Até 5.100 anos antes do presente, o mar avançou sobre um antigo continente e atingiu as portas da lagoa de Cima. Não chegou a atingi-la, segundo especialistas. Então, começou a recuar. O antigo continente foi dissolvido com esse avanço do mar. No lugar dele, um outro continente foi construído com terras transportadas pelo rio Paraíba do Sul das zonas altas. Formou-se, assim, a baixada dos Goytacazes. Ela foi arrematada pelo mar, que formou uma das maiores restingas do Brasil. No centro dessa planície, o rio Paraíba do Sul manteve sua foz aberta para o mar com dificuldade. As águas de cheias que transbordavam pela margem esquerda avolumavam lagoas. O excedente voltava ao rio em tempo de estiagem. Pela margem direita, as águas transbordadas não voltavam mais ao rio ao fim das cheias. Elas formavam sulcos pelas quais corriam, acumulando-se em partes baixas (lagoas) até chegarem a um outro rio não mais existente, que corria junto à linha de costa até chegar ao mar. Era o rio Iguaçu, do qual restaram fragmentos.
Convergiam para essa grande planície, além do Paraíba do Sul (o maior rio que a drena), os rios Ururaí (que nasce na lagoa de Cima), o da Prata, o Macabu, o Cacumanga (com nascente no próprio rio Paraíba do Sul, o do Cula (hoje, à beira da extinção), o São Bento e o Água Preta. Todos, menos o Paraíba do Sul, sofreram canalização. No meio dessa planície, reinava a grande lagoa Feia, hoje pequena perto do que foi no passado. A profusão de drenos naturais e de lagoas conferia à baixada uma fisionomia bem distinta da atual. As águas que desciam das zonas altas pelos rios e as chuvas acumulavam-se nessa planície. Jamais seria possível alegar que o atual norte fluminense sofria escassez de água, reivindicando-se sua inclusão no bioma semiárido.
Além do mais, a comunicação subterrânea entre o rio Paraíba do Sul e o sistema Ururaí-lagoa Feia era muito mais pujante. O grande engenheiro sanitarista Francisco Saturnino Rodrigues de Brito, nascido em Campos, demonstrou como as volumosas águas do rio vertiam para a lagoa Feia pelo lençol freático a partir de Itereré, quando entrava na baixada. Além desse afluente subterrâneo, a lagoa Feia recebia a contribuição dos rios Ururaí, da Prata e Macabu. Acontecia com ela o mesmo que com o Paraíba do Sul em sua margem direita: as águas buscavam uma saída em direção ao mar. Eram canais naturais defluentes. O mais destacado ao sul da lagoa Feia era o rio Iguaçu, formado por outros escoadouros e afluentes que desciam do Paraíba do Sul, como o Cula, o São Bento e o Água Preta.
Da lagoa Feia também saía um defluente complexo que recebia outros, formava várias ilhas e desembocava no mar, no que hoje conhecemos como Lagamar. Ele também era afluente do rio Iguaçu. A força do mar mantinha sua foz fechada a maior parte do ano, ensejando que as águas se acumulassem junto à praia e formassem uma extensa área úmida. Era o Lagamar. Na verdade, parece que a abertura natural da barra do rio Bragança era rara. Ela tinha de ser aberta com a força do braço humano ou com máquinas muitas das vezes.
O primeiro a descrever o complexo lagoa Feia-rio Bragança-Lagamar foi o capitão de infantaria e também cartógrafo Manuel Martins do Couto Reis, em 1785. Mesmo assim, o complexo sistema deixou o experiente capitão confuso. Ele escreve que havia muitos drenos e ilhas ao sul da lagoa Feia e que “Todas se alagam com as grandes inundações, porém, estando aberta a barra do Furado se descobrem e têm excelentes pastos. De les-nordeste continuando fica o denominado rio do Madureira, o qual com novas recepções de águas, adiante se alarga e constitui a lagoa do Bargança (É um pequeno rio. Ignoro o termo Bargança e nem houve quem me explicasse. Cuido haveria algum pescador natural de Bragança que costumasse pescar. Corrupto o vocábulo, lhe chamaram Bargança): logo mudando de rumo para o nascente, em pequena distância se converte em um lagamar: na terminação deste, toma princípio o rio Capivara, que corre quase paralelo ao combro do mar…” Examinando o rico mapa desenhado por Couto Reis, parece não restar dúvida: o rio Bragança nascia na lagoa Feia e desembocava no rio Iguaçu, que contava com vários nomes, sendo Capivara um deles.
