Os rios e a humanidade

Por Arthur Soffiati

Arthur Soffiati / Divulgação

O ciclo da água é fundamental para a vida. Ar e água, dois elementos vitais na filosofia pré-socrática, estão dando lugar a outros dois: fogo e terra, sendo que terra seca, com vegetação ressequida, com vento, com fogo e fumaça. Esses elementos não são os únicos da natureza e existem antes mesmo da emergência da humanidade, segundo a ciência moderna.

Mas fiquemos com os primórdios da filosofia e destaquemos a água. Ela está no subsolo, nos rios, nos lagos, nos brejos, no mar e na atmosfera. Nas grandes e nas pequenas superfícies de água, a evaporação cria o ciclo hídrico. O vapor se resfria e se transforma em chuva para tudo recomeçar.

Desde os primórdios da humanidade, e até pouco tempo, os ambientes hídricos pareciam indestrutíveis. Nas sociedades paleolíticas, rios e lagoas eram fonte de alimento. Nas sociedades neolíticas, as águas continentais já eram usadas para navegação de pequeno porte. Talvez, elas já abrissem drenos para irrigação e drenagem, além de pequenos barramentos para acumulação de água. A sociedade da ilha de Marajó construía pequenas barragens para reter a água de cheias e criar peixes. Ao advir a estiagem, a água ficava retida. Sabe-se que a água foi de fundamental importância nas primeiras civilizações. Os rios Nilo, Tigre, Eufrates, Indo, Ganges, Amarelo, Mekong e outros foram utilizados pelas civilizações que se ergueram em suas bacias. Nunca, porém, as tecnologias desenvolvidas por elas ultrapassaram a capacidade de suporte dos grandes, médios e pequenos rios.

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Um rio ainda sadio aparentemente

As civilizações fenícia e greco-romana foram mais longe, com a construção de pontes, aquedutos e grandes embarcações marítimas. Mas ainda dentro dos limites dos ecossistemas aquáticos. A relação das sociedades humanas com as águas doce e marinha começou a mudar com a economia de mercado. No princípio, a água doce era usada para irrigação, drenagem, navegação e geração de energia hidráulica. Já se usavam os moinhos movidos a vento e a força das águas. Gilberto Freyre, no livro “Nordeste” (Rio de Janeiro: José Olympio, 1961), mostra como os rios no Brasil eram limpos e desimpedidos ainda no século XIX. As transformações que afetam a quantidade e a qualidade da água doce e salgada começaram no século XX. 

A urbanização e a agropecuária em larga escala sugaram os rios. Quando comparamos os rios Tietê e Pinheiros no início do século XX com o estado que apresentam no século XXI, as mudanças tornam-se notórias. Esses e outros rios foram transformados em lata de lixo. O Tietê e o Pinheiros eram rios aprazíveis procurados pelos habitantes da cidade para lazer. Eram balneáveis e agradáveis à visão. Hoje, foram transformados em vala de esgoto doméstico e industrial. A maioria dos rios do mundo. Não nos iludamos quanto aos rios e lagos europeus e asiáticos. Eles não vão tão bem como pensamos. Todos apresentam problemas, por mais que o tratamento dispensado a eles seja bem melhor que o dispensado aos rios africanos e da América do Sul.

Rio Tietê: dados, características, poluição - Brasil Escola

Aspecto do rio Tietê em São Paulo

Os rios pequenos e os grandes não escapam da destruição. Observemos os pequenos rios que desembocam na baía da Guanabara. Eles foram canalizados, poluídos e muito capeados, como o rio Carioca e o rio Botas, por exemplo.  Os rios do Rio Grande do Sul foram privados de suas matas ciliares, sofreram assoreamento e transbordaram de maneira inédita desde que começaram as medições. Nunca se imaginou que os rios da Amazônia chegassem à situação em que se encontram em 2024. Em 1902, quando começaram as medições, eles formavam a maior bacia hídrica do mundo, permitindo a navegação de transatlânticos em quase toda sua extensão. Hoje, suas lâminas d’água estão atingindo poucos metros e até centímetros.

