Enfrentei grande resistência para convencer professores doutores da banca que me examinou para cursar doutorado em história. Minha proposta era estudar a relação das sociedades humanas com os manguezais numa economia de mercado. Com qualquer ecossistema, as dificuldades seriam as mesmas por conta da abordagem que eu queria adotar: estudar as relações de sociedades humanas no modo de produção capitalista com manguezais no norte do estado do Rio de Janeiro, considerando que o mangue não é objeto passivo, mas também agente de história. Era muito atrevimento da minha parte colocar a natureza ou parte dela como personagem e não palco. Como protagonista e não como coadjuvante.
Um membro da banca me explicou: “Se você se propõe a estudar a natureza a partir dos documentos que o Homem produziu sobre ela, ainda vai. História se faz com documentos. Estudar as enchentes a partir dos comentário publicados em jornais ou em charges é algo que cabe. Mas quais são os seus documentos?” Minha resposta: “Todos esses que o senhor mencionou mais o próprio ambiente. Examinarei rios e mar, plantas e animais e buscarei ler neles o que dizem.” Resposta: “Seu lugar não é aqui. Procure um curso de biologia.” Contra-argumento: “Não sou biólogo, e eles também já me disseram que aquilo que pretendo estudar não é biologia”. Fui aprovado pelas pontas e passei quatro anos sendo motivo de chacota.
Escrevo essa introdução para analisar o que aconteceu recentemente (09/08/2021) na lagoa Doce, na Enseada do Retiro, em São Francisco de Itabapoana. Ela e sua coirmã lagoa Salgada foram palco da primeira tentativa de colonização europeia entre os rios Itapemirim e Macaé. Por volta de 1539, Pero de Góis ergueu a vila da Rainha e dois engenhos no litoral entre o rio Itabapoana e a lagoa Salgada. Depois, subiu o rio Itabapoana até a última cachoeira, em Limeira, onde construiu um porto e mais um engenho. Se eu me propusesse a estudar essa iniciativa no doutorado em história, não haveria problema. Contudo, estudar as relações de humanos inseridos numa economia de mercado com essas lagoas seria bastante problemático.
Quando o Sertão de Cacimbas, depois Sertão de São João da Barra e agora São Francisco de Itabapoana foi escolhido para a construção da sede da Capitania de São Tomé por Pero de Gois, todo o território era drenado por córregos cercados por vastas florestas. Os córregos que desembocavam no mar contavam em sua foz com grandes ou pequenos manguezais, dependendo de suas dimensões. As lagoas Salgada e Doce eram então córregos que chegavam ao mar. O volume hídrico devia ser maior que o atual, mantendo a foz sempre ou periodicamente aberta. Formava-se então um pequeno estuário com a mistura de água doce e salgada, ambiente propicio para o enraizamento de plantas de manguezal, que vêm navegando pelo mar. Bem perto, havia e há uma fonte de sementes (propágulos): o rio Itabapoana.
Quando conheci as lagoas Doce e Salgada, em fins da década de 1990, concluí que, pelo menos a lagoa Doce, a menor das duas, mantivera contato com o mar até pouco tempo. Documento probatório: plantas de mangue vermelho (Rhizophora mangle) nas imediações do que teria sido a sua foz. Mas tais plantas poderiam ter nascido a partir de sementes (propágulos) lançados ali por alguém. Hipótese descartada. Plante sementes de qualquer espécie de mangue no seu quintal. Por falta de condições adequadas, elas não germinarão. Se germinarem, não prosperarão.
Poderia, então, ter havido um contato da lagoa com o mar interrompido pela própria natureza. Levei em consideração essa hipótese. Porém marcas muito evidentes de ações humanas na praia, como escavações e formação de dunas artificiais, levaram-me a concluir que a foz de ambas as lagoas foi aterrada por ação humana. De fato, surpreendi as Indústrias Nucleares do Brasil revolvendo areia da praia de cortando falésias em busca de terras raras. Relacionamento de grupos humanos com a natureza. Especificamente, da economia de mercado com praias, falésias, lagoas e mangues. O documento não estava num pedaço de papel, mas na própria paisagem. O documento não estava em arquivos tradicionais e sim na própria natureza. Eu precisava sair de gabinetes e cidades para consultá-lo e aprender a lê-lo .
As pequenas plantas de mangue na lagoa Doce sucumbiram por falta de condições adequadas. Em tempos de enchentes, a lagoa Salgada ganhava superfície, mas não conseguia romper os obstáculos. Sua caixa é grande e pode absorver água excedente sem transbordamento. Já a lagoa Doce é menor. Com as enchentes, ela transborda e busca caminhos. Não podendo mais chegar ao mar por sua antiga foz, ela abriu um canal lateral que conseguiu atingir o oceano. Ele contorna os obstáculos deixados por ação humana e forma nova foz que alcança o mar ou que é alcançada pelas marés extraordinárias.
Trata-se de uma foz intermitente. Ora é a água doce que flui até o mar, ora são as marés que chegam até ela. O estuário também é intermitente. Mas as plantas de manguezal são oportunistas. Algumas sementes devem ter chegado ao local transportadas por correntes e marés. Ali se fixaram e estão prosperando. Só encontrei propágulos de mangue vermelho.
Dirão os historiadores que a natureza abriu esse canal. Que o mar transportou naturalmente os propágulos. Que eles encontraram condições naturais para se enraizar. Trata-se de um natural indireto. As águas buscam outro caminho porque o caminho natural, agora barrado por ação humana, não permite que a foz funcione naturalmente. De certa forma, a lagoa foi induzida a buscar outro caminho. Espero agora voltar à lagoa Doce em cinco anos, se ainda estiver vivo, e encontrar exemplares de mangue já adultos, como aconteceu na vala que sangra o ribeirão Tatagiba.