O agricultor Antônio Carvalho Tamoquim se dividiu, durante a infância, entre duas comunidades tradicionais na Bahia: Juacema e São Gonçalo da Serra. A troca entre os lugares possibilitava o plantio de lameiro e um melhor aproveitamento do solo ao longo do ano, mas foi interrompida em 1975 quando Juacema foi alagada pela chegada da usina hidrelétrica de Sobradinho. Desde então Antônio vive com a família em São Gonçalo, uma comunidade rica em registros arqueológicos e localizada em uma das rotas mais cobiçadas para geração de energia eólica.
“No inverno, a gente estava em São Gonçalo da Serra e, durante o verão, estava na beira do rio. Era um jogo vindo e voltando”, explica. Indígena da etnia Tamoquim, ele conta que a prática de cultivar nos lameiros que se formam na vazante do Rio, bem como o costume de mudar-se para o outro lado da serra em determinados momentos do ano, percorreu gerações de sua família. ”Minha mãe me levava quando eu ainda era menino. Era uma forma de não deixar faltar comida”, conta.
A falta de uma residência fixa, posse de terras ou propriedade, porém, multiplicou as violações sofridas pela família na chegada da Usina de Sobradinho. “Lá em Juacema a gente não tinha casa de tijolo, só construção de barro para ficar durante as cheias. Quando a barragem chegou, foi como se a gente não existisse”, diz.
Embora São Gonçalo também tenha recebido impactos indiretos do empreendimento e da construção da cidade de Sobradinho, muitas pessoas foram à comunidade após o alagamento completo de diversas comunidades do entorno. “Tudo que a gente tinha em Juacema era um pedacinho de terra na beira do rio que a gente plantava. Mas a Chesf [Companhia Hidro Elétrica do São Francisco] não achou que valia nada, então não recebemos nada de indenização. Era tudo conforme o acordo que eles faziam. Eles quem decidiam”, conta.
Ou seja, apesar de ter perdido metade do território onde, há gerações, plantava-se para consumo próprio, a família de Antônio não recebeu qualquer auxílio. Até meados dos anos 2000, o grupo – cujas terras foram alagadas em nome da renovação energética no país – seguiu privado de energia elétrica. “Você podia reclamar, podia dizer ‘eu não saio’ e eles respondiam ‘ou você sai, ou a gente passa o trator por cima’. Eles diziam que quando a barragem fosse aberta nós sairíamos de qualquer jeito, nem que fosse afogados”, diz.
Com imagens produzidas no ano de 1979 e direção de Peter Von Gunten, o documentário suíço Terra Prometida denunciou, à época, o impacto do empreendimento – cujos equipamentos foram adquiridos de fábricas suíças – na vida de camponeses brasileiros. O cenário do curta-metragem é São Gonçalo da Serra e, entre os personagens, estão o próprio Antônio, ainda adolescente, além de sua mãe e irmãos. Dez anos depois, a equipe retornou ao local para a sequência Terra Roubada, no qual observa a vida dos mesmos personagens desta vez após a fixação do empreendimento.
Enquanto o primeiro filme exibe o assédio da empresa e o apego dos moradores ao território, ainda que carente de ações do Estado, a sequência menciona que, mesmo após a chegada da barragem, apenas grandes fazendas da região têm acesso a água e irrigação. Eletricidade também é um privilégio. Em algumas cenas, é possível ver trechos alagados onde não se pode mais plantar.
Um engenheiro da Companhia Hidrelétrica aparece no filme. Em entrevista aos documentaristas, ele comenta que a resistência dos camponeses locais em deixar o lugar prejudicaram os planos da empresa. “Esperávamos que cerca de 5 mil famílias se deslocassem [para agrovilas construídas a 700 quilômetros da área da barragem]. Infelizmente por um atavismo e uma ligação muito grande que o homem nordestino tem com a sua região, o projeto não teve o sucesso desejado”, afirmou João Paulo Aguiar, engenheiro eletricista que participou da construção da barragem da hidrelétrica, no documentário.
