A humanidade e as florestas

Sempre e nunca são palavras que não devem ser usadas pelo historiador. O senso comum acredita que o ser humano sempre foi desmatador, caçador e poluidor. Que faz parte da natureza humana destruir a natureza não-humana. Por outro lado, não é raro ouvir que nunca houve um período em que a humanidade tenha se relacionado de forma equilibrada com a natureza. Associo arbitrariamente a origem da cultura ao Homo habilis, ancestral do Homo sapiens, há 1.400.000 anos passados.Supõe-se que os primeiros hominídeos, grupo zoológico do qual fazemos parte, desceram das árvores e se adaptaram às savanas. Sua economia baseava-se na coleta, caça e pesca. É de se perguntar por que o Homo habilis, o H. erectus, o H. neaderthalensis e H. sapiens desmatariam. Uma que outra árvore podia ser cortada ou queimada, mas não toda uma floresta. Não havia necessidade de desmatamento nem tecnologia capaz de tal proeza. No máximo, um incêndio provocado por raios ou por combustão espontânea. Também um incêndio ocasional depois da invenção das técnicas de produzir fogo.

Até 10.000 anos passados, não houve necessidade de desmatar porque a humanidade se organizava em pequenos grupos nômades que não incluíam em sua economia o uso de caules em larga escala. Com o aquecimento climático no início do Holoceno, algumas sociedades nômades inventaram a agricultura e o pastoreio.
Comumente, as áreas para plantar e pastorear eram aquelas sem floresta, para facilitar o trabalho. Caso necessário, parte das florestas eram derrubadas para o plantio e o pastoreio. Elas também serviam para o fornecimento de lenha e de madeira. Contudo, o desmatamento era mínimo, já que a economia então vigente visava apenas a subsistência das sociedades.

Com a formação das civilizações, o desmatamento aumentou. Ampliou-se a necessidade de campos de cultivo e de pastagem, bem como a necessidade de lenha e de madeira para construção. Há uma conhecida passagem na “Epopeia de Gilgámesh” em que o herói mitológico, com ajuda de seu amigo Enkídu, mata Humbaba, o protetor da floresta. Eram os primórdios da civilização mesopotâmica. A natureza ainda era protegida por entidades divinas e tinha um caráter sagrado. Gilgámesh é meio deus, meio humano. Depois de matar o protetor, ele destrói a floresta. Progressivamente, o sagrado cede lugar ao profano.

Também na civilização chinesa, houve desmatamentos e caçadas colossais logo em sua fase inicial. Alguns historiadores sustentam que o confucionismo e o taoísmo são respostas culturais aos ataques contra a natureza e contra os humanos.
Algo como uma tentativa de ressacralização do mundo. Na civilização Índica, que se desenvolveu no vale do rio Indo, atual Paquistão, a historiografia vem demonstrando que grandes desmatamentos contribuíram para seu fim. Como não havia pedra, os
prédios e monumentos eram construídos com tijolos. Para seu cozimento, as matas foram transformadas em lenha. Entre os maias, a explicação mais consistente para explicar seu fim foi um grande desmatamento para ampliar campos de cultivo. Esses
desmatamentos foram praticados em encostas de morros, contribuindo para a erosão e o assoreamento das partes baixas, onde havia brejos e lagoas.

No diálogo “Timeu”, Platão narra que o desmatamento da península Ática transformou um corpo carnudo num esqueleto. Sua narrativa sobre os processos de erosão, empobrecimento dos solos e assoreamento do mar nas partes rasas é bastante atual. Na ilha de Páscoa, hoje conhecida com o nome original de Rapa-Nui, a construção de grandes ídolos de pedra exigiu uma base rolante para transportá-los do centro da ilha para a costa. Como não se conhecia a roda, usava-se o tronco da palmeira mais alta do mundo, existente na ilha, como rolamento. Assim, o desmatamento foi deixando a ilha desprotegida de cobertura florestal. Além do mais, cada grupo incendiava a mata de outro(s) como arma de guerra. Quando os europeus chegaram à ilha no século XVIII, Rapa-Nui estava devastada, erodida e assoreada.

