
Por Cida de Oliveira* para o Blog do Pedlowski
Maior produtor brasileiro de uvas, com cerca de 90% do total nacional destinado à fabricação de sucos, vinhos e espumantes, o Rio Grande do Sul (RS) também se destaca na produção de frutas, azeite e hortaliças. Segundo a Radiografia da Agropecuária Gaúcha 2024, do governo estadual, mais de 88% da noz-pecã vem de pomares gaúchos, assim como mais de 70% dos pêssegos e 42% das maçãs brasileiras. E tem a maior área de cultivo de oliveiras, que produziu em 2023 mais de 193 mil litros de azeite.
Toda essa produção –que inclui ainda a erva-mate, fumo, mel, plantas e árvores nativas de várias espécies –vem sendo prejudicada por uma outra cultura importante. A soja, que representa 40% da produção agrícola gaúcha, com 18 milhões de toneladas na safra 2023/2024, segundo o governo. A terceira maior produção nacional, com 18,3 milhões de toneladas, colado ao Paraná, com 18,7 milhões de toneladas. O Mato Grosso é o primeiro, com 39,3 milhões de toneladas.
A área de soja mais que dobrou em 23 anos. Segundo o IBGE e a Companhia Brasileira de Abastecimento (Conab) houve um salto de 3,1 milhões de hectares em 2000 para mais de 6,6 milhões de hectares em 2023. O avanço ocorreu principalmente sobre regiões tradicionalmente voltadas à fruticultura, vitivinicultura, olericultura, olivicultura e até de pastagem no bioma Pampa.
Para dar conta, as vendas do 2,4-D também saltaram. O Ibama informa que em 2000 foram vendidas no estado 18.590 toneladas de agrotóxicos em geral. E no período de 2019 a 2023, foram 34.877 toneladas somente de 2,4-D. Em todos os anos do período, o RS ficou atrás apenas do Mato Grosso, protagonista na produção agrícola nacional, onde foram comercializadas 47.677 toneladas. E no ano com vendas mais aquecidas, 2021, foram 8.706 toneladas. Como destaca o engenheiro agrônomo Leonardo Melgarejo, esse mercado gigantesco se deve também ao uso em plantas transgênicas tolerantes ao agrotóxico. E ao aumento do número de plantas indesejáveis que criam resistência ao glifosato. Mas não é só: “Os agricultores estão percebendo o surgimento de mais plantas indesejáveis resistentes também ao herbicida 2,4-D. E por isso vão aumentando as dosagens usadas nas pulverizações. Uma combinação de novas áreas de cultivo de grãos com o aumento do uso nas áreas antigas resulta em maior consumo no total”, disse ao Blog do Pedlowski.
Parte de todo esse herbicida, porém, é desviada para bem além das lavouras alvo durante a pulverização –a chamada deriva, que está na raiz da queda da produtividade das diversas culturas que mencionamos na abertura desta reportagem. Isso porque esse desvio de gotículas e vapores pode alcançar longas distâncias, de até 40 quilômetros, atingindo plantações vizinhas ou distantes. Inclusive aquelas sensíveis ao produto. E podem também contaminar culturas orgânicas, agroecológicas, assentamentos e territórios de populações tradicionais.
Danos irreparáveis
Os danos da deriva dessas pulverizações “são irreparáveis”, afirmou ao Blog do Pedlowski Sérgio Poletto, que é presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Assalariados Rurais de Vacaria e Muitos Capões, que representa empregados de empresas da agropecuária e produtores na produção agrícola familiar.
“A toxicidade do 2,4-D danifica, impede o crescimento e causa a mortandade de inúmeras espécies vegetais da circunvizinhança e até mesmo em locais mais afastados da propriedade rural”, disse Poletto. “A gente tem perdas significativas no setor da uva, que é o maior impactado. Mas tem a questão da maçã, oliveiras, nozes pecã e as hortaliças. É toda essa conjuntura no estado, com perda significativa. Esses danos aumentando a cada ano, a cada safra aqui no RS. Existem produtores e cooperativas de vinho que estão fechando as portas; estão à beira do colapso”, disse a liderança, que percorre o estado dialogando com esses grupos e especialistas e ver de perto a situação.
Uma pesquisa recente da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) mostra que o herbicida presente na deriva, mesmo em baixa concentração, causa distúrbios fisiológicos significativos em mudas de nogueira-pecã e de oliveira. Isso leva à redução no crescimento, alteração na fotossíntese e danos celulares irreversíveis em culturas de alta imponência econômica e ecológica.
Outra pesquisa da mesma universidade constatou, após 30 dias de exposição, efeitos nefastos sobre o crescimento, na produção de compostos fenólicos e no desenvolvimento de brotações de videiras. E isso mesmo em simulação com níveis residuais e subletais de 2,4-D. Segundo a autora, “desde 2014 o plantio de novas mudas passou a ser inviabilizado, uma vez que, a partir da intensificação dos episódios de deriva de herbicidas hormonais na região, as mudas não conseguem mais se estabelecer e, em um período de até três anos, acabam morrendo”.
O Instituto Brasileiro de Olivicultura (Ibraoliva) também vem alertando sobre problemas e queda na produtividade do azeite gaúcho. Segundo a entidade , olivicultores esperavam produzir em torno de 1 milhão de litros de azeite na safra de 2023, mas conseguiram cerca de 600 mil litros. Em 2024 foi pior: 192 mil litros. Há relatos de produtores que pensam em desistir. E quem pretende entrar no setor tem preocupações com a soja.
