Grandes marcas compram créditos de carbono de esquema suspeito na Amazônia

Dois projetos que tiveram papéis vendidos para empresas como Gol, Nestlé, Toshiba e PwC podem ter esquentado madeira retirada de áreas desmatadas ilegalmente. Esta reportagem faz parte da série Carbono Turvo, que reúne 14 veículos de mídia da América Latina

NO MUNICÍPIO DE LÁBREA, NO AMAZONAS, HÁ SUSPEITAS DE QUE DOIS PROJETOS DE CRÉDITO DE CARBONO POSSAM TER SIDO USADOS PARA LAVAR MADEIRA. FOTO: MAURO PIMENTEL/AFP

Dois grandes projetos de carbono na Amazônia brasileira, cujos créditos foram vendidos a empresas como Gol, Nestlé, Toshiba e PwC, podem ter sido usados para lavar madeira retirada de áreas desmatadas ilegalmente. A conclusão é do Centro para Análise de Crimes Climáticos (CCCA, na sigla em inglês), uma organização sem fins lucrativos fundada por procuradores e investigadores. Com sede na Holanda, a ONG investiga emissores de gases de efeito estufa, causadores do aquecimento global.

Autoridades brasileiras já haviam investigado casos de lavagem de madeira nas áreas analisadas pelo CCCA. Uma dessas investigações resultou na condenação do dono de uma empresa responsável por um dos projetos. O CCCA fez a análise a pedido da Mongabay, depois que uma fonte anônima apontou a participação de pessoas condenadas por lavagem de madeira nos projetos.

O CCCA analisou os dois projetos REDD+ no município de Lábrea, no estado do Amazonas. Juntos, Unitor e Fortaleza Ituxi abrangem uma área de 140.862 hectares – o tamanho do município de São Paulo – e visam impedir a emissão de 660.598 toneladas de gás carbônico (dióxido de carbono) por ano ao evitar o avanço do desmatamento em uma das áreas mais pressionadas da Amazônia.

O CENTRO PARA ANÁLISE DE CRIMES CLIMÁTICOS ENCONTROU INDÍCIOS DE LAVAGEM DE MADEIRA EM DOIS PROJETOS REDD+ NO SUL DO ESTADO DO AMAZONAS

A sigla REDD+ significa Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal. A ideia é que os proprietários rurais recebam dinheiro para proteger áreas que, sem esse apoio, poderiam ser desmatadas. As emissões evitadas como resultado dessa proteção podem então ser vendidas como créditos de carbono. As empresas que compram esses créditos podem dizer aos seus clientes e investidores que estão “compensando” suas pegadas de carbono e ajudando a combater as mudanças climáticas ao manter em pé florestas estratégicas.

Os dois projetos analisados pelo Centro para Análise de Crimes Climáticos apostam em planos de manejo florestal sustentável, um sistema em que a madeira é cortada e vendida sob rigorosas normas ambientais, como uma das principais ferramentas para garantir a vigilância da área e evitar o desmatamento ilegal. “A presença de trabalhadores nas atividades de manejo é o primeiro fator para inibir as pressões de invasões dentro da Área do Projeto”, informa uma apresentação do Fortaleza Ituxi. “A maioria das metodologias permite a exploração sustentável de madeira”, disse à Mongabay Bárbara Bomfim, engenheira florestal brasileira e especialista em carbono do Lawrence Berkeley National Laboratory, nos Estados Unidos.

Nesses dois casos, no entanto, o Centro para Análise de Crimes Climáticos encontrou discrepâncias entre o volume de madeira declarado às autoridades e o que foi estimado com base em imagens de satélite – uma incompatibilidade que indica que essas áreas podem ter sido usadas para lavar o equivalente a mais de 4,2 mil caminhões de madeira.

Em comunicado à Mongabay, o Grupo Ituxi, empresa por trás de ambos os projetos, negou qualquer ligação com a lavagem de madeira e disse que todas as suas iniciativas são auditadas, verificadas e registradas.