O desmatamento foi praticado em várias sociedades, com modos de produção distintos. Cada cultura construiu sua visão sobre as florestas. De sagradas a profanas passando por concepções intermediárias. Nenhuma concepção, porém, transformou
as matas em fonte de lucro como a ocidental em sua fase capitalista. Na sua fase de formação, entre o século V ao século XIV, vigorou o sistema feudalista de produção. Nele, as atividades rurais representavam o sustentáculo da economia. Partindo da Itália, os missionários cristãos não eram muito simpáticos às florestas porque elas eram sagradas para os povos ainda não convertidos e motivo de adoração. Depois de convertidos, eles eram instados a derrubar as matas. Mesmo assim, restaram muitas florestas, agora com caráter utilitário. Elas complementavam a economia feudal. Havia florestas comunais, ou seja, florestas que podiam ser usadas por todos, sobretudo pobres, para obtenção de lenha, madeira, água fresca e caça. Essa visão começa a ser mudada a partir do século XI, quando o capitalismo começa a progredir.

Quando portugueses e espanhóis chegaram à África e à América respectivamente, no século XV, as florestas temperadas da Europa já estavam muito reduzidas. Elas foram progressivamente abatidas. Na África, a floresta tropical do Congo foi o que restou da grande floresta que cobria o Saara no início do Holoceno. Não houve um desmatamento descomunal que transformou uma grande mata num imenso deserto. Foram as mudanças climáticas naturais. Os povos que viviam na floresta congolesa extraíam recursos dela, mas sem comprometer sua integridade. Omesmo acontecia com a floresta equatorial da Indonésia. Além da floresta e do deserto, havia, no continente africano, extensas savanas e estepes habitadas por uma megafauna, que já era cobiçada pelos navegantes, sobretudo o elefante.

No grande continente americano, os europeus encontraram as florestas temperadas do norte, a grande floresta amazônica e a Mata Atlântica. Além desses biomas, havia, no interior, o Cerrado, a Caatinga, o Pantanal, os campos do Sul e as zonas geladas do Antártico. Os povos que habitavam a América (considerando-a um só continente, pois não havia países) usavam as florestas, mas as consideravam sagradas e merecedoras de respeito. Eles obtinham nelas recursos para sua subsistência, mas sem ultrapassar limites. Essa visão contemplativa está demonstrada nos depoimentos de índios da América do Norte reunidos no livro “Pés nus sobre a terra sagrada”. Na América do Sul, é ilustrativo o depoimento do xamã yanomami Davi Kopenawa.

Pesquisas arqueológicas estão demonstrando que culturas avançadas se desenvolveram na Amazônia antes da chegada dos europeus. Como se sabe, os solos amazônicos são pobres. As florestas se retroalimentam naquela vastidão de planície. Solo preto em grande quantidade vem sendo encontrado pelos arqueólogos. A conclusão é que a floresta chegou a comportar cerca de dez milhões de habitantes reunidos em culturas distintas que exploravam a grande floresta mantendo-a em pé. A terra preta era fabricada para o cultivo de diversas espécies, inclusive arbóreas. As prospecções sugerem uma ou mais civilizações na Amazônia. As ricas cerâmicas de Marajó, de Maracá, de Santarém e outras confirmariam que houve ali culturas que alcançaram grau civilizacional. Cauteloso, prefiro considerá-las neolíticas avançadas.


Além do mais, os europeus encontraram as adiantadas culturas dos Andes, da América Central e do Ártico, sem contar a cultura já declinante dos maias. Esta, ao que tudo indica, não soube lidar com a floresta e a devastou. Em parte, seu declínio se deve a essa remoção, segundo os estudiosos. No círculo polar ártico, não existiam florestas. Os denominados esquimós conseguiram desenvolver uma refinada cultura para viver no gelo. No México, o grande império asteca impressionou os europeus, o mesmo ocorrendo com o império inca nos Andes.

