Aconteceu lá pelo ano de 2008 ou 2009. Eu ainda estava na ativa e prestes a me aposentar. Uma aluna de Cambuci veio ao meu encontro antes do começo da aula e me entregou dois instrumentos de pedra. Ela me explicou ser presente de uma ex-aluna, de quem não me recordava, também de Cambuci. As duas ferramentas foram encontradas pelo pai da ex-aluna quando passava o arado em suas terras para novo plantio.
De imediato, percebi que eram ferramentas produzidas por indígenas e que o arqueólogo mais atuante – embora seja também o mais destruidor – vem a ser a atividade rural. Pode ser também a atividade urbana, que trouxe à tona o sítio arqueológico do Caju, em Campos dos Goytacazes, e da restinga do Barreto, em Macaé.
O certo era eu, com noções básicas de arqueologia, dar aos dois instrumentos a destinação correta. Mas havia problemas. As duas ferramentas eram batedores de pedra comumente usados com um cabo de madeira. Como a pedra é durável e a madeira não, só a pedra se conserva. Eu não contava com informações sobre o local em que foram encontradas, embora conheça Cambuci e já tivera ido lá reconhecer um sítio arqueológico com a professora Simonne Teixeira, da Universidade Estadual do Norte Fluminense.
Além de faltarem informações sobre o local e sobre a estratigrafia, os instrumentos podiam muito bem ser encontrados em outros lugares do Rio de Janeiro, do Brasil e da América. Mantive os dois comigo, assim como duas pedras que me pai ganhou com registros fósseis. Foi um amigo caminhoneiro que lhe presenteou depois de trazer uma carga delas do Ceará. Manter esse material comigo me incomoda. Tenho uma sensação desagradável de estar interceptando bens públicos. Mas eles terão encaminhamento seguro em breve, para alívio da minha consciência.
Diante dos instrumentos de pedra polida, formulei-me duas perguntas. Primeiramente, cabe saber se houve achado de algum instrumento lítico no sítio da Caju. Em caso negativo, pergunto-me se o grupo que se instalou no alto de um montículo de tabuleiros desconhecia a pedra ou não sabia trabalhar com ela. Essa é uma pergunta que a arqueologia apenas preocupada em descrição de achados não responde. Não havendo instrumento de pedra encontrado, minha conclusão provisória (sempre provisória) é que a pedra não existe numa planície fluviomarinha, onde habitavam os goitacás. Ao mesmo tempo, existe na zona serrana, onde habitavam os coroados e puris. As ferramentas de pedra não indicariam, assim, que puris e coroados eram superiores aos goitacás. É um argumento pequeno contra a superioridade cultural, mas vale.
Em segundo lugar, contemplei as ferramentas de pedra e me perguntei se seríamos capazes de fabricá-las atualmente. Sem dúvida, com as ferramentas automáticas que temos hoje poderíamos fabricar instrumentos mais aprimorados que os dois batedores. À mão, talvez, mas consumiríamos muito tempo. Examino os instrumentos com os olhos e com as mãos. Sua lisa superfície é admirável. Suas formas são simétricas e harmoniosas.
Fabricar instrumentos como aquele sem qualquer ferramenta polidora exigiu muito tempo. Então, concluo como leigo que devia haver já entre o grupo indígena que viveu na fazenda do pai de minha desconhecida ex-aluna alguma espécie de divisão técnica e social do trabalho, algo que se costuma atribuir a sociedades neolíticas clássicas. A fase do neolítico europeu criou a agricultura, o pastoreio, a pedra polida, a cestaria, a cerâmica, a roda etc. A agricultura, sobretudo, permitiu a esses grupos tornarem-se sedentários. O sedentarismo, por sua vez, acentuou a divisão sexual do trabalho e permitiu a divisão técnica do trabalho.
Na América foi diferente. Tudo está junto e misturado. Os naturalistas que visitaram o Norte/Noroeste fluminense e o sul-mineiro no século XIX, como Maximiliano de Wied-Neuwied, Spix e Martius, Saint-Hilaire e Hermann Burmeister, principalmente, mostram grupos já aldeados por missionários católicos e grupos ainda arredios. Estes últimos pareciam ter um modo de vida errante em vias de sedentarização por reduções indígenas.
Os instrumentos que ganhei de presente parecem originários de tempos anteriores à catequese. A título de ensaio, crio o seguinte quadro: esses grupos indígenas seriam potencialmente nômades, mas sedentarizados por tempos prolongados graças a um ambiente natural pródigo em florestas, rios, lagoas, frutas, moluscos, crustáceos, peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos que eram colhidos e caçados, permitindo uma vida neolítica misturada com modos paleolíticos. Um meio de fartura natural que hoje está sendo substituído por ambiente semiárido segundo alguns acadêmicos, ruralistas e políticos. Esse meio rico, do qual dão testemunho os naturalistas europeus, permitiria a divisão técnica de trabalho não completa que, por sua vez, criaria condições para a fabricação de ferramentas elaboradas, como as que me presentearam.
*Professor, historiador, escritor e ambientalista