O ano mais quente desde 1850

Por Arthur Soffiati

Áreas que mais se aqueceram em 2023 segundo a NASA

A imprensa comum e as redes sociais mais desinformam do que informam sobre a crise ambiental da atualidade. Muita informação acaba gerando confusão. Falar que 2023 foi o ano mais quente da história é vago, pois não se esclarece de que história se fala. História do Universo, história da Terra, história da vida ou história da humanidade? Há divergências sobre a história da humanidade. Ela teria começado com a fabricação das primeiras ferramentas, há cerca de um milhão de anos ou com a origem da primeira civilização, cerca de 5.200 antes do presente?

Anos mais quentes que 2023 já foram registrados na história da Terra. O que se deve distinguir com clareza é o autor desse aquecimento. Com origens naturais, foram registrados vários momentos mais quentes que o atual. Por força das atividades humanas, 2023 foi, de fato, o ano mais quente até agora registrado. E esse aquecimento não é natural. Ele deve ser contextualizado no âmbito da economia de mercado, que começou a se expandir para o mundo no século XV. Sua origem situa-se na Europa do século XI.

Anda muito em voga o conceito de Antropoceno, indicando uma época geológica que sucede o Holoceno. Jason W. Moore entende o Antropoceno significando que o ser humano geral e descontextualizado de uma economia ou situado em qualquer uma é naturalmente destruidor do ambiente natural (“O surgimento da Natureza Barata”. In: MOORE, J. W. “Antropoceno ou Capitaloceno”. São Paulo: Elefante, 2022).

A palavra Antropoceno indica homem, humano (anthropo) e novo (ceno). Capitaloceno significaria capitalismo+novo. Os adeptos do Antropoceno costumam situar sua origem na Revolução Industrial, que se originou na Inglaterra no final do século XVIII. Acentuam, sobretudo, o emprego de combustíveis fósseis, como o carvão mineral, o petróleo e o gás natural como responsáveis pelas emissões de CO2. Os adeptos do Capitaloceno recuam aos séculos XV e XVI, quando o modo de produção capitalista iniciou sua expansão mundial por meio das grandes navegações de países europeus. Eles mostram o impacto causado às estruturas climáticas com grandes áreas desmatadas na Europa e na América, além de sustentarem que a Revolução Industrial só foi possível com o capital acumulado entre os séculos XV e XVIII.

Antropoceno ou capitaloceno, os conceitos ainda não contam com bases sólidas. Eles são formados a partir de terminologia das ciências geológicas, e a Comissão Internacional de Estratigrafia da União Internacional de Ciências Geológicas ainda não aceitou o advento de uma nova época. Isabelle Stangers mostra que vivemos numa época de integração das ciências. Os conceitos não são mais propriedades exclusivas de ciências fechadas. Eles se tornaram nômades. Circulam de uma ciência a outra e são recontextualizados (“D’une science à l’autre: des concepts nômades”. Paris: Du Seuil, 1987). 

Contudo, sou reticente quanto ao emprego de Antropoceno e de Capitaloceno pelas ciências sociais. Trata-se de conceitos com radicais muito arraigados à geologia para serem usados sem a aquiescência dela. Sabemos que estamos no meio de uma crise ambiental de magnitude incomparável na história da humanidade (que, para mim, começa com a fabricação das primeiras ferramentas pelos hominídeos há um milhão de anos). Algumas crises foram registradas pelos historiadores na civilização índica (Paquistão), na civilização khmeriana (Camboja), na civilização maia e na civilização da ilha de Páscoa.

A crise atual é planetária. Não se trata mais de se restringir às questões econômicas, sociais e políticas. A humanidade foi unificada por uma economia que ultrapassa a capacidade da natureza de se regenerar, a sua resiliência. Os dois atores da crise são, portanto, Humanidade e Natureza. Os cientistas sociais ainda estão muito restritos às ciências sociais, enquanto os cientistas naturais estão muito apegados à natureza. Discutimos muito ainda a luta de classes e a ciclagem de nutrientes. Falamos muito de uma nova ciência, mas sempre nos refugiamos na nossa.

A Nasa divulgou um mapa destacando as áreas mais quentes do planeta em 2023. Foi, de fato, o ano mais quente desde 1850. Nos jornais de TV, as moças do tempo mostram que o lugar mais quente do Brasil foi o vale do Jequitinhonha. Parece que o mundo acaba nas fronteiras do país. Assim, ficamos sem referências. Notamos pelo mapa que as áreas da Terra que mais se aqueceram (não necessariamente as mais quentes) são o Canadá, o círculo polar ártico, toda a Ásia e Europa, o norte da África, o círculo polar antártico e parte da América do Sul. Ou seja, regiões acima e abaixo dos trópicos vêm sofrendo a maior variação de temperatura para cima. E o quadro tende a se agravar em 2024, com El Niño e La Niña ou sem eles.