Como mostra o historiador ambiental José Augusto Pádua no seu livro “Um sopro de destruição”, as luxuriantes florestas encontradas pelos portugueses na América alimentaram neles a concepção de que elas poderiam ser exploradas indefinidamente. Mais que concepção, pode-se falar numa síndrome de inesgotabilidade. Para quem deixou um continente com parcas manchas florestais, encontrar a Mata Atlântica pela frente alimentou a crença na sua infinitude. Logo nos primeiros tempos, a busca pelo pau-brasil estimulou um desmatamento ainda em pequenas proporções, ao mesmo tempo que alterava a concepção dos povos nativos.

O famoso diálogo travado entre um velho tupinambá e o calvinista Jean de Léry ilustra duas visões de mundo não só distintas como antagônicas. O francês via dinheiro no pau-brasil. O tupinambá entendia que se tratava apenas de madeira, o que o levou a concluir que os europeus eram loucos. De fato, o sistema capitalista era algo inimaginável e inútil para o índio.

Com a escolha da cana-de-açúcar para colonizar as terras reservadas a Portugal pelo Tratado de Tordesilhas, o primeiro grande tratado da globalização, exigiu-se desmatamento mais intensivo. Até século XVII, as terras baixas foram depenadas. As florestas deram lugar aos canaviais e aos pastos. É de se perguntar por que os portugueses e seus descendentes no Brasil se contentaram com a Mata Atlântica até o século XIX. Os colonos tinham 1,3 milhão de quilômetros quadrados de floresta para explorarem. As árvores eram simplesmente queimadas para abrir espaço para as lavouras e pastagens. Além de não precisarem da Amazônia, os colonos não contavam com tecnologia para derrubar uma floresta que parecia infinita.

Já existem artigos acadêmicos e livros demonstrando com documentos a visão que se tinha das florestas. Derrubá-las significava progresso e civilização. Havia algumas vozes no século XIX que já se opunham a uma tão grande devastação. Mas eram vozes isoladas. Havia quem condenasse o africano ou seu descendente escravizado como o culpado pelo desmatamento, quando, na verdade, eles cumpriam ordens do patrão, que por sua vez atendia às exigências de um capitalismo rasteiro. Por mais protestos isolados, o Brasil era uma grande fazenda dominada por rudes proprietários. Alguns cientistas também condenavam o desmatamento excessivo, como foi o caso de Auguste de Saint-Hilaire ao empreender excursões pelo Brasil. Nem a falta d’água na cidade do Rio de Janeiro causada pelo desmatamento do maciço da Tijuca, exigindo seu reflorestamento, foi suficiente para convencer a economia rural sobre a importância das matas.

Desde os anos de 1970, está havendo um descompasso entre a importância da floresta amazônica em pé e os interesses econômicos e políticos. Um documentário intitulado “No país da Amazônia”, dirigido por Joaquim Gonçalves de Araujo e datado
de 1922, mostra uma floresta rica a ser conquistada, desbravada, explorada, derrubada. Converter a floresta derrubada em dinheiro significava progresso. Muitas árvores cortadas, muitos animais mortos e uma postura triunfalista são mostrados no
documentário. Os índios são mostrados como animais ou quase. Tudo indica que o documentário foi produzido por interesses econômicos, dados os recursos caros empregados na filmagem.

Outras aventuras dissonantes com a floresta foram praticadas na Amazônia, como a ferrovia Madeira-Mamoré e a Fordlândia. Elas foram recebidas com aplauso por representarem o desenvolvimento do Brasil. A partir da Conferência de Estocolmo, em 1972, a atitude em relação à grande floresta nos meios científicos e entre os ambientalistas mudou. Estudos progressivos foram mostrando a importância do grande bioma não só para o Brasil, mas para o cone sul e o mundo. Ela não é o pulmão da Terra, mas desempenha fundamental papel na troca de gases. Libera oxigênio, que não abastece o planeta, mas absorve gás carbônico que, junto com outros gases, agravam os efeito-estufa e aceleram as mudanças climáticas. A Terra sem a Amazônia lançaria na atmosfera várias giga toneladas de CO2.

