Modelo atual de produção de alimentos esgota a Terra e mantém desigualdade

Relatório mostra que sistemas alimentares acabam com recursos naturais e aumentam emissões de gases do efeito estufa sem garantir comida para toda a população

“Ao unir a ciência mais recente sobre saúde e clima, relatório mostra que o que colocamos em nossos pratos pode salvar milhões de vidas” – Johan Rockström – Foto: Pixabay

Por Redação do Jornal USP

Acaba de ser publicada pela revista científica The Lancet uma avaliação científica que traz dados preocupantes sobre os sistemas alimentares do mundo. Entre outros pontos, o Relatório sobre Sistemas Alimentares Saudáveis, Sustentáveis e Justos mostra que:

  • A forma como produzimos e consumimos alimentos é a principal força por trás da violação de cinco das nove fronteiras planetárias essenciais para a estabilidade da Terra.
  • O modelo atual de produção de alimentos viola fronteiras essenciais para a estabilidade da Terra, além de ser responsável por 30% das emissões de gases do efeito estufa;
  • Os 30% mais ricos do mundo causam mais dos 70% dos danos ambientais relacionados à comida;
  • Menos de 1% da população global vive em condição considerada “segura e justa”, com necessidades nutricionais e direitos garantidos sem esgotar o planeta; e
  • Uma reavaliação global de nossos hábitos alimentares poderia evitar até 15 milhões de mortes prematuras por ano.

O documento também apresenta um plano de ação para mudar esse quadro, com a adoção da Dieta da Saúde Planetária, focada no aumento do consumo de frutas, verduras, nozes, legumes e grãos integrais,  evitando mortes, e uma transformação nos sistemas alimentares que  poderia cortar as emissões do setor em 50%.

A produção do relatório foi feita pela Comissão EAT-Lancet, um grupo internacional que reúne pesquisadores de mais de 35 países dos seis continentes, das áreas de nutrição, clima, economia, saúde, ciências sociais e agricultura, vindos de mais de 35 países dos seis continentes. O estudo teve a colaboração de pesquisadores do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da USP. Carlos Monteiro, pesquisador fundador do núcleo, é um dos autores do trabalho, e Leandro Cacau, pesquisador de pós-doutorado, é um dos autores citados.

“O relatório apresenta a orientação mais clara até agora para alimentar uma população crescente sem violar o espaço operacional seguro na Terra estabelecido pelos limites planetários. Ele também expõe os grandes vencedores e perdedores nos sistemas alimentares de hoje, onde dinâmicas de poder arraigadas geram profundas iniquidades. Ao unir a ciência mais recente sobre saúde e clima, ele mostra que o que colocamos em nossos pratos pode salvar milhões de vidas, cortar bilhões de toneladas de emissões, deter a perda de biodiversidade e criar um sistema alimentar mais justo”, declara Johan Rockström, copresidente da Comissão EAT-Lancet e diretor do Instituto de Pesquisa de Impacto Climático de Potsdam (Alemanha). 

“Agora temos diretrizes globais robustas para os sistemas alimentares e um ponto de referência sobre o qual formuladores de políticas, empresas e cidadãos podem agir em conjunto. A evidência é inegável: transformar os sistemas alimentares não é apenas possível, é essencial para garantir um futuro seguro, justo e sustentável para todos.”

Segundo Leandro Cacau, a Comissão reconheceu o papel deletério do processamento de alimentos e recomenda, enfaticamente, que os alimentos componentes da Dieta de Saúde Planetária sejam, em sua grande maioria, alimentos integrais, in natura e/ou minimamente processados. “Esse reconhecimento é uma resposta frente às críticas que a Comissão sofreu por parte da comunidade científica por não considerar o processamento de alimentos na versão de 2019, considerando o grande impacto já documentado dos alimentos ultraprocessados na saúde humana e planetária.”

