Nas últimas semanas, um assunto tem chamado atenção nas redes sociais (especialmente no TikTok): o tal “iPad da Shopee”. São tablets originais, vendidos a preços baixíssimos em sites de compra da China. A oferta atrai quem sempre quis um produto da Apple, mas não pode desembolsar os valores exorbitantes que rodeiam a marca. Sem perceber, no entanto, brasileiros estão entrando numa fria e virando receptores de lixo eletrônico internacional.
Quem nunca quis comprar aquele celular “do momento” e não pôde, justamente pelo valor alto? É com essa tentação que os vendedores conseguem despachar milhares de dispositivos móveis para o Brasil, país onde muitos compradores se sentirão atraídos pelos preços baixos. Mas isso acaba sendo apenas mais uma forma de descarte.
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Muitos desses dispositivos possuem pouca ou nenhuma utilidade, uma vez que seus sistemas operacionais são mais antigos e não permitem o uso de aplicativos atualizados ou, até mesmo, acesso à internet. Esses celulares e tablets, que estavam guardados em estoques há anos, agora ganham um novo destino: Brasil.
O iPad da Shopee é original?
Para entender melhor o assunto, o tal ‘iPad da Shopee’ nada mais é do que um iPad original, porém usado e muito antigo. Os mais populares em venda são o iPad Mini 1 (lançado em 2012) e o Mini 2 (2013), ofertados em torno de R$ 200. Com a taxa do Remessa Conforme, o valor final do produto pode chegar a R$ 300 ou R$ 400.
Até o momento da publicação desta reportagem, o anúncio mais popular era de um iPad Mini 1, com 3,1 mil unidades vendidas para os consumidores brasileiros. Outros anúncios semelhantes já conseguiram esgotar o estoque dos vendedores.
Problemas do iPad de R$ 200
Apesar do preço atraente dos iPads, quem compra, pode perceber defeitos no produto (justamente por ser usado). Nas redes sociais, alguns compradores já declararam arranhões nos produtos e problemas na bateria. Além disso, também há quem reclame do produto não vir embalado da forma correta ou sem carregador original.
Outro problema — e talvez o principal deles — seria a respeito do software do aparelho. Por ser mais antigo, o sistema operacional iOS já não recebe mais atualizações, impossibilitando o acesso a diversos aplicativos. Alguns internautas já falaram sobre a necessidade de ter um iPhone atual para poder baixar os aplicativos no ‘iPad da Shopee’, outros comentaram sobre usar o Safari (navegador da Apple) para acessar serviços como a Netflix, já que é impossível abrir o aplicativo da Netflix.
Há quem compre o dispositivo para estudo ou leitura, mas mesmo o aplicativo do Kindle (popular pela leitura digital) só funciona em uma versão antiga. Sendo assim, o ‘iPad da Shopee’ é um eletrônico que já vem sem diversas das utilidades esperadas para um tablet. E não há garantia de que o que ainda funciona hoje continuará funcionando nas próximas atualizações.
iPad não é o único produto
Apesar da grande popularização dos ‘iPads da Shopee’ nas redes sociais, esse não é o único dispositivo antigo sendo vendido pela plataforma. Seguindo a linha Apple, o site também está vendendo iPhones antigos. É possível encontrar desde os primeiros modelos até o 6 e suas variações (6s e 6 Plus), todos usados.
Outra marca ofertada é a Samsung, com tablets e também celulares usados. Até o momento, os modelos de tablet Tab 3 (2013) e Tab 4 (2014) são os mais comprados dentro da plataforma. Já os celulares, são modelos diversos, indo desde os de “flip” (dispositivos dobráveis, muito populares nos anos 2000) até os androids mais antigos.
Nem mesmo o V3, o flip “queridinho” dos anos 2000, foi deixado de lado nas vendas do e-commerce. Celulares antigos que eram tendência nos anos 2000/2010 estão sendo vendidos com tudo pela Shopee, abrangendo marcas como Motorola, Nokia e LG.
6 bilhões de celulares descartados até 2025
Quando os eletrônicos antigos são ofertados em sites de e-commerce, é como se a responsabilidade passasse para outro país comprador. No caso da China (que é de onde os dispositivos móveis estão sendo vendidos), esse descarte é um problema crescente do país, e, talvez, a venda para o Brasil possa ser uma maneira de contornar a situação.
Segundo o jornal South China Morning Post, a China terá mais de 6 bilhões de dispositivos móveis descartados até 2025. A propriedade de celulares na China tem aumentado nos últimos anos, atingindo um total de 1,8 mil milhões de unidades no final de 2021 (o número inclui telefones que não estão mais em uso).
Conforme mais consumidores chineses optam por atualizar seus dispositivos para modelos mais recentes a cada ano, os aparelhos antigos se acumulam. Uma investigação da organização ambientalista Greenpeace East Asia revela que menos de 2% dos smartphones são adequadamente reciclados na China, com a maioria sendo descartados de forma inadequada ou simplesmente deixados em casa.
Resíduos de Equipamentos Eletrônicos
A professora Tereza Cristina Carvalho, que é Coordenadora do Lassu (Laboratório de Sustentabilidade) e CEDIR (Centro de Descarte e Reuso de Resíduos de Informática) da Escola Politécnica da USP (Universidade de São Paulo), explica, em entrevista ao Monitor do Mercado, que os dispositivos sem muitas funcionalidades entram no contexto de “obsolescência programada”.
Ela aponta que o próprio nome “lixo eletrônico” não seria o mais correto, mas sim o termo “Resíduos de Equipamentos Eletroeletrônicos”, que incluiria equipamentos de informática, telecomunicação, eletrodomésticos, entre outros. E, para a especialista, esse desembarque de resíduos no Brasil se deve à chamada obsolescência dos produtos — ou seja, quando eles ficam obsoletos, ultrapassados.
Obsolescência programada ou percebida
A tal obsolescência tem duas situações distintas: a “obsolescência programada” e a “obsolescência percebida”.
No caso da programada, depois de operar um certo tempo, o dispositivo deixa de funcionar, por determinação do próprio fabricante. “Por exemplo, no caso de uma impressora, ela é programada para imprimir no máximo tantas páginas e depois ela para de funcionar. Mas ela poderia ser utilizada, a vida útil dela poderia ser estendida, se não tivesse essa programação”, aponta.
Já a obsolescência percebida trata de quando um dispositivo ainda funciona, mas é deixado de lado pelo consumidor, por ele ter comprado um eletrônico mais atual. “Quando sai um novo iPhone, quem tinha um modelo anterior passa a querer comprar o novo, porque acredita que ele será mais moderno e dará mais status”, exemplifica.
Reutilização x receptação de resíduos
A profissional explica que reutilizar equipamentos e prolongar seus ciclos de vida pode ser uma boa prática, mas apenas quando faz sentido para o consumidor. “Se [os aparelhos] não funcionam, é meio absurdo. Pagar R$ 200, para quem tem pouco recurso, não é algo trivial”, opina.
Tereza Carvalho aponta que, quando os dispositivos obsoletos não podem ser reparados e terem real utilidade, tornam-se simples resíduos eletrônicos. “Na prática, não terá quase valor nenhum de revenda.”