Além da barragem, surgiu também Sobradinho, à época um distrito do município de Juazeiro, construído para contemplar o intenso fluxo de trabalhadores na usina. Até então, a comunidade de Juacema pertencia também a Juazeiro e o distrito de São Gonçalo, a Sento Sé. Com a chegada da nova localidade e, mais tarde, sua emancipação (em 1989) para município, não só as comunidades passaram a ter uma nova sede, como traços do modo de vida e do trabalho local adquiriram novos contornos.
Outro trecho de Terra Roubada, que passa quase despercebidamente, mostra Antônio assistindo pela primeira vez às imagens de uma televisão na cidade recém-construída de Sobradinho. No vídeo assistido pelo agricultor está a liderança indígena Raoni Metukire, o Cacique. Em entrevista ao #Colabora, o agricultor conta que aquela provavelmente foi a primeira vez que ouviu sobre o reconhecimento de Terras Indígenas.
Ele também diz que acredita que a chegada da barragem atrapalhou a conquista de direitos e do reconhecimento formal da sua etnia Tamoquim, ainda não catalogada pela Fundação Nacional do Índio (Funai). “Quando eles ocupam nossa terra eles também apagam um pouco da nossa história, prejudicam a nossa identidade. Documento a gente foi ter depois, e deram o documento de pardo. Existe a família pardo?”, questiona.
Há registros de aldeias Tamoquins também no território onde hoje está a cidade de Sobradinho, construída na região há 34 anos, para abrigar a sede, a demanda e os trabalhadores da Usina de Sobradinho. Além disso, São Gonçalo da Serra é lentamente inserida no roteiro turístico da região devido à presença de pinturas rupestres em algumas das serras, consideradas uma herança sagrada dos ancestrais indígenas. Não há, porém, qualquer medida de proteção do Estado às pinturas.
Segundo o doutor em arqueologia e docente aposentado da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) Celito Kestering, em estudo publicado em 2019, a região começou a ser estudada por arqueólogos entre as décadas de 1970 e 1980, período de construção da barragem de Sobradinho. À época, foram identificados os primeiros sítios, dos quais muitos provavelmente seguem sob o lago artificial. Kestering foi responsável pela catalogação recente de muitas das pinturas da região, com idade estimada em mais de 9 mil anos.
No mesmo estudo, o pesquisador afirma que “ainda é possível observar remanescentes das etnias Truká, Caimbé, Tupiná, Tamoquim, Atikum, Amoipirá, Acoroá, Crinquirim, Tuxá e Guegoá realizando rituais sagrados junto aos boqueirões e grotas das serras onde seus ancestrais registraram paineis de pinturas e gravuras rupestres”.
Outros tesouros históricos da região são ferramentas indígenas que, há algumas gerações, Antônio faz questão de conservar na família. Pilão, apito, entre outros objetos em pedra são orgulhosamente exibidos por ele como prova de sua linhagem. “A gente nunca precisou estudar o que era o índio, porque dentro de casa a cultura estava lá. Nos rituais religiosos, nós recebíamos guias espirituais também. Sempre teve os caboclos pra nos dizer o que fazer. A história nunca nos deixou”, afirma o agricultor indígena.
No livro Amputações das Montanhas do Sertão (2021), os autores Juracy Marques, Lucas Zenha e Pablo Montalvão registram: “muitos artefatos e outros vestígios indígenas estão sendo encontrados pelas empresas eólicas e mineradoras que chegaram com intensidade na região das serras [do Sertão da Bahia], e não há um controle sobre esses achados”.
Território mapeado por eólicas
A conservação dos registros físicos da história de São Gonçalo da Serra e do próprio Antônio resgatam uma preocupação já conhecida por ele, que viveu a chegada da primeira hidrelétrica do Nordeste. “Acho que se contar direito, já tem uns 18 anos que começou essa confusão. Primeiro tentaram invadir nossas terras com um tipo de grilagem, teve gente que não era daqui dizendo que era, com interesse financeiro”, recorda. Segundo Antônio, o momento foi fruto de um conflito familiar. Reconhecidas como comunidade tradicional de fundo de pasto, porém, as terras não podem ser comercializadas.