Johan Rockström - Foto: Frankie Fouganthin/Wikipédia

Johan Rockström – Foto: Frankie Fouganthin/Wikipédia

Para fundamentar suas conclusões, a comissão mobilizou uma força-tarefa de 13 grupos independentes de modelagem. A missão deles foi avaliar como as mudanças no sistema alimentar poderiam impactar cinco dos limites planetários mais críticos: o clima, o uso do solo, a água doce, a poluição por nutrientes (como nitrogênio e fósforo) e a contaminação por novas substâncias químicas (como pesticidas, antimicrobianos e microplásticos). O resultado desse trabalho detalha o imenso potencial que temos em mãos. Ao adotarmos dietas mais saudáveis, reduzirmos o desperdício de alimentos e melhorarmos nossas técnicas de produção é possível não só promover a saúde da população, mas também aliviar a pressão sobre o meio ambiente. A análise combina uma grande variedade de dados, desde padrões alimentares até indicadores de saúde, criando um mapa global que define como podemos operar nossos sistemas alimentares de maneira segura e justa para todos.

Ao analisar os hábitos alimentares ao redor do mundo, o estudo encontrou um problema em comum em todas as regiões: as pessoas não estão comendo frutas, verduras, nozes, legumes e grãos integrais na quantidade que deveriam. Ao mesmo tempo, em muitos lugares, a dieta é marcada pelo excesso de carne, laticínios, gorduras de origem animal, açúcar e alimentos ultraprocessados.

Com base nesses e em outros dados, a Comissão de 2025 reforçou os benefícios de um modelo alimentar conhecido como Dieta da Saúde Planetária (DSP). Esse plano alimentar oferece recomendações para uma dieta saudável que seja nutricionalmente completa, promova o máximo de bem-estar e, crucialmente, possa ser adaptada às diferentes realidades culturais do mundo. O foco principal é uma alimentação rica em vegetais, complementada por quantidades opcionais e moderadas de alimentos de origem animal, e com baixo consumo de açúcar adicionado, gorduras saturadas e sal. As evidências também são fortes ao indicar que, se as pessoas adotassem um padrão alimentar semelhante ao da Dieta da Saúde Planetária o impacto ambiental da nossa alimentação seria drasticamente reduzido.

“A Dieta de Saúde Planetária pode ser vista como um modelo dentro do qual dietas diversas e culturalmente
apropriadas podem existir”, afirma Leandro Cacau ao Jornal da USP. “A adesão a DSP requer uma consideração cuidadosa dos contextos culturais e a promoção de tradições alimentares culturalmente apropriadas e
sustentáveis.”

Ele ressalta que, pela primeira vez, a Comissão reconheceu o papel deletério do processamento de alimentos e
recomenda, enfaticamente, que os alimentos componentes da dieta sejam, em sua grande
maioria, alimentos integrais, in natura e/ou minimamente processados. “Esse reconhecimento é uma resposta frente às críticas que a Comissão sofreu por parte da comunidade científica por não considerar o processamento de alimentos na versão de 2019, frente ao grande impacto já documentado dos alimentos ultraprocessados na saúde
humana e planetária”, esclarece.

Espaço seguro e justo

O estudo reforça que ajustar as dietas em escala mundial tem o poder de salvar cerca de 15 milhões de vidas anualmente. Além disso, a pesquisa aponta que, com uma ação coordenada e global para transformar nossos sistemas alimentares, é possível reverter os danos e operar novamente dentro das fronteiras seguras do planeta. Essa mudança também permitiria uma redução drástica nas emissões anuais de gases de efeito estufa do setor, diminuindo-as em mais da metade em comparação com a manutenção do modelo atual. O relatório destaca que a justiça social é um pilar fundamental para melhorar a saúde e o desenvolvimento da sociedade. A realidade atual é alarmante: menos de 1% da população mundial vive no que os cientistas chamam de “espaço seguro e justo” uma condição onde os direitos humanos e as necessidades alimentares são plenamente atendidos sem comprometer a saúde do planeta.