No Brasil, toda madeira comercializada deve vir acompanhada de um DOF, ou Documento de Origem Florestal, também conhecido como crédito de madeira. Uma vez aprovado o plano de manejo florestal pelas autoridades ambientais, o proprietário está autorizado a emitir um número de DOFs correspondente ao volume de árvores que pode extrair daquela área.

A lavagem de madeira no Brasil é ilegal e envolve a compra de créditos de madeira falsos, oriundos de projetos de manejo florestal subexplorados. O crédito é emitido por projetos aprovados, mas as árvores a que esses créditos correspondem não são cortadas. Ao invés disso, os criminosos usam os documentos falsos para regularizar madeira retirada ilegalmente de áreas onde a exploração é proibida, como Terras Indígenas e áreas de conservação.

VISTA AÉREA DA CIDADE DE LÁBREA, ONDE É INTENSA A EXTRAÇÃO DE MADEIRA NA AMAZÔNIA, MOSTRA OS FOCOS DE QUEIMADAS NO ANO DE 2022. FOTO: MICHAEL DANTAS/AFP

“Alguns grupos criminosos no Brasil são especializados em obter a aprovação de planos de manejo florestal por órgãos ambientais apenas para emitir créditos falsos”, afirmou o delegado da Polícia Federal Alexandre Saraiva à Mongabay. “Tem uma interceptação telefônica em que o dono de uma madeireira fala assim: ‘Eu não estou preocupado com madeira, madeira eu tenho aqui de graça, eu preciso de DOF’”, disse ele.

Na Amazônia, Saraiva trabalhou em algumas das maiores operações contra grupos madeireiros ilegais do Brasil. “Imagine uma organização criminosa que trabalha com a venda de carros roubados. Esse carro só vai ser vendido por um valor razoável se ele tiver um documento. É a mesma coisa com a madeira.”

Para avaliar o tamanho das áreas exploradas nos planos de manejo florestal dos dois projetos REDD+, o Centro para Análise de Crimes Climáticos usou uma tecnologia de imagens de satélite chamada NDFI (Índice Normalizado de Diferença de Fração, na sigla em inglês) que mostra as cicatrizes deixadas na floresta pelos madeireiros. A tecnologia já é utilizada no Brasil pela Polícia Federal, pela Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do estado do Pará e pelo Simex, o sistema de monitoramento da exploração de madeira desenvolvido por institutos de pesquisa independentes, como Imazon, Imaflora, Idesam e ICV.

O Centro para Análise de Crimes Climáticos, o CCCA, multiplicou a área explorada mostrada nas imagens de satélite pelo volume médio de madeira por hectare registrado em cada autorização de plano de manejo florestal. Essa média é calculada a partir de um inventário florestal realizado in loco pelo proponente do projeto.

O resultado mostrou ao CCCA uma estimativa de quanta madeira foi provavelmente extraída durante um determinado período. A seguir, essa estimativa foi comparada com o volume declarado ao Ibama no sistema DOF.

Se o volume de madeira no sistema DOF for muito superior ao da quantidade estimada de madeira, isso poderá indicar que os créditos adicionais foram usados para encobrir madeira extraída de outro local e lavada por meio desses projetos.

MÁQUINA PESADA PARA MOVIMENTAR TERRA EM UMA ESTRADA DE CHÃO DENTRO DE ÁREA DE MANEJO FLORESTAL NO PROJETO REDD+ UNITOR, EM LÁBREA. FOTO: FERNANDO MARTINHO

As análises das áreas de manejo florestal dos projetos Fortaleza Ituxi e Unitor mostraram diversas discrepâncias que são fortes indícios de possível lavagem de madeira, segundo o Centro para Análise de Crimes Climáticos (CCCA). O caso mais marcante é o plano de manejo do Fortaleza Ituxi, que, segundo as imagens de satélite, teve apenas 35% de sua área explorada de 2018 a 2019, contabilizando uma estimativa de cerca de 48.588 m3 de madeira.