Lagoa Feia, rio Bragança e Lagamar em carta de Couto Reis (1785). Parte do sistema foi realçado em azul
Em 1815, o príncipe naturalista alemão Maximiliano de Wied-Neuwied passou pelo sul da lagoa Feia e cruzou essa rede intrincada de canais rumo a Campos, Vitória e Salvador. Foi exatamente às margens do rio Bragança que ele pousou na casa de um pescador. Pode-se imaginar a aventura representada por um nobre alemão pernoitando na cabana de um pobre pescador da capitania de Campos dos Goytacazes. Ele não reclamou da acolhida. Pelo contrário, deixou um desenho da cabana, do pescador, de sua mulher e da travessia de sua caravana no então caudaloso rio Bragança. Talvez essa seja a mais antiga representação visual de pescadores da planície goitacá e do seu modo de vida.
O príncipe escreveu a propósito desses pescadores, dos seus hábitos e da acolhida que recebeu deles: “Quando reunidos na margem norte da lagoa tivemos um desagradável contratempo; as mulas, que estavam pastando, foram atraídas para longe por cavalos, e nós passamos o dia inteiro debaixo de chuvas torrenciais, até que, ao anoitecer, apareceu um pescador e nos conduziu a sua cabana, onde esperamos pelos animais desgarrados. Alcançamos, através de uma pequena capoeira, a margem do rio Bragança, que corre da lagoa Feia. Aí existiam duas miseráveis cabanas de pescadores onde tivemos recepção muito cordial. Eram constituídas, simplesmente, de um teto de sapê apoiado ao chão, e tinham duas pequenas divisões interiores. Nem toda a nossa numerosa comitiva pôde passar a noite abrigada, mas apenas os europeus, desacostumados ao sereno do Brasil. Sentamo-nos em esteiras, com as duas famílias dos pescadores, em roda; a fogueira ficava no meio; comemos peixe cozido com farinha de mandioca.”
Essa é mais uma das belas páginas de Maximiliano. Às margens de um rio que não mais existe no interior de uma pobre cabana de pescadores, comendo peixe com farinha. O príncipe, que residia num castelo na Alemanha, terá previsto que viveria situações como essa? E ele se mostra agradecido pela acolhida. Fez de um casal deles um desenho ingênuo, como eram seus desenhos. Também registrou as cabanas, desenho que foi refeito na Alemanha para ilustrar seu livro. O recanto dos pescadores aparece de forma romântica, com suas cabanas e canoas.
Cabanas e canoas de pescadores às margens do rio Bragança. Autor desconhecido a partir de desenho original de Maximiliano, hoje desaparecido
Ele prossegue a sua descrição: “As amabilidades dessa boa gente suavizaram o desconforto e fizeram-nos, de certo modo, esquecer a dureza da cama. A dona da cabana em que me alojei era uma criatura loquaz e jovial, de tez descorada, vestida muito ligeiramente e trazendo sempre à boca um cachimbo, como a maioria das mulheres de classe baixa do Brasil”. Esse e muitos outros encontros do príncipe no Brasil mereciam maior destaque por serem verdadeiras páginas de etnografia e por ilustrarem o encontro de duas humanidades.
Pescadora que abrigou a expedição de Maximiliano de Wied-Neuwied em sua cabana às margens do rio Bragança
Ao amanhecer, era hora de partir: “Mal raiara o dia nas cabanas apinhadas, e já os pescadores diziam suas preces com grande fervor, depois do que banharam as crianças em água morna, prática usual entre os portugueses, e, segundo parecia, impacientemente aguardada pela miuçalha (…) Logo que nos reconfortamos, os pescadores prepararam o barco para conduzir os nossos animais a vau, através do rio Bragança, que, nas proximidades das cabanas, é tapado de caniçais.” Maximiliano deixou um desenho registrando a travessia dos animais de sua expedição. Ele não foi publicado em “Viagem ao Brasil”, diário de sua excursão científica entre Rio de Janeiro e Salvador, mas se salvou e talvez seja a única representação iconográfica do rio Bragança.
Travessia do rio Bragança em 1815. Desenho original de Maximiliano de Wied-Neuwied
O rio Bragança encantou o naturalista alemão, cada vez mais deslumbrado com as paisagens tropicais brasileiras: “Milhares de aves aquáticas, sobretudo garças, biguás, frangas d’água, mergulhões e outras, tinham aí os ninhos; ali aparece, por vezes, o lindo colheireiro cor-de-rosa.”
