Um olhar crítico sobre a COP 30 e a retórica da transição energética

Desde a Eco-92, a promessa das COPs tem sido a mesma: alcançar um equilíbrio entre desenvolvimento econômico e proteção ambiental. No entanto, a porta permanece fechada às transformações estruturais

Crédito: Ricardo Stuckert / PR

Por Neilton Fidelis da Silva, Leandro Andrei Beser de Deus, Márcio Giannini Pereira e Eduardo Janser de Azevedo Dantas.

“No Ocidente, é permitido falar sobre tudo que se queira, mas não é permitido mudar absolutamente nada.”
Conrad Rheinhold

A epígrafe de Rheinhold sintetiza a contradição que atravessa as Conferências das Partes (COPs) ao longo das últimas três décadas. Sob o discurso da sustentabilidade e da urgência climática, governos, universidades, ONGs e setores da sociedade civil se reúnem anualmente para renovar uma promessa de transformação, uma “esperança sagrada”, que promete novas abordagens e soluções milagrosas para a crise ambiental. No entanto, como em um ciclo litúrgico, a porta permanece fechada às transformações estruturais necessárias, não apenas no modo de produção, circulação e acesso às mercadorias, mas também nas formas de dominação técnica, tecnológica e informacional que moldam o meio técnico-científico-informacional descrito por Milton Santos – e que expressa as contradições do processo de globalização.

As Conferências das Partes nasceram sob o signo da esperança – ou talvez de uma falta de esperança, forjada por um olhar hegemônico. Desde a Eco-92, passando pelo Protocolo de Kyoto e pelo Acordo de Paris, a promessa tem sido a mesma: alcançar um equilíbrio entre desenvolvimento econômico e proteção ambiental. Entretanto, por trás dessa retórica conciliatória, há um projeto de poder que define quem fala, quem decide e quem é afetado.

Mas que ambiente é esse? O “meio ambiente”? Uma natureza apartada da sociedade? Essa dicotomia serve para mascarar as lutas materiais e de classes, próprias do modo de produção capitalista, que transforma a natureza a partir de uma relação abissal de poder. Ao separar sociedade e natureza, o discurso dominante naturaliza as desigualdades e invisibiliza as dimensões sociais da crise ambiental.

A chamada proteção ambiental precisa, portanto, considerar a natureza em sua dimensão social. Ambiente, em sentido amplo é o espaço das relações indissociáveis entre sociedade e natureza. Ele integra meios físico, biótico e social, abarcando povos e comunidades locais e revelando as dimensões estruturais da desigualdade territorial – uma perspectiva ao mesmo tempo sistêmica e estrutural.

É sob essa lente que se desvela a distância entre o discurso global e as realidades locais. O discurso da sustentabilidade globalizada pouco dialogava com a vida concreta de quem enfrentava o desemprego, a fome e a ausência de serviços públicos. A crise ambiental, nesse contexto, não é uma abstração planetária, mas a continuidade das diferentes formas de vulnerabilidade expressas no território.

Trinta anos depois, a realidade mostra que o carvão e o petróleo permanecem como pilares da matriz energética mundial, ainda respondendo por mais de 80% de toda a oferta de energia primária do planeta. As promessas de transição e equilíbrio, repetidas a cada cúpula, convivem com a persistência de um modelo econômico que pouco se move.

Nesse contexto, um léxico sofisticado e cosmopolita foi sendo incorporado ao vocabulário do desenvolvimento: Sustainable Development, Clean Development Mechanism, Reducing Emissions from Deforestation and Forest Degradation (REDD+), Kyoto Protocol, Intended Nationally Determined Contribution (INDC), Nationally Determined Contribution (NDC), Water-Energy-Food Nexus (WEF Nexus), Environmental, Social and Governance (ESG) e, mais recentemente, Energy Transition tornaram-se parte do vocabulário global. Essas expressões, difundidas em relatórios, eventos e publicações, funcionam como marcadores discursivos de engajamento ambiental. Cada nova expressão parece inaugurar um tempo de mudança, mas o resultado é, em grande medida, simbólico. Contudo, o que se observa, na prática, é a manutenção de uma profunda assimetria entre países, populações e regiões no acesso e no uso da energia. O discurso muda, os termos se renovam, mas a prática econômica permanece intocada. Na linguagem contemporânea, essas promessas “somam likes”, mas não alteram o curso material do mundo.

