Dados divulgados pela CPT (Comissão Pastoral da Terra) relativos ao primeiro semestre de 2024 indicam crescimento de disputas nas áreas conhecidas como Amacro, Matopiba e Amazônia Legal, fronteiras do agronegócio. Explosão de casos de contaminação por agrotóxicos no Maranhão chama a atenção
Pulverização aérea de agrotóxicos tem causado aumento de casos de contaminação no Maranhão (Foto: Reprodução/Academia do Agronegócio)
Por Igor Ojeda para a Repórter Brasil
Os conflitos de terra se acirraram durante o primeiro semestre de 2024 em regiões do Brasil onde o agronegócio tem avançado, revelam dados divulgados nesta segunda-feira (2) pela CPT (Comissão Pastoral da Terra).
O levantamento aponta queda no número total de conflitos em relação ao mesmo período de 2023, mas aumento de disputas no campo na Amazônia Legal e nas áreas conhecidas como Amacro – que abrange 45 milhões de hectares na divisa entre o Amazonas, Acre e Rondônia – e Matopiba – que se estende por territórios dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. São regiões marcadas pela expansão do agronegócio nas últimas décadas.
Segundo os dados parciais levantados pela CPT, entidade vinculada à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), foram 1.056 ocorrências de conflitos no campo entre janeiro e junho de 2024, uma queda de 6% em relação às 1.127 registradas no primeiro semestre do ano anterior.
No entanto, o índice deste ano é o segundo maior desde 2015. Do total de ocorrências em 2024, foram 872 conflitos por terra, 125 conflitos por água e 59 casos de trabalho escravo.
“O semestre apresentou menos vítimas da violência no campo em relação ao mesmo período no último ano, mas a conflitividade continua elevada, somada aos danos sofridos pelas comunidades rurais devido à crise climática e aos incêndios criminosos em seus territórios”, diz a CPT.
Os números parciais divulgados nesta segunda integrarão o Caderno Conflitos no Campo 2024, que será lançado pela entidade em abril de 2025. O relatório, que já teve 38 edições, é um dos mais importantes registros da violência e da resistência no campo brasileiro.
“Quando se olha os últimos dez anos, há uma crescente que se mantém. Houve uma diminuição muito leve de casos em 2024, mas, ao mesmo tempo, ainda existe um índice muito alto de violência contra a pessoa e um crescimento de outras formas de violência”, avalia Cecília Gomes, da Coordenação Nacional da CPT.
Para ela, o aumento da conflitividade em áreas de expansão das fronteiras agrícolas “indicam que o campo ainda não é um lugar seguro pra se viver”. “O campo é um lugar onde há um desrespeito extremo aos direitos humanos e à vida digna. Vivemos momentos de ataques crescentes aos povos da terra, das águas e das florestas”, diz.
Entre os 872 casos relativos a conflitos por terra, a maior parte (824) foi de casos de violência contra a ocupação e posse, o terceiro maior índice dos últimos dez anos. O restante dos casos (48) deve-se a ações de resistência: ocupações, retomadas e acampamentos.
Apesar de ter ocorrido redução no registro de formas de violência como grilagem, invasão, expulsão concretizada, pistolagem e omissão/conivência das autoridades, houve aumento significativo das ocorrências de ameaça de expulsão, que passaram de 44, em 2023, para 77, em 2024, revela a CPT. Em relação à pistolagem, apesar da redução de 150 para 88 casos, é o segundo maior índice da última década.
Entre os casos de assassinatos, os dados revelam que houve uma diminuição no número de vítimas: 6 no primeiro semestre – o menor número em dez anos. Mas a CPT alerta que já são 11 mortes confirmadas até o final de novembro. Destas, quase metade foi cometida por fazendeiros. Segundo a entidade, em quatro dos casos, forças policiais atuaram como executoras ou apoiadoras aos executores. .
Explosão de casos de contaminação por agrotóxicos
Um dos índices que mais chamam a atenção nos dados divulgados pela CPT é o crescimento acentuado de ocorrências de contaminação por agrotóxicos. De 19 casos registrados no primeiro semestre de 2023, houve um salto para 182 no mesmo período de 2024 – alta de 857%. A maioria dos casos (156) aconteceu no Maranhão.