No sistema DOF, no entanto, os proprietários do projeto declararam ter extraído 104,7 mil metros cúbicos de madeira da área no mesmo período, mais que o dobro do volume estimado pelo CCCA. “Isso é fraude”, disse Saraiva, após avaliar as conclusões dos analistas.

O CCCA afirmou que seu método fornece volumes aproximados e que os números reais só podem ser determinados por uma auditoria in loco. O relatório completo e a metodologia podem ser vistos em um relatório publicado no site da organização.

Gustavo Geiser, perito da Polícia Federal no Pará, disse que sua equipe usa a mesma metodologia do CCCA quando investiga a extração ilegal de madeira no estado. “Esse caso que você descreveu, por exemplo, tem fortes indicações de lavagem de madeira”, disse ele à Mongabay.

Também foram encontradas discrepâncias nas atividades madeireiras da fazenda Três Barras, que faz parte do projeto REDD+ Unitor. Em um dos planos de manejo florestal da fazenda, os proponentes declararam vendas de 25.371 metros cúbicos de madeira, mas o CCCA estimou que eles extraíram, no máximo, 71% desse volume.

Em outro plano de manejo da mesma fazenda, o volume declarado foi de 24.148 metros cúbicos, mas o CCCA calcula que eles tenham extraído cerca de 58% disso. O CCCA também encontrou indícios de lavagem de madeira em outra propriedade do projeto Unitor, a Presidente Prudente, onde foram declarados 18.547 metros cúbicos de uma área explorada. Segundo análise do CCCA, a área não deveria ter fornecido nem metade desse valor. “Esse é um indício forte de uma possível transação de crédito sem lastro real na madeira”, disse à Mongabay Mikael Freitas, analista de dados do CCCA.

No total, a análise do CCCA sugere que 84.886 metros cúbicos de madeira foram cobertos por DOFs potencialmente falsos emitidos pelos esquemas de créditos de carbono, o suficiente para lavar o equivalente a mais de 4,2 mil caminhões de madeira.

“Estou impressionado”, disse Gustavo Pinheiro, que trabalhou durante mais de uma década em organizações como a The Nature Conservancy e o Instituto Clima e Sociedade. “Sabíamos que havia problemas técnicos nesses projetos, especialmente no Fortaleza Ituxi. Mas isso é algo muito pior. Parece que é um caso de polícia.”

Embora tenham extraído muito menos madeira do que declararam de algumas áreas, em outras os proprietários fizeram o oposto. Na fazenda São Sebastião, parte do projeto Unitor, imagens de satélite sugerem a extração de 11.859 m³, mas nenhuma madeira comercializada foi declarada no sistema DOF. O mesmo aconteceu em outro plano de manejo florestal localizado dentro do empreendimento Fortaleza Ituxi, onde uma área de mais de 1,7 mil hectares foi explorada sem a devida documentação.

“Essa dinâmica de você ter um plano de manejo executado de um jeito e outro de outro jeito indica um processo que está muito adaptado às irregularidades do mercado de madeira na Amazônia”, disse Freitas, do Centro para Análise de Crimes Climáticos (CCCA). Todas as evidências apontam para um modelo de negócios que não se preocupa com a conservação ambiental, acrescentou. “Pelo contrário, observamos um esforço de superotimizar o ganho financeiro em cima de uma área de floresta, tanto pela aparente superexploração da madeira em algumas áreas como pelo uso de outras áreas para geração de DOF, e também pela geração de créditos de carbono.”

Tanto o Unitor quanto o Fortaleza Ituxi são liderados por Ricardo Stoppe Jr., médico de São Paulo, e certificados pela Verra, uma das maiores plataformas de registros voluntários do mercado de carbono do mundo e o mais importante para iniciativas REDD+.

