Não aqui. Não assim

Por Arthur Soffiati

Não é preciso chover torrencialmente durante quarenta dias, como aconteceu no dilúvio bíblico, para os rios transbordarem, para haver alagamento de ruas, para ocorrer deslizamento de encostas e para o registro deperdas materiais e de vidas. Bastam algumas horas durante um dia. Já houve um teste em 2025 com as primeiras chuvas de verão, no Brasil, e com excesso de neve e de fogo nos Estados Unidos. Seria ocioso continuar a lista pelo mundo. E o Serviço de Mudanças Climáticas Copernicus informa que o futuro chegou mais cedo: além de ser o mais quente ano desde 1850, 2024 superou a temperatura limite definida até 2050 pelo acordo de Paris. O 1,5º acordado como máximo permitido, e que deveria reduzir-se a partir de 2050, foi atingido 25 anos antes. E suspeita-se de que não se trata de um fenômeno isolado, pois as temperaturas vêm se superando ano a ano desde a década de 1970. Novos estudos mostram que as temperaturas atuais estão ultrapassando as do último período interglacial, há 125 mil anos. A Terra está febril e febre é sinal de doença.

​Com relação ao Brasil, li a entrevista de uma meteorologista acerca das intensas chuvas sobre a Região Sudeste em janeiro de 2025. Ela explica que derivam da Zona de Convergência do Atlântico Sul (ZCAS), sem qualquer menção às mudanças climáticas. Aliás, permanece nos institutos de pesquisa climatológica o hábito de separar mudanças climáticas de El Niño e de La Niña. Na América do Sul, tanto a Zona de Convergência Intertropical (ZCIT) quanto a Zona de Convergência do Atlântico Sul são fenômenos climáticos comuns nos últimos 10 mil anos. A primeira absorve água do oceano Atlântico e a transporta, na forma de vapor, para a Amazônia, onde se transforma em líquido. A densa floresta do norte da América do Sul é, em grande parte, fruto desse fenômeno. Já a Zona de Convergência do Atlântico Sul é formada por evaporação de água da floresta amazônica e transportada por ventos para as regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul, onde se precipita na forma de água líquida. Graças a esse corredor de umidade, não há, no Sudeste, um deserto como o de Atacama, de Kalahari e da Austrália. A cordilheira dos Andes barra as nuvens formadas na Amazônia e as empurra para oeste.Em grande parte, a quase extinta Mata Atlântica se beneficiou dessa umidade.

​Se não temos um deserto no Sudeste graças aos rios voadores, as atividades humanas, dentro da economia de mercado, estão produzindo um. Pelo menos, está desregulando o clima. Basta tomar como exemplo a grande seca que atingiu o Pantanal, o Cerrado e o interior do Sudeste em 2024: umidade relativa do ar muito baixa, solo e vegetação secos, ondas de calor e incêndios em grandes áreas. Agora, chegam as chuvas. Mas não como queremos. Mas é a vontade de Deus, diz o conformismo popular.


Incêndio descontrolado na Califórnia

Os rios logo ganham volume. Os menores logo transbordam. Encostas logo deslizam. Cidades logo enfrentam alagamentos e transbordamentos. Muitos casos ilustram quão despreparadas estão as cidades para os novos tempos. Para o novo clima. Será um novo normal? Ou um anormal em relação ao clima do Holoceno? Trata-se de emergência climática? O que significa esta expressão? Se considerarmos que as mudanças climáticas estão emergindo lentamente de forma perceptível desde a década de 1970, sim, trata-se de uma emergência. Apalavra está sendo usado no sentido de urgência? Neste caso, é também verdade. É preciso chamar uma ambulância para o clima. Porém, ela está com os pneus furados. Não pode sair do hospital. Então, enviam os enfermeiros a pé. A maca está rasgada. O paciente chega ao hospital pior do que quando foi socorrido. Será mais difícil recuperar sua saúde. 

 Na cama do hospital, o doente está entre a vida e a morte. Os médicos podem fazer alguma previsão? Todosconcordam que ele está medicado e que o possível foi feito(embora não seja verdade). Mas ele está num momento de fibrilação. A arritmia do seu coração pode se acentuar e levá-lo à morte. Pode também ser superada pelo próprio organismo. Dependerá de seu histórico de saúde. Se a crise for superada, o tratamento deve continuar. Ele ainda não é idoso, embora não seja jovem. E o pior é que fumou muito, foi alcoólatra, alimentou-se mal, não fazia exercícios. Enfim, ele castigou o corpo assim como estamos castigando a Terra nos últimos 500 anos. A diferença é que o paciente morrerá um dia. A Terra deve sobreviver conosco ou sem nós. O futuro pode ser melhor ou pior para nós e para a vida.

Alguns casos ilustram nossa lentidão quanto a mudanças necessárias. Na rota da Zona de Convergência do Atlântico Sul, fica o estado de Minas Gerais. O Espírito Santo, com seu território estreito e comprido ao longo da costa, sofre surras frequentes de chuvas volumosas. As bacias hídricas recebem muita água e transbordam atingindo cidades em suas margens. Principalmente a população mais pobre. Sinal de que nada mudou. Os governos e os habitantes reconstroem o que foi destruído como era antes. A destruição não é usada como ensinamento para que se comece a construir uma nova cidade. Mais uma vez, o nome de Deus é invocado. A defesa civil entra em ação para retirar os atingidos temporariamente. A caridade pública é exercida como se ela fosse suficiente. 

Alguns casos ilustram nossa lentidão quanto a mudanças necessárias. Na rota da Zona de Convergência do Atlântico Sul, fica o estado de Minas Gerais. O Espírito Santo, com seu território estreito e comprido ao longo da costa, sofre surras frequentes de chuvas volumosas. As bacias hídricas recebem muita água e transbordam atingindo cidades em suas margens. Principalmente a população mais pobre. Sinal de que nada mudou. Os governos e os habitantes reconstroem o que foi destruído como era antes. A destruição não é usada como ensinamento para que se comece a construir uma nova cidade. Mais uma vez, o nome de Deus é invocado. A defesa civil entra em ação para retirar os atingidos temporariamente. A caridade pública é exercida como se ela fosse suficiente. 


Alagamento de vale no Espírito Santo sob os olhares do Frade e da Freira

Pode-se estender essa situação para os estados do Rio de Janeiro e de São Paulo. Mas consideremos outros lugares do mundo com territórios problemáticos para concluir que não só os pobres de países pobres estão sendo alcançados pelas mudanças climáticas. Voltemos os olhos para a Califórnia nos Estados Unidos. O território dela é propício a incêndios. E o mais grave deles foi registrado em janeiro de 2025. Cidades e mansões glamorosas ardem em chamas. A Terra está dizendo: aqui não. Assim não.