Hesitações diante da crise ambiental da atualidade

* Por Arthur Soffiati

Parece que a comunidade científica especializada está atônita. Os cientistas não estão conseguindo compreender o que está acontecendo exatamente. Não houve, segundo eles, emissões significativas de gases causadores do efeito-estufa recentemente. Então, como explicar as chuvas abundantes que afetaram o cone sul da América do Sul? Como explicar a severa estiagem que afeta a Amazônia e o Pantanal? Como explicar os incêndios que devastam o Norte, o Centro-Oeste e o Sudeste (veja-se o caso de São Paulo)? E, mais uma vez, as notícias são veiculadas em manchetes em que figuram as expressões “a maior tempestade já registrada”, “a pior seca da história” etc. Qual o marco inicial para afirmações tão vagas?

Um ditado religioso antigo diz que o mundo acabou em água na primeira vez e agora terminará em fogo. Água refere-se ao dilúvio, registrado na Epopeia de Gilgamesh, na Bíblia e em tradições de outras culturas. Fogo, nesse ditado, é anterior aos incêndios que frequentemente ocorrem em todo o território brasileiro, na Califórnia, no sul da Europa, no nordeste da África e em outras partes do mundo. Afirma-se que a maioria dos incêndios é causada pela mão humana. Certo. Mas fogo não pega na água. A secura facilita sua combustão.

Fogo em vegetação perto de Ribeirão Preto, em São Paulo, em 24 de agosto de 2024
Ribeirão Preto envolta em fumaça – agosto de 2024

Porém não apenas água e fogo. Mais uma vez, a ONU anuncia que o nível dos oceanos está subindo rapidamente, sobretudo no Pacífico. O aquecimento global dilata as moléculas da água e derrete geleiras. Os oceanos estão inchando e ameaçando ilhas e cidades litorâneas. As previsões estimam que o nível dos oceanos pode subir 15 cm até 2050. Tempestades volumosas e catastróficas na zona serrana do Rio de Janeiro e de São Paulo e em outros pontos do Brasil e do mundo. Até no deserto arábico. Secas severas na Amazônia, no Pantanal, no Cerrado, na Califórnia, no Canadá, no nordeste da África. Incêndios devastadores. Elevação do nível dos oceanos. 

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Erosão marinha no bairro de Fronteira, Macaé

Destruição de 1/3 dos biomas brasileiros, processo que começou com a chegada dos europeus à América e que se acelerou nos últimos quarenta anos. Cidades construídas no tempo do ufanismo humano sobre a natureza. Elas estão despreparadas para os novos e sombrios tempos. Poluição do ar, da água doce e dos oceanos. São muitos problemas a confirmar a crise global antrópica provocada por um sistema econômico que não reconhece limites.

Os cientistas ficam meio desnorteados quando a natureza extrapola suas previsões. Só é científico o que pode ser refutado, ensinava o epistemólogo Karl Popper. O cientista quer conhecer a realidade de forma previsível. Com algum acerto, José Eli da Veiga escreve que “… nunca houve mais conhecimento capaz de permitir progressiva aproximação de um entendimento do mundo. Com certeza está muito longe de ser suficiente, mas tal escassez relativa não justifica a insinuação de que o mundo tenha sido compreendido no passado” (“O antropoceno e as humanidades”. São Paulo: Editora 34, 2023). A complexidade do mundo sempre ultrapassou a capacidade da humanidade em conhecê-lo.   

Nos últimos quinhentos anos, o mundo mudou profundamente. A instituição do Estado nacional, construída na Europa ocidental, ganhou o mundo todo juntamente com a economia de mercado. Além de problemas sociais, já denunciados no século XVI, começou a emergir uma crise de caráter natural. A percepção dela começou a ganhar corpo na década de 1970. Entendeu-se que a economia estava ultrapassando a capacidade da natureza em se reciclar e se regenerar. Os principais problemas apontados foram o aquecimento do planeta, a destruição de ecossistemas naturais, a extinção de espécies, a urbanização intensa e desordenada, a poluição em todos os níveis, as mudanças no uso do solo, a extração excessiva de recursos naturais, pelo menos.

Nível do mar aumenta e, prestes a sumir do mapa, Tuvalu pede ajuda da  Austrália - Mídia NINJA
Avanço do mar em Tuvalu, Polinésia

Nenhuma parte do mundo está fora da crise. Em maior ou menor grau, todas as regiões do mundo contribuem para a crise e sofrem suas consequências. Associando-a à questão social, pode-se dizer que a parte mais pobre a vulnerável da humanidade sofre mais com ela. São esses elementos de que dispomos para caracterizar a crise ambiental da atualidade. As instituições científicas devem prosseguir em suas investigações e em suas previsões. São fundamentais as recomendações feitas aos governos, empresários e população. Mais ainda, sua contribuição para mudanças de hábitos. Aqui, repousa um ponto fraco da comunidade científica: ela não lida bem com o universo político e social. Um sistema desequilibrado ganha autonomia depois de um certo ponto. A ecosfera ganhou essa autonomia. A crise, agora, retroalimenta-se  

É fundamental lidar sempre com a perspectiva do erro, pois, como ensina Edgar Morin, é um erro não considerar o erro. No meu restrito conhecimento, considero que dias piores virão. Mais calor, mais chuvas, mais incêndios, mas estiagens, mais extinção, mais destruição de ecossistemas naturais. Mas não posso garantir. Asseguro, porém, que a água não pega fogo. Os incendiários continuarão a existir, mas se beneficiarão da secura. É curto o tempo para reversão. Um carro que corre a 90 km por hora e conta apenas com 10 metros para frear inevitavelmente se chocará com o obstáculo a sua frente.

* Arthur Soffiati é professor associado da Universidade Federal Fluminense aposentado