Mangue e humanos: rio Guaxindiba (SFI)

Por Arthur Soffiati

Arthur Soffiati / Divulgação

O rio Guaxindiba nasce na zona serrana, nas adjacências de Morro do Coco, e corta os tabuleiros. Nesse trecho, seu desenho é o da copa de uma árvore penteada pelo vento. Durante a segunda fase do Holoceno, a partir de 5.100 anos antes do presente até a chegada dos portugueses, toda a região era coberta por suntuosa mata estacional semidecidual. Trata-se da mesma Mata Atlântica adaptada a uma dupla sazonalidade. Na estação chuvosa, a mata mostra toda a sua pujança. Na estação seca, as árvores perdem de 20 a 50% das folhas. Os povos pioneiros encontravam nessa mata o alimento necessário à vida. O colonizador europeu entendia que essa cobertura florestal ocupava o espaço que poderia ser utilizado para lavouras e pastagens. Mesmo assim, ainda no século XIX, naturalistas europeus que por ela passaram descrevem sua beleza e a diversidade de sua fauna.

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Mapa de 1785, desenhado por Manoel Martins do Couto Reis, mostrando o rio Guaxindiba

No trecho final, o rio Guaxindiba assinala o limite norte da restinga de Paraíba do Sul. Na verdade, ele é o limite de toda a planície fluviomarinha dos Goitacazes. A vegetação típica de restinga e manguezais ornavam suas margens de forma mais pujante que atualmente. O mais antigo registro cartográfico conhecido do rio Guaxindiba foi feito por Manoel Martins do Couto Reis, em 1785. Desde então, a bacia hídrica sofrerá quatro grandes impactos.

O primeiro deles foi o secular processo de remoção da floresta para abrir espaço a lavouras e pastos. A madeira de lei e a lenha eram usadas pelo proprietário rural ou vendida e escoada pelo canal de Cacimbas, construído na década de 1830. Ele ligava o rio Paraíba do Sul à lagoa do Macabu, no Sertão das Cacimbas. Outro método muito comum era o uso do fogo, sacrificando a lenha e a madeira nobre. A remoção da mata deixou o solo à mercê das intempéries. Chuvas e ventos provocavam erosão e o transporte de sedimentos para o leito dos rios formadores da bacia, o que gera assoreamento. Exposto ao sol, o solo é laterizado, ou seja, rachado. Da grande floresta, restaram alguns pequenos fragmentos, sendo o maior deles a conhecida Mata do Carvão, que acabou protegida pela Estação Ecológica Estadual de Guaxindiba no século XXI.

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Carta do IBGE (1968), mostrando a bacia do rio Guaxindiba (azul) e a Mata do Carvão (verde)

O segundo impacto foi causado pelas barragens construídas por proprietários rurais para reter o que eles próprios contribuíram para esgotar: a água. O regime hídrico dos rios não é mais o mesmo. Até esses rios foram desviados de seu curso, transformando-se em pântanos. Com as chuvas torrenciais, contudo, eles voltam com força e se transformam em torrentes. As estradas municipais e estaduais também barram a bacia. A RJ-224 corta o Guaxindiba em vários dos seus afluentes. A RJ-196 – rodovia litorânea – seccionou o manguezal do Guaxindiba, obrigando o rio a correr por estreita manilha tubular acima do nível das marés. Assim, a água do mar não alcança mais o fragmento do mangue situado a montante da estrada, submetendo-o a estresse permanente. 

O terceiro impacto mutilou a bacia em seu trecho final. Um projeto do Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) concebido para ligar o rio Paraíba do Sul ao mar, antes de sua foz, rasgou o canal Engenheiro Antonio Resende até o oceano no ponto da foz do Guaxindiba. Este rio passou, assim, a ser afluente do canal. Par drenar o brejo do Espiador, trecho alagado do Guaxindiba, o DNOS abriu o canal de Guaxindiba, que também deflui no canal Engenheiro Antonio Resende. Atualmente, muitos moradores do local consideram este canal como sendo o rio Guaxindiba.

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Legenda: 1- rio Guaxindiba original; 2- canal Engenheiro Antonio Resende; 3- canal Guaxindiba

O grande canal abriu espaço para o avanço do manguezal, que ganhou área para expansão. Ele entrou pouco no canal Guaxindiba, onde a dominância fica por conta da vegetação de restinga. Mas sinais de estresse aparecem no manguezal como um todo. Um deles é a emissão de raízes adventícias anômalas com pneumatóforos emergindo acima do nível d’água, ou seja, raízes anormais em plantas de mangue. Outro é o crescimento vertical de exemplares apinhados de mangue branco de forma retilínea. A falta de acesso a marés que transportem sementes (propágulos) para outros pontos, faz com que elas germinem de forma concentrada em área exígua e cresçam em busca do sol. É o resultado de uma grande competição. Mas os dois canais facilitam a penetração da língua salina a pontos não alcançados por ela antes. 

O quarto impacto é causado pela urbanização desordenada de Guaxindiba e de Sossego, respectivamente, nas margens esquerda e direita do complexo hídrico. Existem áreas do mangue com casas e ruas em seu interior. E não são casas de pessoas de baixa renda. No rio Guaxindiba, hoje restrito a um filete de água, há casas de alvenaria com dois pavimentos.

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Rua no interior do manguezal do rio Guaxindiba separando as casas do mangue. Foto do autor

Mas também existem habitações de baixa renda, sobretudo na margem esquerda do canal Engenheiro Antonio Resende. Este foi aberto com fins de drenagem da lagoa do Campelo, cujo espelho d’água foi estabilizado para evitar oscilações. Ela é ligada ao rio Paraíba do Sul pelo canal do Vigário. O plano de estabilizar o leito da lagoa com os dois canais não apresentou o resultado pretendido, sobretudo pelas longas estiagens.

A areia retirada da restinga para a abertura do canal foi depositada na margem direita do mesmo, impedindo que o manguezal se expanda. Ele consegue chegar a seis quilômetros a montante do canal, mas se restringe a uma estreita franja.

A urbanização está crescendo de forma acelerada e desordenada. Na margem esquerda do canal de Guaxindiba, ergue-se agora um loteamento.

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Canal Engenheiro Antonio Resende na maré baixa. Margem direita ocupada por mangue; margem esquerda ocupada por habitações de baixa renda