Apesar dos impactos nocivos da deriva do 2,4-D serem relados há décadas, o governo do Rio Grande do Sul publicou instruções normativas (nº 05/2019, 08/2019, 09/2019, 12/2022 e 13/2022) que são ineficazes. Produtores não preenchem declarações essenciais para o monitoramento e proteção da circunvizinhança. Foram também oferecidos cursos de boas práticas para aplicação, que foram alvos de críticas. “Claro que houve os cursos de formação e qualificação em todo o estado, mas o produtor de soja não segue essas regras. Ele não vai medir as condições de vento, temperatura e umidade. Aplica quando precisa e pronto. E o pior é que ninguém fiscaliza isso”, afirmou Sergio Poletto.
Essa realidade, segundo a liderança, expõe também a urgência de medidas para proteger a saúde dos trabalhadores expostos às pulverizações. “São eles que aplicam o veneno, que estão diretamente expostos à deriva, muitas vezes sem nenhum equipamento de proteção individual”, ressaltou. E lembrou que há estudos sobre o potencial da substância de causar problemas hormonais e reprodutivos, diversos tipos de câncer, linfoma não-Hodgkin, alterações genéticas e malformações congênitas. Segundo relatórios da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o 2,4-D pode ser categorizado como tóxico ao DNA das células, ao sistema reprodutivo e neurológico, além de desregulador do sistema endócrino. O agente ativo, aliás, é proibido na Dinamarca, Suécia e Noruega, e em alguns estados do Canadá e províncias da África do Sul.
Veneno chegou a ser proibido
No início de setembro, a Justiça concedeu limiar à ação civil pública movida pela Associação dos Vitivinicultores da Campanha Gaúcha e Associação Gaúcha de Produtores de Maçã e concedeu liminarmente a proibição do uso e comercialização do herbicida no estado. E determinou que o estado instale um sistema seguro de monitoramento e fiscalização e que apresente, em 120 dias, projeto de sistema de monitoramento e a delimitação das zonas de exclusão. Mas o governo de Eduardo Leite (PSD) recorreu. Alegou prejuízos econômicos e administrativos aos produtores de grãos que já compraram insumos para o início da safra 2025/2026. A Justiça acatou e derrubou a proibição, torando-se alvo de críticas e repúdio de diversas instituições. A ação segue em análise.
Em atenção à Justica, o governo anunciou no final de novembro que criaria, por decreto, zonas de exclusão para o uso do herbicida. E que, de início, seriam contempladas regiões na Fronteira Oeste, o Pampa e o entorno de Jaguari, as principais produtora de oliveiras. Mas há críticas. “Essas zonas de exclusão divulgadas não resolvem a raiz do problema, que é a deriva do herbicida, que continuam. Dependendo do vento, da umidade, do calor, pode chegar a 30, 40 quilômetros do ponto de aplicação. E até mais. Então se criam áreas de exclusão bem menores que o alcance da deriva, o que não vai resolver o problema dos produtores de orgânicos”, disse Poletto.
Na mesma época, o Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos divulgou nota em defesa da imediata suspensão da comercialização e uso do 2,4-D, do fim do registro da substância e seus derivados no país, políticas públicas de incentivo à agroecologia e o fortalecimento da fiscalização e do monitoramento de resíduos de agrotóxicos em alimentos e no meio ambiente, incluindo o 2,4-D e seus derivados. O Fórum é um espaço que reúne mais de 70 instituições, como órgãos públicos, conselhos, sociedade civil, sindicatos e universidades.
Em entrevista ao Blog do Pedlowski, a procuradora da República Ana Paula Carvalho de Medeiros, coordenadora adjunta do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos (FGCIA), defendeu que o Estado tome medidas que aumentem a proteção à saúde e meio ambiente, como é de sua competência. “E não o contrário”, disse, referindo-se ao recurso do governo Leite contra a proibição. Ela citou o exemplo do governo do Ceará, que em 2019 proibiu a pulverização aérea de agrotóxicos em todo o estado. “A constitucionalidade da lei foi questionada, mas confirmada pelo Supremo Tribunal Federal em 2023”, lembrou. Uma manobra, no entanto, conseguiu autorizar o uso de drones no lugar de aviões agrícolas.
Ela lembrou que uma iniciativa legislativa no estado para proibir o 2,4-D foi apresentada em 2109 (Projeto de Lei 214/19), com apoio do Fórum. Apesar da importância, não prosperou e, conforme o Blog do Pedlowski apurou, se encontra atualmente arquivado.
O fórum gaúcho também é contrário aos incentivos tributários à indústria dos agrotóxicos. Levantamento de um grupo de pesquisa em justiça ambiental, alimentos, saberes e sustentabilidade da Universidade do Vale do Taquari (RS), calculou a renúncia de todos os estados e o Distrito Federal 2017. E atualizou os valores para 2023, com base no IPCA. O RS abriu mão de R$ 973,7 milhões em 2023 referente ao Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). É como se tivesse pagando para as indústrias causarem danos à saúde e meio ambiente.
*Cida de Oliveira é jornalista e colaboradora do Blog do Pedlowski