STOPPE COM RICARDO SALLES. FOTO: FACEBOOK

A empresa de Stoppe, o Grupo Ituxi, afirmou em nota ser somente a proprietária dos planos de manejo florestal, e que a madeira é explorada por terceiros: “Apenas intermediamos as relações comerciais com interessados aptos a realizá-las – empresas que detêm equipe e maquinários próprios para a retirada da madeira”. O Grupo Ituxi também contestou as conclusões da análise do Centro para Análise de Crimes Climáticos, dizendo que as imagens de satélite não são suficientes para avaliar os volumes reais de exploração de madeira, o que, acrescentou, só poderia ser feito por meio de inspeção in loco.

Um porta-voz da Verra disse que a empresa precisa de mais detalhes sobre as análises antes de comentar as descobertas.

Segundo a revista Exame, Stoppe é o maior vendedor individual de créditos de carbono do Brasil e é celebrado como “um dos melhores exemplos de como é possível ganhar dinheiro mantendo florestas de pé”. “Eu vivo aqui e isso aqui virou a minha vida. Eu hoje sou apaixonado pela Amazônia”, disse ele em entrevista.

Seus projetos foram desenvolvidos pela Carbonext, empresa brasileira conhecida como a maior geradora de créditos de carbono do país e especializada em estruturar os projetos, calcular suas linhas de base de desmatamento e dar conta de toda a burocracia em torno de registros e auditorias. Em outubro de 2023, uma reportagem do InfoAmazônia em parceria com a Mongabay mostrou que a empresa era acusada de violar direitos de comunidades Indígenas em contratos de crédito de carbono.

Em comunicado à Mongabay, a Carbonext afirmou não estar envolvida com o manejo florestal realizado na área e que “não existem formas cientificamente reconhecidas para apuração de volume de madeira em projetos de manejo florestal a partir unicamente de imagens de satélite”.

Investigações anteriores apontaram lavagem de madeira

Antes da análise do Centro para Análise de Crimes Climáticos, autoridades brasileiras já haviam encontrado indícios de lavagem de madeira nos projetos Unitor e Fortaleza Ituxi.

Em outubro de 2021, agentes do Ibama foram até a Divisa, uma serraria no distrito de Vista Alegre do Abunã, à beira da BR-364. Segundo o relatório de fiscalização dos agentes federais, o objetivo era inspecionar a transação suspeita de 13 DOFs correspondentes a 233,76 m³ de madeira, que a empresa declarou ter recebido de um plano de manejo florestal na fazenda Nossa Senhora das Cachoeiras do Ituxi, onde está localizado o projeto REDD+ Fortaleza Ituxi.

No entanto, quando os fiscais pediram para ver a madeira, o gerente da serraria disse que “não havia tido movimentação de madeira, tratando-se apenas de uma movimentação virtual para ajuste de pátio da empresa Divisa”. Os agentes concluíram que os DOFs tinham como objetivo “acobertar o mesmo volume de madeira recebido ilegalmente pela empresa”.

De acordo com o Ibama, o caso era ainda mais grave devido à proximidade da serraria com Terras Indígenas e áreas protegidas que sofrem pressão de madeireiros ilegais. Os agentes também disseram que essa poderia ser só a ponta do iceberg, já que outras 11 empresas receberam 55 DOFs do mesmo plano de manejo florestal em um período em que a propriedade estava inacessível.

Naquela época, o projeto de carbono Fortaleza Ituxi já gerava créditos certificados pela Verra. O Ibama multou a iniciativa de Stoppe, denominada Stoppe LTDA, em 211,5 mil reais, e bloqueou o acesso da empresa ao sistema DOF. O esquema foi descrito como um “manejo [florestal] licenciado que se utilizou dos créditos pré-aprovados para acobertar madeira explorada ilegalmente”. Segundo o Ibama, o bloqueio foi suspenso menos de um ano depois, em agosto de 2022, por meio de liminar.