A “liturgia das fontes renováveis”, em curso, é celebrada nos discursos oficiais, mas ela impõe novos constrangimentos socioambientais sobre povos, comunidades e ecossistemas vulneráveis. A intermitência técnica das fontes solar e eólica, por exemplo, ainda representa um desafio significativo para a estabilidade dos sistemas elétricos.

Países como o Brasil já demonstram sinais de vulnerabilidade em sua infraestrutura energética, o que indica que a chamada “transição energética” tem sido conduzida mais como uma narrativa do que como uma política pública efetiva. Em alguns casos, essa discussão ignora o diferencial do país, cuja matriz energética é cerca de 45% renovável e em que a matriz elétrica ultrapassa 85% – índices não alcançados por nenhuma outra economia.

Isso posto, é possível afirmar que o Brasil iniciou sua transição já nos anos 1970, sob um regime de exceção. À época, o choque do petróleo impulsionou uma política de autossuficiência energética baseada em grandes empreendimentos hidrelétricos e na expansão da produção nacional de petróleo. Essa estratégia priorizou a infraestrutura e a segurança energética, mas foi marcada por baixa participação pública e impactos socioambientais profundos sobre ecossistemas e sobre povos e comunidades tradicionais que tiveram seus territórios alagados, deslocados ou transformados em zonas de sacrifício.

Mais recentemente, a criação da Política Nacional de Transição Energética (2024) busca dar um novo enquadramento a esse debate, propondo diretrizes para uma mudança gradual e inclusiva da matriz energética. Contudo, o desafio persiste: converter o discurso de transição em uma política efetiva que promova não apenas inovação tecnológica, mas também justiça territorial, social e ambiental.

A COP 30, que se inicia em Belém, representa não apenas mais uma rodada do mercado de promessas climáticas, mas a consolidação de um ritual político, científico e midiático que reafirma, ano após ano, a imobilidade estrutural que a caracteriza. Afinal, o que se negocia nessas conferências não é o clima – como se fosse possível trocá-lo por acordos e compensações –, mas os limites do poder global, os fluxos de financiamento e as condições de permanência de um modelo que produz a própria crise que pretende resolver.

Urge, portanto, uma análise crítica do papel das COPs, especialmente da COP 30, na reprodução de um discurso global de “sustentabilidade” que, apesar de seus avanços retóricos, tem se mostrado ineficaz diante da permanência de práticas produtivas e energéticas intensivas em carbono. Argumenta-se que o evento se consolidou mais como uma encenação simbólica do compromisso ambiental do que como um espaço de efetiva mudança material.

Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) revelam o abismo entre a retórica da sustentabilidade e a realidade energética mundial. Aproximadamente 2,1 bilhões de pessoas – quase um terço da população global – ainda cozinham com fogões movidos a querosene, lenha, esterco animal ou resíduos agrícolas. Em 2020, a poluição do ar doméstico causou cerca de 3,2 milhões de mortes, incluindo 237 mil crianças menores de 5 anos. No total, estima-se que 6,7 milhões de mortes prematuras anuais estejam associadas à soma dos efeitos da poluição doméstica e ambiental.

As doenças relacionadas à poluição doméstica são majoritariamente não transmissíveis, destacando-se derrames, doenças cardíacas isquêmicas, doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) e câncer de pulmão. Em 2020, segundo a OMS: 32% das mortes por poluição doméstica foram causadas por doenças cardíacas isquêmicas; 23%, por acidentes vasculares cerebrais; 21%, por infecções do trato respiratório inferior, sendo que a exposição ao ar poluído quase dobra o risco de pneumonia infantil e é responsável por 45% das mortes por pneumonia em crianças menores de 5 anos; 19%, por DPOC e; 6%, por câncer de pulmão, com 17% das mortes por essa causa atribuídas à exposição a materiais cancerígenos provenientes da queima doméstica de querosene, madeira e carvão.

