Por Arthur Soffiati*

Os três mais corpulentos afluentes do Rio Negro no seu curso alto são o Uaupés, o Içana e o Xié. São Gabriel era também conhecido pelo nome de Uaupés. Pelos relatos deixados por Alexandre Rodrigues Ferreira, no século XVIII; Alfred Wallace, no século XIX; Theodor Koch-Grünberg, no início do século XX; pelo major do Exército Boanerges Lopes de Souza e pelo naturalista José Cândido de Melo Carvalho, ambos no século XX, os povoados do alto Rio Negro eram constituídos por populações indígenas em sua maioria, mas muito móveis. Na fronteira entre Brasil, Colômbia e Venezuela, os indígenas de várias nações não reconhecem limites que lhes foram impostos por Estados Nacionais e transitam de um para outro país, obedecendo mais as fronteiras culturais ancestrais.


Planejei alcançar Cucuí por terra. Situado à margem esquerda do Negro, São Gabriel se liga a Cucuí pela rodovia BR-307. A estrada tem uma ramificação que leva ao aeroporto da sede municipal e à localidade de Camanaus. Mas devemos considerar que a Amazônia não é um bioma apropriado para rodovias. É perfeitamente possível alcançar os lugares navegando os rios, apesar do tempo mais demorado.
Pode-se chegar a Cucuí subindo o Rio Negro e passando pela localidade de Marabitanas, onde o governo da Capitania de Rio Negro construiu um forte para defesa contra possíveis ataques das colônias espanholas na América. Tratava-se de defender o Brasil pela costa e pelo interior. Alexandre Rodrigues Ferreira deixou-nos um belo desenho do forte de Marabitanas. O major Boanerges Lopes de Sousa escreveu em 1927: “povoado à margem direita (do Negro) com 13 casas das quais só uma estava ocupada (…) Visitamos a antiga capela e o povoado cujas casas abandonadas só se abrem por ocasião das festas religiosas, para receberem os moradores da redondeza (…) o antigo forte, que foi construído ao mesmo tempo que o de São Gabriel, de ordem do Governador do Pará (…) era armado com 19 canhões de ferro” (Do Rio Negro ao Orenoco. Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura/Conselho Nacional de Proteção aos Índios, 1959). Hoje, ele não existe mais. A defesa do Brasil já independente transferiu-se para Cucuí, na tríplice fronteira Brasil-Colômbia-Venezuela. Existe lá um pelotão do Exército com pista para avião. Sobre Cucuí, o tenente Roberto Rodrigues, que lá serviu no início dos anos de 1970, escreveu o livro “Cucuí, joia maravilhosa” (Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2024). Ele pouco saiu das dependências do quartel para escrever sobre a vila.
Retornando pelo Negro, chega-se à foz do Içana. Subindo por ele, alcança-se Assunção do Içana, outro distrito de São Gabriel. A localidade é pequena. Os Salesianos criaram lá uma missão catequista. Descemos o rio e retornamos ao Negro até chegar a São Filipe, um dos três distritos de São Gabriel da Cachoeira, sendo este o primeiro. Obtive poucas informações sobre ele na minha viagem virtual. Ao entrar no rio Uaupés, meu desejo é subi-lo até Iaureté, na fronteira com a Colômbia. Se São Gabriel é a cidade mais indígena do Brasil, Iaureté é o povoado mais indígena de São Gabriel.
Se o leitor conheceu um pouco do alto Rio Negro ao ler estas linhas, concluirá que eu conheci muito mais nas minhas pesquisas.
*Professor, historiador, escritor e ambientalista