Arqueologia como ciência

Por Arthur Soffiati*

Arthur Soffiati / Divulgação

No curso de noções básicas de arqueologia, um dos professores afirmava que ela, a arqueologia, tratava-se de ciência. Um campo científico deve ter objeto e fundamentos científicos. Claro que eles podem mudar, já que os paradigmas científicos mudam. O mais sólido fundamento apresentado dizia respeito aos estratos, vale dizer às camadas de terra. Parecia elementar concluir que, se uma camada estratigráfica é mais profunda que outra, a que está embaixo é mais antiga. Portanto, o material arqueológico encontrado em camada mais profunda que outra é mais antigo.

Depois, havia os métodos de datação radiativos, sendo o principal o do carbono-14. Trabalhando no Museu Nacional também comecei a desconfiar de que lidava não com uma ciência, mas com uma técnica científica. Eu me cansava de limpar objetos encontrados em escavações e de separá-los em caixas. Depois, apareceu um estudante que aspirava a ser arqueólogo e descrevia o material. O resultado ia para um artigo científico com descrições do terreno em que o material foi encontrado. Com a estratigrafia. Com a descrição do que fora encontrado.

Era tudo muito maçante e não maçante. Não me parecia ciência. Pelo menos, ciência inteira. Havia muita descrição e pouca interpretação. A arqueologia parecia mais um método do que uma ciência. Para o paleontólogo, a estratigrafia também é importante. Mas nem sempre o que está embaixo é mais antigo do que está em cima. Imaginemos um sítio que sofreu erosão pluvial. Todo material arqueológico ou
paleontológico pode estar misturado. É preciso seguir outro caminho para interpretá-lo.

Ou o arqueólogo é um historiador ou é um paleontólogo. Ele não pode se contentar em descrever pontas de flecha ou ossos de um megatério ou de toxodonte. A cultura é, antes de tudo, imaterial. Não se pode tocar nas crenças, relações sociais, concepções artísticas. As crenças não estão nas imagens. As relações sociais não estão nos códigos legais. As artes não estão nos prédios, nas esculturas, nas pinturas,
nos livros. Mas a cultura imaterial se expressa na cultura material. Quando uma cultura morre ou se transforma, os bens materiais que ela criou resistem. Mesmo assim, muita parte do material se perde. Cabe, então, ao arqueólogo, reconstituir, até onde possível, a parte material que se perdeu. Também até onde possível reconstituir a cultura imaterial a partir do que restou da cultura material.

Procedimento semelhante cabe ao paleontólogo. Ele só conta com carapaças e ossos de animais extintos. Muitas vezes, apenas com um fragmento. Caberá a ele a difícil tarefa de reconstituir o animal todo. Indo além, cabe a reconstituição do seu meio. Assim tem procedido a ciência. Ela não se contenta com a descrição de objetos e de ossos.

O que se chama de sítio de contato é aquele em que são encontrados restos materiais de duas ou mais culturas, indicando que essas culturas tiveram contato. Esses restos podem indicar a troca de bens materiais, mas podem também assinalar processos de aculturação. Por exemplo, um bem material que associa traços de duas ou mais culturas. Como procederia um arqueólogo diante de um santo cristão com
fisionomia de indígena? Faria apenas a descrição dele ou refletiria sobre um contato mais demorado de duas culturas?

O desparecimento progressivo de bens materiais de uma cultura e o avanço de bens de outra cultura poderiam indicar um processo de extermínio. Os métodos de escavação, datação e descrição continuam tendo importância fundamental, mas não bastam. A interpretação e a reconstituição são essenciais. Os arqueólogos que estão trabalhando na Amazônia atualmente caminham nessa linha. Através de escavações e de observação do terreno, eles estão concluindo que a população amazônica era muito maior antes da chegada dos europeus. Essas sociedades produziam terra preta, praticavam a silvicultura, tinham aldeias maiores do que se imaginava, faziam trocas de longo alcance etc. Muitas delas seriam avessas ao Estado, na linha do que Pierre Clastres, antropólogo marxista para quem algumas sociedades não permitiram a formação de Estado. Entendo que só se repele aquilo que se conhece e que se tem.
Portanto, não concebo uma sociedade que repele o Estado antes que ele se constitua.

Examinando as sociedades americanas pré-europeias, conclui-se de maneira provisória (uma concepção científica é provisória) que os esquemas formulados com base nas sociedades paleolíticas e neolíticas da Europa e Ásia não se aplicam à América. Aqui, o paleolítico, o neolítico e o civilizado se misturam. Nomadismo e sedentarismo se combinam. Há sociedades coletoras, pescadoras e coletoras sedentárias ou semissedentárias, assim como sociedades agriculturas seminômades. Existem sociedades ditas civilizadas com práticas nômades na sua periferia. Enfim, há muitos aspectos da realidade que transcendem os bens materiais. Daí, concluir que meu desejo não se satisfazia com a arqueologia, que muito pesou em minha formação. 

*Professor, historiador, escritor e ambientalista