“Depois, há uns 12 anos, chegou uma eólica e nós fomos atrás da justiça”, diz. A eólica a qual o agricultor se refere era a empresa Sowitec, que realizava, em 2012, estudos e mapeamento em São Gonçalo da Serra. “Quando a gente viu que eles estavam invadindo a frente das propriedades da gente, a gente fez uma reunião entre os parentes da comunidade, veio na Justiça e registrou uma queixa”, recorda. Antônio não sabe informar detalhes sobre o processo, mas diz que a obra não andou. Por outro lado, uma torre de teste para geração de energia eólica segue há anos na comunidade.
Experiente do auxílio às comunidades tradicionais na Bahia, o agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Carivaldo dos Santos, comenta que “existe a necessidade da transição energética, nós sabemos que é preciso, mas existem coisas que precisam ser pontuadas. Uma delas é que no Brasil há uma cultura de injustiças contra comunidades tradicionais, como as do Sertão da Bahia, desde os valores pagos para arrendamento até o domínio do território que ocorre quando a empresa se instala. Porque a chegada de uma eólica controla o território, a terra. Além dos impactos, o uso da terra fica condicionado à empresa”.
“Outro ponto que não podemos esquecer é que o Brasil tem energia suficiente para a nossa própria demanda. Não significa que não precisamos pensar nisso, mas também não há razões para cedermos a esse modelo concentrado que visa o lucro mais do que a própria geração de energia”, completa Carivaldo, lembrando o impacto dos parque eólicos.
“Eu conheço a mata e ela me conhece”
Embora falar sobre os impactos financeiros e ameaças à subsistência causados pela chegada da Usina Hidrelétrica de Sobradinho tragam indignação à forma como Antônio conta histórias, é quando cita ameaças ao meio ambiente que o agricultor chora.
“São coisas até emocionantes, são coisas que seguram muita gente, entendeu? Ser negado à gente um direito que é nosso, de viver em paz nas nossas terras, sem que a gente possa recorrer. Se a gente tivesse o que fazer, nossas terras não estariam sendo invadidas por esses grandes projetos que só danificam, exploram, assoreiam nossos rios sem dar direito às comunidades que cuidam dele”, diz. “Porque cada serra dessa daí removida, cada terreno escavado, a tendência é a chuva levar pro rio”.
“Se você quiser ver o quanto chega de material por ano nesse São Francisco aqui acima da barragem, é só prestar atenção. Quando ele enche, a água fica barrenta, então quando ele clareia você pode reparar em cima de um lajeiro a quantidade de terra seca em cima”, orienta. “Todo ano, quando a gente observa, tem mais terra seca”, diz o agricultor.
Antônio chora ao citar espécies de peixes que deixaram de existir na região após a chegada da Usina da Chesf. “Existe peixe de água corrente e peixe de água parada. Eles fizeram um lago, sumiram com um monte de peixe e encheram de tilápia”, diz.
De acordo com um levantamento realizado pelo portal Eco a partir de dados catalogados pelo MapBiomas, a Caatinga é o bioma que mais sofre desmatamento causado por empreendimentos voltados para energia renovável no Brasil, representando 92,6% do total desmatado nos últimos quatro anos. O estado da Bahia aparece em terceiro lugar entre os mais desmatados, atrás do Rio Grande do Norte e Piauí.
“Quem conhece a natureza, quem vive dela, enxerga os sinais”, afirma Antônio. “Mas eu digo com toda sinceridade: se eu tiver que sair daqui, se tirarem de mim a liberdade de viver no São Gonçalo, pisando onde eu possa pisar… eu não vou estar vivendo, eu vou só estar passando um tempo em cima da Terra”, finaliza.
*A série especial ‘Sobradinho, uma saga sertaneja em dois tempos’ foi uma das vencedoras da Bolsa #Colabora de Reportagem – 8 anos