Europeus na restinga de Paraíba do Sul (III)

Por Arthur Soffiati

Os eixos de colonização europeia da Restinga de Paraíba do Sul: Sertão das Cacimbas

O Sertão das Cacimbas situa-se na margem esquerda do trecho final do rio Paraíba do Sul. No passado, todo o território entre o fim do Paraíba do Sul e o fim do rio Itabapoana era conhecido por esse nome, incluindo a restinga e uma parte dos tabuleiros. Uma tradição explica que as águas subterrâneas eram muito próximas da superfície e que afloravam com escavações rasas. Outra dizia que as águas de superfície eram salgadas, sendo necessário escavar cacimbas para encontrar água doce.

Já no século XVII, o Sertão das Cacimbas começou a ser colonizado por descendentes de europeus a partir de São João da Barra. Nas palavras de Fernando José Marins, “… o alferes Manuel Ferreira Soares passou o rio [Paraíba do Sul] e do lado do norte deu princípio ao descobrimento do vasto sertão das Cacimbas, que seu filho do mesmo nome efetuou no ano de 1692. Ao repartirem as terras coube ao João Velho Pinto as da parte da Barra, cujos fundos terminavam na direção da lagoa da Lucrécia (Quipary) onde se dividia com os quinhões do capitão Barcellos e Sardinha.”

O Sertão das Cacimbas e, dentro dele, os Campos Novos de São Lourenço começaram a ser povoados. Em 1785, Manoel Martins do Couto Reis mostra, em seu mapa, que toda a margem esquerda do rio Paraíba do Sul, de Guarus à foz do Paraíba do Sul e da margem esquerda do grande rio ao riacho de Guaxindiba, contavam com muitos proprietários. O cartógrafo registou os nomes no mapa. Parece, porém, não ter encontrado nenhum proprietário. As informações devem ter sido colhidas de moradores locais. Informa Estéfany Barreto de Almeida, recorrendo ao historiador Mário Barreto Menezes, que o vice-rei Luiz de Vasconcellos e Souza concedeu, em 1782, a Gregório Barreto de Souza e João Velho Pinto Barreto, ambos netos do Sargento-mor João Velho Pinto Barreto, uma grande sesmaria nos Campos Novos de São Lourenço. O neto que levava o nome do avô fundou a famosa Fazenda Gravatá ou Coroatá, onde foi erguida uma grande sede, hoje ainda existente, mas em ruínas.

Casarão da Ilha do Gravatá, década de 1990. Gentileza de Estéfany Barreto de Almeida

Na outra extremidade, o Sertão das Cacimbas foi o povoado a partir de Guarus, na margem esquerda do Paraíba do Sul defronte a Campos. Guarus (no passado Santo Antônio dos Garulhos) era uma missão catequista dos Capuchinhos para cristianizar indígenas da nação guaru. O relatório do Marquês de Lavradio entregando o Vice-Reinado do Brasil a Luiz de Vasconcelos e Souza refere-se algumas vezes ao Sertão das Cacimbas, principalmente no que concerne à doação de sesmarias. 

O detalhado mapa de Manoel Martins do Couto Reis, acompanhado de precioso relatório, feitos a pedido do vice-rei Luiz de Vasconcelos e Souza, contém informações sobre o Sertão das Cacimbas. Em vermelho, ele assinalou uma estrada que se estendia das cercanias do morro da Onça até perto da foz do Paraíba do Sul, curvando-se em direção ao rio Guaxindiba num local de nome Muritiba. Naquele distante ano, já existia a estrada de Muritiba em direção ao sul, cobrindo quase toda a extensão da atual estrada estadual RJ-194. Partindo da Freguesia de Santo Antônio, hoje Guarus, tanto ao norte quanto ao sul, devia ser usada apenas na estação seca por cavalos e carros de boi. Na estação chuvosa, os transbordamentos do rio Paraíba do Sul deviam tornar intransitável a estrada, como acontece ainda de vez em quando com a rodovia RJ-194, que a sucedeu. 

Fernando José Martins informa que, a partir da colonização do Sertão das Cacimbas, além das duas estradas que margeiam o rio Paraíba do Sul, foram abertas as estradas do Corvo, do Campo Novo, de Muritiba e da Casa Velha. Elas ajudavam no escoamento das riquezas do Sertão, principalmente madeiras-de-lei como cedro, jacarandá, vinhático, sobro, araribá, ipê, grumarim, canela, peroba, tapinhoã, as duas últimas as mais valiosas encontradas no Sertão.  

  Na década de 1830, foi aberto o canal de Cacimbas, ligando o rio Paraíba do Sul à lagoa de Macabu para escoamento das riquezas de uma região ainda pouco habitada. Leia-se madeira como a principal riqueza. O canal aproveitou o brejo de Cacimbas. A lagoa do Macabu situava-se nos tabuleiros. Esse canal contribuiu de forma significativa para a conquista do Sertão das Cacimbas e para sua progressiva urbanização. 

Couto Reis registrou áreas embrejadas e a lagoa do Campelo, ligada ao Paraíba do Sul por um canal natural. Ela já era bem conhecida e uma verdadeira referência na margem esquerda. Crê-se que a ligação com o rio seria feita, como ainda hoje, pelo córrego da Cataia. Mas há outro canal mais ao norte que se conecta com o da Cataia e chega ao grande rio. Parece ser o valão da Ponte, hoje desativado. 

