como um ataque aos pobres e às plantas, com benefícios apenas para os líderes do Exército e da polícia. Baseado na sua experiência com a Costa Rica, ele argumenta que a melhor maneira de melhorar o bem-estar público é abolir as forças militares. Isso abriria caminho para o verdadeiro desenvolvimento e para a “pura vida”. Não seria uma mudança bem-vinda? Parabéns àqueles que, como Alessandra Sampaio e seus colegas, continuam a lutar pela única coisa que vale a pena lutar: a vida.
RESISTÊNCIA: INDÍGENA DO POVO KAYAPÓ SE PREPARA PARA A MARCHA NA 20ª EDIÇÃO DO ACAMPAMENTO TERRA LIVRE, EM BRASÍLIA. FOTO: LELA BELTRÃO/SUMAÚMA