Mais ainda, a floresta em pé recebe as chuvas que provêm do oceano Atlântico e produz nuvens por evapotranspiração. Essas nuvens são empurradas para oeste, esbarram nos Andes e se dirigem para o sul, transformando-se em chuva na Colômbia, Peru, Bolívia, Paraguai, Argentina, Uruguai e nas regiões sudeste e sul do Brasil. Quem segue com o dedo o paralelo 24° S, encontrará os desertos de Atacama, de Kalahari e da Austrália. No Brasil, encontrará uma área outrora coberta pela exuberante Mata Atlântica. Mata Atlântica depende fundamentalmente da Amazônia. Sem a Amazônia, Sudeste e Sul do Brasil seriam um deserto como o de Atacama.

Se Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Peru e Colômbia zelassem por sua oferta de água, reclamariam formalmente ao governo brasileiro por amaçar a umidade de seus países. Estudos de cientistas vêm demonstrando que a floresta também abriga animais hospedeiros de vírus, bactérias e protozoários sem serem afetados por eles. Com a captura desses animais e com o desmatamento, microrganismos patogênicos podem entrar na sociedade e deflagrar epidemias com potencial pandêmico. A hipótese mais consistente para a difusão do novo corona vírus pelo mundo é o habito oriental de consumir animais silvestres, como morcegos e pangolins, obtidos nas florestas. As oito espécies de pangolim são as mais ameaçadas de extinção do mundo. Sabe-se já, com segurança, que vírus africanos foram trazidos das florestas para a sociedade.

Proteger a Amazônia, até recentemente, era uma preocupação de cientistas e ambientalistas. Com todas as advertências de que a grande floresta em pé representava uma garantia para a economia, o agronegócio, a mineração e a exploração de madeira continuaram aceleradas. Cientistas demonstraram que o desmatamento na Amazônia acima de 20% afetaria os outros 80% e a transformaria numa savana. As previsões já começaram a se confirmar. A Amazônia não está mais produzindo o antigo volume de água que abastece o mundo peri-amazônico. Nem mesmo está produzindo mais a água necessária à sua existência. Cerrado e Pantanal estão carentes de umidade. Nos períodos de estiagem, a secura está se acentuando e agravando os incêndios, como está acontecendo em 2020 no Pantanal, o maior incêndio registrado. Sudeste e Sul do Brasil estão com o abastecimento de água
comprometido.

Depois de se beneficiar excessivamente com o desmatamento da Amazônia, sobretudo com a abertura da Transamazônica pela ditadura militar, o agronegócio anuncia oficialmente que defende a grande floresta desde sua origem. A fala do atual ministro do ambiente, na fatídica reunião ministerial de 22 de abril, mostra que ele atendia a um pedido da ministra da agricultura para legitimar as áreas desmatadas do que restou da Mata Atlântica. A bancada do boi no Congresso Nacional continua com seu tom agressivo em relação à proteção florestal. Os fundos de pensão e finanças internacionais pressionam o governo brasileiro – o pior de todos os tempos em termos de proteção ambiental e social – a assumir uma atitude de proteção da Amazônia. Tais fundos parecem estar atendendo a seus clientes. E o governo esperneia. De forma retrógada, agita um conceito de soberania nacional anacrônico. Hoje, a soberania do Brasil deve ser usada para proteger a Amazônia para os brasileiros e para o mundo, não para interesses particularistas mesquinhos. Propala que os países que condenam o Brasil derrubaram suas florestas. De fato, derrubaram quando esta prática ainda era aceita em nome do progresso. Agora, eles reflorestam. Sustenta que o fogo na Amazônia é uma mentira e que existe uma campanha internacional de difamação para internacionalizar a Amazônia. Por incrível que pareça é a mesma economia que predou a Amazônia que agora prega oficialmente sua defesa.

O atual governo não saiu da década de 1930. Não quer se atualizar.
Não conseguiu e nem conseguirá, com sua postura anacrônica, militarista e assustada com fantasmas inexistentes.