Em seu comunicado, o Grupo Ituxi afirmou que “houve um problema no registro de um dos documentos” devido à má conexão com a internet, mas que a madeira foi entregue à Divisa.

As autoridades também encontraram indícios de lavagem de madeira em algumas fazendas do projeto REDD+ Unitor, descrito por seus proponentes como “um consórcio de propriedades vizinhas (…) que se uniram para desenvolver atividades relacionadas ao carbono florestal”. A área compreende 12 fazendas em um total de 94.270 hectares.

Em maio de 2023, duas dessas fazendas – Três Barras e São Sebastião – foram alvo de uma operação antifraude do Ibama. Segundo a assessoria de imprensa do órgão, foram suspensas quatro autorizações de manejo florestal das duas propriedades. Os investigadores, que, assim como o Centro para Análise de Crimes Climáticos, analisaram imagens de satélite e emissões de DOF, concluíram que o objetivo da fraude no sistema DOF era “acobertar madeira explorada ilegalmente em outros locais, como Terras Indígenas, unidades de conservação e áreas não autorizadas”.

Stoppe disse à Mongabay que as fazendas Três Barras e São Sebastião não são administradas pelo Grupo Ituxi e que a suspensão da autorização de manejo florestal da Três Barras pelo Ibama foi feita sem nenhuma inspeção in loco.

A fazenda Três Barras é a maior propriedade do projeto Unitor e está localizada a 12 quilômetros da BR-364. A Mongabay visitou a fazenda em agosto de 2023 e encontrou áreas de pecuária e manejo florestal. Nenhum dos vizinhos ou funcionários com quem conversamos disse saber que a propriedade fazia parte de um projeto de compensação de carbono.

POLÍCIA FEDERAL VÊ INDÍCIOS DE QUE FAZENDA TRÊS BARRAS, DO PROJETO UNITOR, PODE SER USADA PARA ENCOBRIR COMÉRCIO ILEGAL DE MADEIRA. FOTO: FERNANDO MARTINHO

Durante uma operação da Polícia Federal e do Ministério Público Federal contra a extração ilegal de madeira em 2017, conhecida como Arquimedes, as autoridades identificaram a área como um dos locais supostamente usados para gerar DOFs falsos com o objetivo de encobrir madeira ilegal retirada de outros lugares.

A informação faz parte de decisão judicial sobre Élcio Aparecido Moço, cuja empresa, a Green Forest Carbon, é uma das proponentes do Unitor, junto com a Stoppe e a Carbonext. As empresas e os parentes de Moço são donos ainda da maior parte das terras que compõem o projeto. Outra empresa dele, a Rio Negro, também é citada nos relatórios da Verra como responsável pela fiscalização dos planos de manejo florestal do projeto Fortaleza Ituxi.

Antes de ser investigado na Operação Arquimedes, Moço já havia sido condenado por lavagem de madeira em 2017. Dois anos depois, um tribunal superior decidiu que o processo havia prescrito e ele não poderia mais ser punido. Também em 2019, ele seria denunciado por supostamente subornar dois funcionários públicos com o objetivo de obter licença para um projeto de manejo florestal. Um juiz assumiu o caso, mas ainda não foi marcada a data do julgamento.

“Eu lembro do Moço”, disse Saraiva, que participou da Operação Arquimedes. “Ele era um empresário de madeira bem antigo e tinha boa parte do Ipaam no bolso”, acrescentou, referindo-se ao Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas.

Mongabay fez várias tentativas de contatar Moço por e-mail e telefone para apresentar as acusações, mas sem sucesso. O Grupo Ituxi disse que a Operação Arquimedes é anterior à criação do projeto Unitor.

Moço e o filho de Stoppe, Ricardo Villares Lot Stoppe, são donos de um conglomerado formado por sete empresas. O grupo inclui a Rio Grande Produção Florestal, que foi multada em um total de 2,8 milhões de reais por desmatar 572 hectares em 2021.