O que aconteceu com os rios de todo o mundo? Estamos diante de um processo natural ou a intervenção humana está acabando com a água doce nos continentes? O que chamam de fenômenos naturais não são tão naturais assim. As mudanças climáticas estão promovendo a elevação gradual das temperaturas, o que acentua a evaporação. Mas água evaporada não se precipita na forma de chuva? Sim. Essa água, ao voltar aos continentes, cai novamente nas mãos do agronegócio e das megalópoles, cada vez mais sedentos. O desmatamento favorece a erosão, o assoreamento e a reservação de água doce. O ciclo hídrico se acentua. A água passa muito tempo na atmosfera, nos mares, na agropecuária e nas cidades. O ciclo hídrico está desregulado. Chove de forma devastadora ou chove pouco durante muito tempo. Daí as enchentes do Rio Grande do Sul, do Paquistão, da Índia e do Nepal. Daí as longas e severas estiagens do nordeste da África, da Califórnia e da zona central da América do Sul. Não apenas a Amazônia, o Pantanal e o Cerrado enfrentaram incêndios devastadores no inverno de 2024. Outros países da América do Sul também.

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E, diante desse quadro, a ficha não caiu para muita gente. O povo simples continua acreditando que chuvas torrenciais e secas intensas expressam a vontade de Deus. Empresários estão pensando mais nos seus negócios de forma individualista e imediatista. Não vem ao caso a crise ambiental global. Eles aproveitam as oportunidades de ganhar mais dinheiro, aprofundando a crise. Sei que é difícil – quase impossível – parar de imediato, mas é preciso, pelo menos, reduzir. Os rios chegaram a seu limite, pois a natureza tem limites em fornecer matéria e energia indefinidamente e em absorver dejetos do processo produtivo. Os governos não podem mais autorizar a construção de barragens para acumular água e para gerar energia. Nem grandes nem pequenas. Os empresários deveriam considerar que os rios não são mais confiáveis. Eles não apresentam mais regularidade em seu regime. É arriscado investir em represas para geração de energia elétrica. As transposições também estão ultrapassadas. 

Por outro lado, é preciso restaurar os ecossistemas hídricos, promovendo a proteção de áreas de recarga, de nascentes e margens com vegetação pertinente. Não se trata de restabelecer a vegetação nativa em toda a sua extensão, mas de proteger os pontos críticos. A economia de mercado precisa compreender que ela também depende da natureza. Os rios precisam ser restaurados em sua saúde. Daí o lento trabalho de despoluição. 

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Rio Itabapoana em Bom Jesus do Itabapoana, julho de 2024

Tomemos dois casos na região norte-fluminense: os rios Itabapoana e Macaé. O primeiro tem 250 km de extensão e corre em zona serrana baixa. O segundo nasce no alto da Serra do Mar e percorre 136 quilômetros até desembocar no mar. Ambos perderam grandes áreas alagadas com a drenagem promovida pelo governo federal. Assim, desapareceram ou foram reduzidos grandes banhados, como a lagoa Feia do Itabapoana e o Brejo da Severina. Ambos sofreram desmatamento severo em suas bacias. Ambos perderam biodiversidade animal. A bacia do Itabapoana tem hoje sete hidrelétricas, quase todas PCHs. Indiscutivelmente, ela perdeu vazão. 

Rio Macaé – Foto de Eco Resort - Hotel Villa São Romão, Lumiar - Tripadvisor

Parte alta do rio Macaé

O Macaé, por sua vez, não tem capacidade para abastecer a cidade que lhe dá o nome, Rio das Ostras e Petrobras. E há vários empreendimentos querendo se instalar na cidade contando com o rio Macaé. Agora, pretende-se instalar uma PCH em seu curso principal. O rio chegou a seu limite de atender aventuras humanas. Ele não dá mais conta. Os órgãos governamentais que autorizam esses empreendimentos não deveriam aprová-los em nome dos interesses humanos coletivos, da própria economia e da biodiversidade.