Na avaliação de Gomes, esse dado é reflexo de uma diversificação nas formas de opressão e violência no campo. “As populações de comunidades camponesas e tradicionais estão sendo atingidas diretamente pelas pulverizações aéreas de agrotóxicos. Estão sendo diretamente envenenadas. Quando não se expulsa pela força, se expulsa por banhos de veneno”, denuncia.
A violência decorrente da contaminação por agrotóxicos teve um crescimento alarmante, passando de 19 ocorrências em 2023 para 182 em 2024. A maior parte desses casos (156) ocorreu no estado do Maranhão, onde comunidades estão sofrendo severas consequências da pulverização aérea de veneno.
O uso dos agrotóxicos como arma para expulsar moradores no contexto de disputa de terras tem crescido nos últimos, alertam comunidades rurais e organizações da sociedade civil.
O fim da pulverização aérea de venenos agrícolas tem sido discutido em vários estados do país. No Brasil, por enquanto, só o Ceará tem uma legislação que veda a prática — a “Lei Zé Maria do Tomé”, batizada em homenagem a um ativista ambiental assassinado em 2010, no interior do estado.
A Repórter Brasil mostrou na semana passada que duas comunidades próximas a lavouras de frutas no Ceará – Tomé, em Limoeiro do Norte, e Assentamento Maceió, em Itapipoca – continuam registrando mortes de crianças que poderiam ser atribuídas à exposição aos agrotóxicos, mas que não são investigadas por órgãos de vigilância.
Para Cecília Gomes, o Maranhão tem sido palco de uma disputa territorial e de uma “corrida por bens naturais”. Segundo os dados do CPT, o Matopiba registrou um aumento em diversas formas de violência. O desmatamento ilegal teve crescimento de 16%, a destruição de roçados, de 30%, as ameaças de despejo aumentaram em 60% e as ameaças de expulsão saltaram 150%.
Nessa região, diferentemente do registrado no Amacro e na Amazônia Legal, também houve aumento na quantidade de vítimas de violência contra a pessoa.
Vítimas e causadores
Os posseiros, ou seja, famílias de comunidades tradicionais que ainda não têm a titulação da terra, foram as maiores vítimas dos conflitos por terra (235), seguidos por povos indígenas (220), quilombolas (116) e sem-terra (92), revelam os dados.
Já em relação aos causadores da violência, a CPT aponta os fazendeiros (339) como principal força, seguidos por empresários (137), governo federal (88), governos estaduais (44) e grileiros (33).
Em relação aos conflitos por água, as maiores vítimas foram os povos indígenas (35 casos). Em seguida, vêm os quilombolas (24), posseiros (21), ribeirinhos (18) e pescadores (13). Nessa categoria, os causadores das violências são os empresários (32), fazendeiros (26), hidrelétricas (23), mineradoras (19) e governo federal.
Áreas de Cerrado na Bahia ocupadas por plantações de soja (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)
Trabalho escravo
Segundo o levantamento da CPT, o primeiro semestre de 2024 apresentou uma redução significativa do número de casos de trabalho escravo e pessoas resgatadas, após três anos consecutivos de crescimento.
Foram 59 casos e 441 trabalhadores rurais resgatados, em comparação a 98 casos e 1.395 resgatados em 2023.
As atividades com maior concentração de pessoas resgatadas foram as lavouras permanentes (209), desmatamento (75), mineração (70), produção de carvão vegetal (44) e a pecuária (39), números que demonstram “a grande contribuição do agronegócio e da mineração para a perpetuação do trabalho análogo à escravidão”, diz a CPT.
Crise climática
Embora não contem como violência do campo, a CPT levantou dados sobre os impactos sentidos pelas comunidades camponesas, quilombolas e indígenas em três eventos relacionados à crise climática: enchentes na região Sul, secas na Amazônia e incêndios em todo o país.
No Rio Grande do Sul, mais de 300 famílias camponesas, 145 comunidades quilombolas e nove aldeias do povo Guarani foram afetadas. Em relação aos incêndios, os povos indígenas foram os que mais sofreram. Ao todo, 37% dos casos de desmatamento ilegal registrados foram em territórios indígenas. Segundo a CPT, fazendeiros foram responsáveis por metade dos casos identificados de incêndios criminosos.