Entre os sócios das empresas também estão pessoas como Cleyliane Lopes de Moura, presa em 2006 por vender madeira ilegal, e José Luiz Capelasso, que foi condenado por comercializar DOFs ilegalmente em 2012. Segundo a investigação, ele cobrou 3 mil reais (cerca de 1,5 mil dólares na época) por documento falso. Num dos relatórios de verificação do Unitor, Capelasso também é apresentado como responsável por atividades como “estrutura de gestão operacional” e “período de geração de créditos”.

Em mensagem de WhatsApp enviada à Mongabay, Capelasso disse não ser o “proprietário oficial” dos projetos e recomendou à Mongabay entrar em contato com o Grupo Ituxi. Em relação à multa da Rio Grande, o Grupo Ituxi disse que a área foi desmatada antes de sua compra pela empresa. A Mongabay não conseguiu contato com Moura.

Lucros milionários

De acordo com documentos anexados a uma ação pública, Stoppe e seus sócios haviam ganhado mais de 80 milhões de reais com créditos de carbono até 2020. Stoppe também assinou um contrato de opção de compra de até 2,5 milhões de dólares com um fundo de investimento dos Estados Unidos, em uma operação intermediada pela empresa brasileira Moss, que se descreve como uma empresa de tecnologia financeira (fintech) ambiental que atua como corretora de créditos de carbono.

Entre 2022 e 2023, o projeto Fortaleza Ituxi vendeu mais de 1,2 milhão de créditos de carbono para empresas, segundo a Verra. A principal cliente é a Moss, que vendeu parte desses créditos para a companhia aérea Gol.

A Moss disse que todos os créditos foram comprados e vendidos antes da suposta irregularidade descoberta durante essa investigação (leia a íntegra da nota aqui). A Gol afirmou à Mongabay que todos os créditos de carbono que a empresa adquiriu da Moss são auditados (leia a declaração completa).

Outras empresas brasileiras, como o aplicativo de entrega de comida iFood, o Itaú, um dos maiores bancos do país, e a empresa de vestuário Hering, estão entre os principais clientes do Fortaleza Ituxi. Os créditos também foram usados para compensar as emissões do gigante japonês de eletrônicos Toshiba.

Em suas respectivas notas, iFood e Itaú afirmaram ter realizado processos internos de devida diligência antes de comprar os créditos. O Itaú acrescentou: “Qualquer caso comprovado de fraude ou crime ambiental envolvendo parceiros acarretará a rescisão da parceria, presente ou futura, e a adoção de todas as medidas cabíveis” (notas do iFood e do Itaú, na íntegra). A Hering disse que os créditos foram adquiridos por meio de uma importante empresa intermediária, que apresentou documentação de validação e integridade dos ativos (declaração completa). A Toshiba não respondeu aos pedidos enviados por e-mail.

Um número ainda maior de créditos (2,3 milhões) foi vendido pelo projeto REDD+ Unitor. Seus três principais clientes são a petrolífera estatal colombiana Ecopetrol, a mineradora canadense Sigma Lithium Resources e a empresa de auditoria britânica PwC International. A lista também inclui outras transnacionais, como a Nestlé.

Em uma nota, a Ecopetrol disse que comprou os créditos de um dos desenvolvedores de projetos mais reconhecidos do mundo. A Nestlé Brasil informou em sua resposta que adquiriu créditos de carbono por meio da WayCarbon, empresa líder na área. A Sigma e a PwC não responderam aos nossos e-mails.

Supostas irregularidades envolvem outra iniciativa de Stoppe no município de Apuí, também no estado do Amazonas, que vendeu créditos de carbono a empresas como Boeing e Spotify. Um juiz de São Paulo bloqueou a venda de créditos do projeto REDD+ Evergreen em outubro de 2022, depois que a Carbonext levantou dúvidas sobre o registro fundiário de uma das propriedades do projeto.