Ainda não se sabia claramente que a margem esquerda do rio Paraíba do Sul, da foz do rio Muriaé ao estuário do grande rio da planície, é ligeiramente mais alta que o nível médio do rio e que, nas cheias, suas águas galgavam essa margem até a lagoa do Campelo. Nas estiagens, parte da água retornava ao leito do rio e outra parte ficava retida em concavidades. Pouco abaixo da lagoa do Campelo, ele registrou a lagoa das Freiras e Frecheiras. Em seguida, os amplos e inundáveis Campo Novos de São Lourenço. No meio dele, a ilha Grande, a Lagoinha, Poços, ilha do Engenho Largo, paço do Melimba, um atoleiro e a valeta Porto Velho.

Para o interior, Poço d’Areia, Terra Nova, Genipabu e Muritiba. Este último é, ainda hoje, grande ponto de referência. Mais para o interior, o brejo do Peixe e as restingas do Aipo e das Velhas. Caminhando cada vez mais em direção ao antigo Sertão de São João da Barra, aparecem a lagoa do Silva, o brejo da Casa Velha, o curral Falso, as lagoas da Saudade e do Saco. Chegamos à foz do Paraíba do Sul, dividida em dois braços: o de Atafona e o de Gargaú, já com esses nomes. Subindo a costa na margem esquerda do rio, encontramos Gamboa e Curralinho. No arco costeiro, hoje correspondente às praias de Santa Clara e Sossego, o cartógrafo anota: “Entrada do Sertão”.

Os limites entre uma fazenda e outra deviam ser convencionados pelos donos. É de admirar que terras alagáveis e alagadas tivessem proprietário. Couto Reis anota os seguintes nomes: Manoel João F. Ribeiro, Alberto Ferreira, J. Caetano e Cia, Paulo Barreto, Eugenio Ferreira, Manoel e Cia, Jeroniano da Costa, J. Velho Pinto, João S. Rangel, Anna Dias, Francisco Jorge, Sebastiana Almeida, Anna Maria Maia, Manoel Rodrigues Pinto, Capitão-mor Belmonte Rangel, Maria das Neves, Antonio Francisco, Joaquim Gomes, Vicente Ferreira, Manoel Ferreira, Sargento-mor Gregorio Francisco, Maria do Nascimento (na margem oeste da lagoa do Campelo) e Antonio (ilegível).

Remanescentes do canal de Cacimbas (1939)

Essa era a zona mais ocupada por propriedades rurais na margem esquerda do rio Paraíba do Sul em seu trecho final. Daí em diante, Couto Reis só registra o sítio de Pedro Dias dos Santos, na bacia do rio Guaxindiba. A existência de muitas propriedades na margem esquerda do rio Paraíba do Sul em terras de restinga alagada e alagável era problemática, pois não havia um dique protetor nem redes de drenagem. Pode-se concluir, então, que não importava tanto a produtividade e a produção da terra, mas sim a sua posse, pois ela conferia poder ao seu dono. 

Essa foi a herança que a legislação colonial deixou: o que conta não é produzir, mas possuir. Quem possui tem mais poder de receber terras do que quem não possui, como era o caso das sesmarias.

O escoamento da produção do Sertão das Cacimbas processava-se melhor por via fluvial que por via terrestre. Daí a importância dos portos. Couto Reis assinala em seu mapa o Porto Velho, na fazenda Muritiba. Ele aparece também na famosa carta de Bellegarde e Niemeyer, de 1861.

Em 1818, o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire partiu de Campos para Vitória pela estrada que seguia a margem esquerda do Paraíba do Sul entre Guarus e Muribeca, onde se situava uma grande fazenda que pertencera aos Jesuítas. Caminhando no solo arenoso do Sertão de Cacimbas, o naturalista registrou: “À medida que se distancia de Campos, a população vai diminuindo. Na verdade, não longe de Barra Seca, encontrei ainda casas e plantações de cana; mas em seguida os tufos de mata virgem tornam-se mais numerosos.” Ele pernoitou em Barra Seca, onde se erguia o famoso engenho de José Fernando Carneiro Leão, filho de Brás Carneiro Leão e de Ana Francisca Rosa Maciel da Costa, baronesa de Campos dos Goytacazes. Ele tinha o título de Conde da Vila Nova de São José, sendo o único com essa titulação. A sede do engenho ficava na margem do Paraíba do Sul. Consultando a cartografia do século XIX, tudo indica que o engenho se erguia junto à vala do Pires, que ligava o rio à lagoa do Campelo. Ele devia ficar seco nos tempos de estiagem, justificando o nome de Barra Seca. Havia outros engenhos no Sertão das Cacimbas. Quando eles foram substituídos pelos engenhos centrais e pelas usinas, foi no Sertão que se construiu a famosa usina de Abadia, de propriedade de Couret e Carvalho, atestando a presença francesa em Campos. A usina usava lenha transportada em barcas pelo rio Paraíba do Sul.

Finalmente, nessa rápida notícia da colonização em moldes europeus do Sertão das Cacimbas, não se pode esquecer a atividade pesqueira no rio Paraíba do Sul, na lagoa do Campelo, em outras lagoas menores e no canal das Cacimbas. 

Aspecto atual da Vila de Gargaú, na foz do rio Paraíba do Sul