A desigualdade é um traço marcante do sistema: o documento aponta que quase um terço (32%) dos trabalhadores do setor alimentício não recebe um salário que garanta uma vida digna. Ao mesmo tempo, a parcela mais rica da população (30%) é responsável por mais de 70% dos danos ambientais causados pela produção e consumo de alimentos. Esse cenário coexiste com uma contradição gritante: embora o mundo produza calorias suficientes para todos, mais de 1 bilhão de pessoas ainda passam fome.

Apoiado nas mais recentes evidências científicas e em projeções de alta tecnologia, este novo relatório funciona como um mapa para o futuro, definindo as diretrizes de como podemos alimentar uma população global de 9,6 bilhões de pessoas de maneira nutritiva e igualitária até 2050, tudo isso sem esgotar os recursos do nosso planeta. O estudo deixa claro que alterar a cadeia produtiva e nossos pratos de comida desencadeia uma onda de benefícios.

Essas mudanças são capazes de melhorar a saúde em escala global, garantir comida de qualidade para todos (a chamada segurança alimentar e nutricional), promover mais estabilidade social e econômica, e ainda servir como uma estratégia fundamental para tornar o setor alimentício mais justo e com melhores condições de trabalho para todos os envolvidos. Para que o sistema alimentar seja sustentável de verdade, tanto para as pessoas quanto para o planeta, a regra precisa ser clara: recursos, benefícios e também os custos devem ser distribuídos de forma muito mais justa. Isso significa garantir as bases sociais que dão às pessoas o direito à alimentação, a um trabalho digno e a um ambiente saudável. A comissão defende que qualquer transformação real e eficaz precisa levar em conta tanto as necessidades das pessoas quanto os limites do planeta, pois só assim construiremos um futuro seguro e justo para todos.

Com base em sua análise aprofundada, a comissão apresenta um plano de ação com oito soluções práticas para um futuro mais saudável, ecológico e justo. Entre elas estão:

  • Valorizar e incentivar as dietas tradicionais e saudáveis de cada povo;
  • Tornar alimentos saudáveis mais acessíveis e baratos, criando ambientes que estimulem uma maior procura por eles;
  • Adotar práticas de produção que sejam sustentáveis, capazes de capturar carbono da atmosfera, recuperar hábitats naturais e melhorar tanto a qualidade quanto a disponibilidade de água;
  • Frear completamente o avanço da agricultura sobre ecossistemas que ainda estão intactos;
  • Combater o desperdício e a perda de alimentos em todas as etapas, da fazenda à mesa;
  • Garantir condições de trabalho dignas para todos os profissionais que atuam na cadeia alimentar;
  • Dar voz e poder real de decisão aos trabalhadores do sistema alimentar, assegurando que sejam ouvidos, e
  • Reconhecer e proteger ativamente os direitos dos grupos mais vulneráveis.

Para cada uma dessas soluções, o relatório oferece um verdadeiro “cardápio” de ações práticas, incluindo medidas como a valorização de alimentos tradicionais e saudáveis nas políticas nutricionais dos países, o fomento a sistemas de sementes locais, o reaproveitamento de alimentos que seriam descartados e o aprimoramento de práticas agroecológicas que ajudam a preservar os ecossistemas.

O documento também faz um chamado direto por mudanças econômicas, como a reforma de subsídios para que alimentos saudáveis e nutritivos se tornem mais baratos e acessíveis a todos, além da criação de leis e mecanismos de fiscalização que garantam trabalho digno e representação real para os trabalhadores do setor. Contudo, essa transformação só será verdadeiramente justa se for construída de forma colaborativa. Isso exige a formação de alianças com todos os setores envolvidos, a definição de ações prioritárias, a criação de planos de ação em nível nacional e regional, a captação de recursos financeiros e, finalmente, a execução desses planos em conjunto, para que governos, empresas e a sociedade civil possam finalmente trabalhar unidos em prol de um avanço real.

*Com informações do Nupens
**Estagiário sob orientação de Moisés Dorado