O Grupo Ituxi negou qualquer irregularidade fundiária na Evergreen. A Carbonext afirmou ter alcançado os objetivos do caso, que já foi encerradoA Boeing disse não ter conhecimento das alegações e estar monitorando a situação para informar seus próximos passos. A Spotify não respondeu aos nossos questionamentos.

No total, Stoppe possui cinco projetos REDD+ na Amazônia brasileira, cobrindo mais de 400 mil hectares – o equivalente a três quartos do Distrito Federal. Dois desses projetos ainda estão “em processo de validação” ou “em desenvolvimento” na Verra.

Entre 2020 e 2022, Stoppe foi citado em investigações da Polícia Federal e do Ministério Público Federal contra Chaules Pozzebon, conhecido como um dos maiores desmatadores da Amazônia, que lavava madeira para um esquema de extração ilegal na divisa dos estados do Amazonas e Rondônia, na mesma região dos projetos Fortaleza Ituxi e Unitor.

De acordo com as investigações, Stoppe era suspeito de fornecer a documentação necessária para “legalizar” a madeira extraída ilegalmente da floresta e de ser uma das principais fontes de DOFs de uma das serrarias de Pozzebon, chamada J. M..

ANÁLISE POLICIAL DOS ‘PRINCIPAIS ENVOLVIDOS COMO EMISSORES DAS FRAUDES’, EM RELAÇÃO A UMA DAS SERRARIAS DE CHAULES POZZEBON. STOPPE ESTÁ NO TOPO, ENTRE OS EMISSORES. FOTO: PROCESSO NINAMETSA

De dezembro de 2015 a agosto de 2019, ele teria emitido o equivalente a 57.472 metros cúbicos de madeira avaliados em 4,8 milhões de reais para a J. M., mas as grandes distâncias entre os projetos de manejo florestal e os supostos clientes chamaram a atenção dos investigadores.

“A distância entre o manejo e a serraria acaba tornando o transporte oneroso do ponto de vista comercial. Tal fato indica que o manejo possa estar sendo usado apenas para destinação de créditos à J. M.”, escreveram os investigadores em um relatório.

O Ministério Público Federal de Rondônia disse à Mongabay que Stoppe não chegou a ser denunciado pela Polícia Federal nem acusado pelo Ministério Público porque não havia provas suficientes contra ele na época. “Caso surjam novas provas mais robustas contra ele, nada impede a reabertura das investigações e até mesmo a abertura de um processo”, afirmou o MPF por e-mail.

O Grupo Ituxi disse à Mongabay que, “no passado, Chaules Pozzebon foi um dos clientes que fizeram a extração do manejo florestal da Fortaleza Ituxi”. Acrescentou que não há provas de qualquer ligação entre Stoppe e a conduta dos investigados pelas autoridades. (Leia a íntegra da nota aqui.)

CHAULES POZZEBON (NO CENTRO) É ACUSADO DE COMANDAR UM GRANDE ESQUEMA DE EXTRAÇÃO ILEGAL DE MADEIRA EM RONDÔNIA E NO AMAZONAS. FOTO CEDIDA PELA AGÊNCIA PÚBLICA

Documentos públicos analisados pelo Centro para Análise de Crimes Climáticos mostram que os créditos de madeira que indicam lavagem nas áreas REDD+ foram enviados a dezenas de serrarias, entre elas quatro empresas pertencentes a Pozzebon, segundo a Polícia Federal.

De acordo com arquivos do Ibama, Stoppe e Moço também emitiram DOFs para diversas serrarias com histórico de multas por armazenamento e transporte de madeira extraída ilegalmente e por inserir informações falsas no sistema DOF, incluindo Cesar Ronhiski, com 21 multas, Adelson & Zapeline, com 17, e Madeireira Bom Jesus, com 11.

Atualmente, Pozzebon está preso, tendo sido condenado a 100 anos de prisão em 2021 por extorsão e formação de quadrilha. Em maio de 2023 sua pena foi reduzida para 70 anos.

