Rios da Região dos Lagos

Por Arthur Soffiati

Rios da Região dos Lagos na carta de Manuel Vieira Leão - 1767

Há mais de 15 mil anos, em todo o planeta, as geleiras do Pleistoceno começaram a derreter, elevando o nível do mar. Muitas terras continentais tornaram-se ilhas ou foram submersas totalmente. Na América do Sul, o avanço do mar (transgressão) atingiu seu máximo em 5.100 anos antes do presente. Com essa elevação, a atual Região dos Lagos foi inundada. Os pequenos rios que desciam do divisor de águas da bacia do rio São João (que também foi invadida pelo mar) passaram a desembocar diretamente no oceano. 

O recuo do mar (regressão) a partir de 5.100 anos antes do presente expôs pontos pedregosos que atuaram como retentores de areia transportada pelas correntes marinhas. Formaram-se restingas e grandes lagoas. Os pequenos rios que desembocavam no mar passaram a desembocar em três grandes conjuntos lagunares: Araruama, Saquarema e Maricá. Apenas dois mais expressivos, correndo de oeste para leste, continuaram desembocando no mar: os rios Una e Trapiche. Os afluentes do Una pela margem direita – sobretudo o Papicu, o Frecheiras e o Malhada – correm de norte para sul em terreno de pequena declividade, formando extensos banhados. O Una também intercepta pequenos rios que descem do divisor de águas do São João-Região dos Lagos. Podemos ainda considerar aqueles cursos d’água ínfimos que desciam das partes elevadas do atual município de Armação de Búzios e desembocavam em lagoas, como as de Geribá e dos Ossos, para chegarem até o mar pela continuação dos cursos, ou diretamente, como o córrego do Porto da Barra.

Quem procurar esses pequenos rios que desembocavam nas grandes lagoas ou diretamente no mar não encontrará todos. O rio Una continua lá com seus afluentes, mas sofreu (e continua sofrendo) grandes intervenções em seu curso. O rio Trapiche foi transformado numa grande marina. Os córregos que chegavam e partiam das lagoas de Geribá e dos Ossos foram manilhados, assim como o de Porto da Barra. 

Ingressando nos grandes complexos lagunares de Araruama, Saquarema e Maricá, encontraremos apenas alguns cursos muito modificados e poluídos. A grande mancha urbana formada por Cabo Frio, Arraial do Cabo, Iguaba Grande, São Pedro da Aldeia, Araruama, Saquarema e Maricá soterrou os pequenos rios que corriam dos pontos elevados para as lagoas. Se quisermos fazer um estudo dos sistemas hídricos da Região dos Lagos, é preciso recorrer à cartografia e a textos antigos. 

A cartografia produzida no século XVI registra o continente a partir do mar, como se ele fosse um quadro fixado na parede. Ela se destinava a navegadores. Só as grandes fozes no mar interessavam. Os europeus se limitavam à costa. A cartografia do século XVII não avança muito no que se refere ao interior. A partir do século XVIII, a colonização avança para as zonas altas. Os rios começam a aparecer com mais clareza. Quanto à Região dos Lagos, parece que apenas foram registrados os maiores, como podemos verificar na “Carta topográfica da Capitania do Rio de Janeiro” (1767), desenhada pelo Sargento-Mor Manuel Vieira Leão, ou a “Carta corográfica da Capitania do Rio de Janeiro” (1777), do engenheiro e sargento-mor Francisco João Roscio. Os rios ainda não aparecem com clareza.

Só na cartografia do século XIX, os rios começam a aparecer, como se exibindo para o público. A cartografia passou a ser mais detalhada a partir da independência do Brasil. Para dominar um território, é preciso conhecê-lo. A cartografia é de fundamental importância nesse processo. Daí a maioria dos cartógrafos ser formada por militares. 

É possível descortinar passo a passo a rede hídrica da Região dos Lagos, mostrando como ela vai se tornando detalhada na medida em que avança o século XIX. Contudo, entende-se mais conveniente tomar a “Carta Corográfica da Província do Rio de Janeiro”, levantada por Pedro D’Alcantara Bellegarde e Conrado Jacob de Niemeyer, datada de 1867. Ambos foram cartógrafos conceituados e considerados os maiores do Império Brasileiro. Tomamos a liberdade de interferir na carta, assinalando em azul a rede hídrica da região. É possível verificar que poucos rios desembocavam diretamente no mar, sendo que a maioria corria para os três grandes complexos lagunares.

