Moro no sexto andar de um edifício em Campos. Da janela, uma ampla paisagem se descortina, apesar dos prédios construídos. Um deles foi abandonado por conta da pandemia causada pela Covid-19. Comentava-se que ele seria um hotel cinco estrelas para hospedar executivos atraídos pelo Porto do Açu.
Há muito tempo, para mim, a paisagem não é palco ou cenário. Ela deixou de ser coadjuvante para a ser protagonista. A paisagem é, no meu entendimento, personagem de história, interagindo com as pessoas, e, ao mesmo tempo, um documento a que recorro para estudo. Grande parte dos cientistas sociais ainda vive encerrado em arquivos, buscando documentos escritos, mapas, desenhos, pinturas, esculturas, fotografias e películas cinematográficas. Além desses documentos, que me falam de realidades já desaparecidas, saio de gabinetes e estudo as paisagens, procurando informações. Para tanto, não uso mais apenas o sentido da visão, mas também a audição, o olfato, o paladar e o tato. Ao usar todos os sentidos, rompo com o paradigma cartesiano, que considera apenas a visão e a audição como sentidos nobres a permitirem formular o conhecimento. Uso esses dois sentidos e os outros três, considerados até pouco tempo como plebeus.
Da janela, descortina-se o grande documento. Ele poderia ser mais amplo numa visão de 360°. Mas, devo contentar-me com os quase 180° a minha frente. A maioria dos meus vizinhos, se não todos, olha mas não vê. Eu gostaria também de vê-lo no seu aspecto nativo, na sua origem. Mas, neste caso, não haveria o prédio de onde o contemplo. Nem eu, descendente de europeu, existiria. Talvez existisse se eu fosse goitacá ou um dos pioneiros da colonização. Neste caso, eu não teria conhecimento suficiente para analisar a paisagem como documento. Mas poderia senti-la, sobretudo na condição de goitacá.
Daqui do alto, vejo paralelepípedo e asfalto recobrindo o solo de massapê constituído pelo rio Paraíba do Sul, no seu grande trabalho de aterrar uma grande e rasa laguna que existiu até cerca de dois mil anos passados. Havia muitas áreas encharcadas no terreno em que se ergueu Campos. O edifício em que moro ergue-se sobre o fundo da lagoa rasa de João Maria. Até hoje, quando chove forte, em menos de uma hora, a água se acumula nas ruas em torno do edifício. Já presenciei pessoas atravessarem a rua de caiaque. Existe um piscinão, mas ele está entupido e para nada serve. A drenagem urbana de Campos é sofrível.
Não havia originalmente sobre esse terreno argiloso uma grande floresta, como se imagina. A umidade excessiva não permitia o crescimento de árvores, como em Guarus, por exemplo. Desenvolvia-se nele uma vegetação arbustiva, adaptada a terrenos úmidos. A caixeta era uma das poucas árvores a suportar essa umidade. Hoje, vejo árvores nativas do Brasil, como ipês e algumas palmeiras. Mas as árvores dominantes são exóticas, como a mangueira, a amendoeira, o coqueiro-da-Bahia. A composição vegetal foi drasticamente alterada. Contudo, as pessoas olham, mas não veem. Elas não sabem distinguir espécies vegetais nativas das exóticas.
Quando os europeus começaram a colonização contínua da planície, em 1632, onde hoje é a cidade de Campos havia muitas lagoas. Dentro delas, era comum a existência da Anodonta perlifera, uma concha que produz pérola de qualidade inferior para o mercado. Ela não se incomodava com a inferioridade de seu produto. Havia também grande diversidade de peixes. Eles foram diminuindo e sendo alterados. Foram introduzidos a tilápia e o bagre-africano. Havia anfíbios, cobras, jacarés e tartarugas. As aves voavam em profusão. Não apenas as nativas, mas também as migratórias. O local em que se ergueria Campos era um vasto banhado que servia de pouso, alimentação e reprodução de aves. Grande era a diversidade de mamíferos. Onças, jaguatiricas, maracajás, macacos, veados, tamanduás, capivaras, pacas, cotias, lontras, tatus, gambás e muitos outros animais. Os indígenas se alimentavam deles, mas não ameaçavam as espécies de extinção, pois sua economia era de subsistência e não de mercado. O capitão cartógrafo Manoel Martins do Couto Reis listou várias dessas espécies, mas ainda ficou nos devendo uma relação maior. A biodiversidade regional se empobreceu, embora ainda possamos encontrar na natureza algumas das espécies nativas. Mas é raro.
Foram-se também os povos nativos, notadamente o goitacá e o puri. Eles não partiram para outro lugar, mas acabaram em outra terra. Embaixo dela. Deles, pouco restou. Primeiro, foram aculturados. Depois, mestiçaram-se com europeus. Muitos foram eliminados por doenças e armas de fogo. Do goitacá, não restou nada de sua língua. Do puri, ainda houve algum registro. Pelo visto, era uma língua difícil. Ela não serviu para batizar lugares, como o tupi.
De vez em quando, faço viagens ao passado contemplando a paisagem que diviso da minha janela.