Aprovação dos auditores

Atualmente, os projetos REDD+ não estão sujeitos a nenhuma regulamentação oficial no Brasil, onde o Congresso ainda discute a aprovação de um mercado regulamentado de créditos de carbono. Em uma tentativa de obter credibilidade, muitos projetos de compensação de carbono devem obedecer a metodologias como as criadas pela certificadora Verra, sediada nos Estados Unidos.

O sistema tem estado sob intenso escrutínio por parte dos meios de comunicação e da comunidade científica, seja por exagerar seus resultados ambientais – e, portanto, seus lucros –, seja pela assinatura de contratos injustos e enganosos com comunidades locais que sediam os projetos.

Em janeiro, o jornal britânico The Guardian descobriu que mais de 90% das compensações de carbono das florestas tropicais certificadas pela Verra podem não ter valor.

Em agosto deste ano, um estudo publicado na revista Science mostrou que milhões de créditos de carbono podem ter sido gerados com base em estimativas exageradas sobre os benefícios dos projetos à proteção florestal.

GRANDES EMPRESAS, COMO A GOL, COMPRARAM CRÉDITOS DE CARBONO DE STOPPE PARA COMPENSAR SUAS EMISSÕES. FOTO: FACEBOOK

Para emitir créditos de carbono, um projeto deve ser verificado por um auditor independente, mas essa independência é relativa, uma vez que os honorários dos auditores são pagos pelo desenvolvedor do projeto.

“A auditoria tem que melhorar muito e ela tem que vir de uma terceira parte de verdade, não escolhida por quem é o desenvolvedor do projeto”, disse à Mongabay Bárbara Bomfim, que trabalhou no Berkeley Carbon Trading Project da Universidade da Califórnia. “Porque essa galera que começa a desenvolver muitos projetos REDD+ vai criando essas relações com os auditores. Tipo, vou te contratar aqui e eu já tenho dez projetos previstos, então vamos fazer tudo? Então eles viram parceiros de negócio.”

Em resposta à reportagem, a Verra disse que há várias salvaguardas e padrões éticos para garantir a independência e a imparcialidade dos auditores, apesar de serem pagos pela entidade auditada.

Nem o relatório de auditoria do Unitor nem o do Fortaleza Ituxi – preparados por Earthood (uma empresa indiana), Icontec (Colômbia), Rina (Itália) e Aenor (Espanha) — mencionaram quaisquer problemas com os planos de manejo florestal localizados dentro desses projetos REDD+. A exceção é uma discrepância no volume de madeira extraída da área do Unitor e declarada pelo proponente do projeto no relatório de verificação de abril de 2022.

Os auditores da Rina apontaram um desencontro entre os números declarados em uma tabela e os de uma planilha que receberam, que não é pública. O caso foi encerrado menos de 20 dias depois, após o proponente do projeto atualizar as informações da tabela.

Por e-mail, a Aenor disse que todas as informações apresentadas pela Mongabay são anteriores ao seu processo de verificação do Unitor, que foi de agosto de 2021 a julho de 2022. A Rina disse que o Verified Carbon Standard (VCS) não exige avaliação de antecedentes criminais nem análise independente, apenas que o projeto em questão cumpra a norma.

Earthood e Icontec não responderam aos nossos e-mails.

“Os verificadores nem sequer são brasileiros, não conhecem a realidade brasileira. Então acaba sendo uma coisa meio cara-crachá. ‘Tem o documento aqui? Tem, então check’”, disse Pinheiro, que atualmente trabalha na empresa de investimentos de impacto Trie Capital. “O fato é que a metodologia não está atendendo aquilo a que ela se propõe, que é garantir a integridade dos projetos.”

NA DIVISA ENTRE AMAZONAS E RONDÔNIA, ONDE ESTÃO PROJETOS DO GRUPO ITUXI, É FORTE A PRESSÃO PELO DESMATAMENTO. FOTO: FERNANDO MARTINHO