Esses números desnudam mais do que uma falácia dos grandes fóruns ambientais: revelam um projeto de ordem global, no qual a pobreza não é acidente, mas parte estruturante do sistema. Enquanto os países ricos concentram recursos para inovação tecnológica e neutralidade de carbono pela adoção de energias chamadas “limpas”, vastas populações do Sul Global continuam privadas do acesso básico à energia segura e moderna – e, paradoxalmente, são também as mais afetadas pelos impactos dessa transição, que avança sobre territórios, modos de vida e ecossistemas já vulnerabilizados. Nessas regiões, a construção de barragens, parques eólicos e fotovoltaicos avança sobre modos de vida, ecossistemas e direitos coletivos e configura a mercantilização de recursos e territórios, convertendo a promessa de sustentabilidade em novas formas de desigualdades.

Dessa forma, os encontros internacionais, como as COPs, têm se transformado em espaços de celebração simbólica, repletos de boas intenções, painéis e discursos inspiradores; porém, com pouca disposição para enfrentar os interesses econômicos que sustentam a dependência global dos combustíveis fósseis. Na COP 30, a promessa é que Belém, com sua rica cultura amazônica, seja palco de debates e celebrações. Assim, é sintomático que a expectativa midiática se concentre no perfume do evento do que em sua essência, privilegiando a forma em detrimento dos compromissos efetivos de mudança.

Nos “side events” da COP-30, o que se produzirá é mais retórica do que ruptura. Permanece no ar o fantasma das 29 COPs anteriores, projetando o risco de que essa festa global se converta novamente em um espetáculo fora de época – uma coreografia de discursos e gestos cuidadosamente controlados, como em O agente secreto, de Kleber Mendonça Filho, onde a aparente normalidade revela o desconforto e a paralisia diante do real: um encontro que reafirma o consenso estético da sustentabilidade, mas evita qualquer confronto com as estruturas sociais, econômicas e políticas que perpetuam a desigualdade energética e ambiental.

As COPs, ao longo de trinta anos, consolidaram-se como rituais discursivos que reafirmam a capacidade de se falar sobre tudo – inclusive sobre o próprio fracasso – sem, no entanto, alterar as estruturas que produzem a crise climática. O evento em Belém, embora carregado de simbolismo amazônico, corre o risco de reproduzir a mesma lógica de espetáculo e consenso, em que as palavras substituem a ação e o engajamento político é substituído pela performance ambiental.

Superar esse impasse exige mais do que novos conceitos ou protocolos: requer o enfrentamento direto das assimetrias econômicas, tecnológicas e energéticas que sustentam a desigualdade global. Aceita-se, com resignação, o inevitável colapso, em vez de se mexer nos pilares do modo de produção. Enquanto a transição energética permanecer restrita ao campo do discurso e não se converter em política concreta de redistribuição e soberania, as COPs continuarão sendo o que sempre foram: espaços onde se pode falar sobre tudo – menos sobre mudança real.

Neilton Fidelis da Silva é professor do Programa de Pós-Graduação em Uso Sustentável de Recursos Naturais do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (PPgUSRN/IFRN) e pesquisador do Instituto Virtual Internacional de Mudanças Globais (IVIG/UFRJ).

Leandro Andrei Beser de Deus é coordenador do Núcleo de Estudos Geográficos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Negeo/Uerj) e pesquisador do IVIG/UFRJ.

Márcio Giannini Pereira é pesquisador do IVIG-UFRJ.

Eduardo Janser de Azevedo Dantas é professor do IFRN.

Referências bibliográficas

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). Household air pollution and health. Geneva, 2020.

RHEINHOLD, Conrad apud MÉSZÁROS, István. Para além do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011, p. 997.

UNITED NATIONS FRAMEWORK CONVENTION ON CLIMATE CHANGE (UNFCCC). Conference of the Parties Reports (COP 1–COP 29).