Carta Corográfica da Província do Rio de Janeiro”. Pedro D’Alcantara Bellegarde e Conrado Jacob de Niemeyer – 1867

No sistema lagunar de Maricá, os mais destacados rios eram Bussai, Mambuca, das Crioulas, Gurupina, das Caveiras e Tupitui. No conjunto das lagunas de Saquarema, destacavam-se os rios Tingui (o maior de todos), Capivari e dos Mudos. Na lagoa de Araruama, os dois maiores eram o Bento Leite e o Mataruna. Por fim, desembocando diretamente no mar, corria o Una.

A lagoa de Araruama era navegável. Um contrato de navegação exclusiva foi assinado entre o governo provincial e um empresário, em novembro de 1873. O empresário publicou um opúsculo intitulado “Lagoa de Araruama” (Rio de Janeiro: Tipografia do Apóstolo, 1875). O autor informa sobre a batimetria da lagoa e os produtos comercializados na região. O pau-brasil ainda figurava na lista de itens vendidos. Inclusive, planejou-se um canal de navegação que começava no canal de Itajuru e ligava os conjuntos lagunares de Araruama, Saquarema e Maricá, chegando até a praia de Itaipuaçu. Ele seria uma espécie de continuação do canal Campos-Macaé. Entre Macaé e Itajuru, a navegação seria feita pelo mar.

Canal projetado cruzando a Região dos Lagos 

Em 1934, Hildebrando de Araujo Góes publicou o famoso relatório “Saneamento da Baixada Fluminense” (Rio de Janeiro: Ministério de Viação e Obras Públicas). Ele reuniu os relatórios das comissões de saneamento das baixadas da província/estado do Rio de Janeiro. A primeira foi criada em 1883. Todas elas fracassaram nos seus objetivos. O mérito do trabalho de Góes foi reunir informações de relatórios que hoje, em grande parte, se perderam.

Ele informa sobre os rios Una e Trapiche, com foz diretamente no mar. Integrando a bacia de Araruama, ele aponta os rios Iguaba, Parati, Mataruna, Barreta, Ponte dos Leites, das Moças, Palmital e Regamé. Para a lagoa de Saquarema, vertiam os rios Jundiá e Mato Grosso. Para o sistema Maricá, corriam os rios Inoã, Taquaral, Preguiça, Camboatá, Madruga, São José, Imbassaí, Itapeba, Buriche, Cunha, Mombuca, Cancio, Jacaré, Pedro Guedes, Caju, Rangel, Doce, Manoel Ribeiro, Caranguejo, Padeco, Bananal, Engenho, Nilo Peçanha e Paracatu. O levantamento não é sistemático. Góes listava os cursos d’água que deveriam ser canalizados e drenados em favor de atividades econômicas. Mesmo assim, trata-se do levantamento mais exaustivo que conhecemos. 

A canalização, a drenagem e a mancha urbana da Região dos Lagos selaram o fim dessa pequena, mas complexa rede hídrica. Os rios e córregos, em sua maioria, foram eliminados, poluídos e manilhados sob o solo urbano. Hoje, alguns ainda correm a céu aberto, parecendo canais de esgoto. Os rios mais conhecidos da Região dos Lagos, embora muito cercados de problemas, são o Una e o Mataruna. Às margens do segundo, ergueu-se o núcleo urbano de Araruama. Renato da Silveira Mendes informa que, na década de 1940, Araruama foi escolhida pelo governo estadual para sediar o polo turístico da Região dos Lagos: “O governo estadual elaborou um plano de urbanismo para a cidade de Araruama abrindo um novo bairro à margem da lagoa e pondo à venda lotes de terreno dessa área urbanizada (…) Construiu, igualmente, o governo do estado um hotel de luxo dotado de instalações modernas no centro de um vasto parque. Ao lado desse hotel constroem-se atualmente pequenos vilinos destinados à hospedagem de famílias numerosas.” (“Paisagens culturais da baixada fluminense”. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, 1950).

Aspecto do rio Mataruna, quando ainda havia atividade pesqueira em suas águas

Ainda existem rios que correm a céu aberto para os complexos lagunares de Araruama, Saquarema e Maricá. O aspecto deles é lastimável. Não se pode pensar na recuperação das lagoas sem promover a recuperação dos rios.

População de aguapé, atestando poluição do rio Mataruna