Sobre os pescadores, Maximiliano escreveu: “Entre os pescadores que conduziram a nossa tropa, destacava-se particularmente um velho de longas barbas e de sabre ao lado. Um homem mais moço, montado num pequeno cavalo, prometeu mostrar-nos o caminho através dos campos alagados. Vestia-se de modo original: usava um gorro de pano, um pequeno jaleco, calções indo apenas até os joelhos e esporas nos pés nus. De muito bom gênio e amável, ia sempre na frente pelos campos inundados até grande altura, para descobrir, não sem perigo, a melhor trilha, a qual, entretanto, era tão fatigante para os animais, que tínhamos toda a razão de temer a perda de parte da bagagem. Contudo, atravessamos sem acidente os alagadiços, debaixo de chuvas copiosas.”
A atenção a essas criaturas tão diferentes das que o príncipe alemão conhecia na Europa é digna de destaque. Ele as aprecia e demonstra gratidão pela atenção que lhe dedicavam. Não há reclamações nem observações preconceituosas da parte dele. Com a orientação do jovem pescador, a expedição chegou à localidade de Santo Amaro, onde já existia a famosa igreja hoje procurada no dia 15 de janeiro, dia de Santo Amaro.
Pescador que conduziu a expedição de Maximiliano do Rio Bragança a Santo Amaro. Desenho original do príncipe
Em 1818, três anos após a passagem do príncipe, o botânico francês Auguste de Saint-Hilaire também passou pelo rio, mas seu registro foi sumário: “No momento de lançar-se no oceano, o rio do Forno reúne-se a outro rio, o Bragança ou Laranjeira, que vem do lado diametralmente oposto. A embocadura dos dois rios reunidos, conhecida sob o nome de Barra do Furado, é muito estreita e pouco profunda, somente dando entrada às embarcações muito pequenas.” Esses rios, na verdade defluentes da lagoa Feia, recebiam vários nomes e formavam uma trama complexa. Muitas vezes um mesmo rio ganhava vário nomes. Portanto, não cabe buscar exatidão nas denominações, sobretudo em se tratando da informação de um estrangeiro. Lembremos que Manoel Martins do Couto Reis passou dois anos elaborando seu mapa sobre a região de Campos e não conseguiu deslindar o aranhol do entorno da lagoa Feia.
H. Mahlmann organizou um mapa intitulado “Province of Rio de Janeiro” a partir de informações colhidas por Freycinet, Taulouis, Spix, Martius, Eschswege, Neuwied, Pohl, Saint-Hilaire, Gardner e Milliet de Saint-Adolphe. Supõe-se que date de 1848. Nele, o rio Bragança aparece com nitidez, confirmando o registro de Couto Reis.
Mapa organizado por Mahlmann com data presumível de 1848
Wied-Neuwied e Saint-Hilaire conheceram um mundo que não existe mais. O sistema hídrico da lagoa Feia era muito complexo até sua simplificação no século XX com obras de canalização e drenagem por várias comissões de saneamento, principalmente pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento.
Obras de referência
- BIBLIOTECA BRASILIANA DA ROBERT BOSCH GmbH. Viagem ao Brasil do Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied. Petrópolis: Kapa Editorial, 2001.
- BRITO, Francisco Saturnino Rodrigues de. Melhoramentos do rio Paraíba e da lagoa Feia. In: Defesa contra inundações. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944.
- COUTO REIS, Manoel Martins do. Manuscritos de Manoel Martins do Couto Reis – 1785: Descrição geográfica, política e cronográfica do Distrito dos Campos Goitacazes. Campos dos Goytacazes: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima; Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 2011.
- MARTIN, Louis; SUGUIO, Kenitiro; DOMINGUEZ, José Maria Landim; e FLEXOR, Jean-Marie. “Geologia do Quaternário Costeiro do Litoral Norte do Rio de Janeiro e do Espírito Santo”. Belo Horizonte: CPRM, 1997.
- SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelo Distrito dos Diamantes e litoral do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia/São Paulo: Edusp, 1974.
- WIED, Maximilian Alexander Philipp Príncipe de. Viagem ao Brasil 1815-1817 (excertos e ilustrações). São Paulo: Melhoramentos, 1969.
- WIED-NEUWIED, Maximiliano de. Viagem ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia/São Paulo: Edusp, 1989.