Em Nota Técnica, cientistas da UFRGS detalham o desmonte da legislação ambiental no RS

Cientistas do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul publicaram uma Nota Técnica nesta sexta-feira, 14, onde detalham as modificações do Código Estadual do Meio Ambiente (CEMA), promovidas pelo governador Eduardo Leite e aprovadas pela Assembleia Legislativa do Estado.

Confira aqui. 

Cada artigo da lei antiga é comparado ao seu correspondente na nova lei e as diferenças são comentadas quanto às suas implicações regulatórias e ambientais.

A Nota Técnica Gestão Ambiental Reativa Sem Poder de Reação é assinada pelos professores Gonçalo Ferraz e Fernando G. Becker.

Becker é graduado em Biologia pela UFRGS e doutor em Ecologia e Recursos Naturais pela Universidade Federal de São Carlos.

Ferraz é graduado em Biologia pela Universidade de Lisboa, pós-graduado em Política e Regulamentação Ambiental e doutor em Ecologia e Biologia Evolutiva, pela Universidade de Columbia.

No texto de apresentação, os autores afirmam  que as mudanças feitas no novo Código Estadual do Meio Ambiente (CEMA) parecem obedecer a três princípios: eliminar, enfraquecer, subverter.

O Código alterado eliminou sumariamente partes fundamentais do texto original.

Desapareceram todos os artigos sobre áreas de uso especial, que, não sendo unidades de Conservação, precisam ser definidas e protegidas.

Desapareceram as diretrizes técnicas para elaboração de estudos e relatórios de impacto ambiental, assim como as ferramentas e mecanismos de controle da qualidade do ar.

Por fim, o último artigo do novo CEMA (art. 233) revoga treze artigos e um parágrafo único do Código Florestal do Estado, atentando severamente contra os mecanismos de proteção de florestas. O que não é eliminado, é enfraquecido.

O novo CEMA é particularmente erosivo com o sistema de licenciamento ambiental. A lei brasileira segue uma lógica de licenciamento bastante razoável, em que os empreendimentos passíveis de causar dano ambiental precisam uma licença prévia à instalação, uma licença de instalação e, finalmente, uma licença de operação que é renovada ciclicamente mediante avaliações.

O novo código mantém estas três licenças, mas acrescenta outras três, de definição imprecisa e que flexibilizam perigosamente todo o sistema de licenciamento, apresentando ao empreendedor incentivos contrários à preservação do ambiente do estado.

Chamam-se “Licença Única”, que pode valer pelas três anteriores, “Licença de Operação e Regularização”, para quem começou a operar sem ter obtido licenças prévia e de instalação, e “Licença Ambiental por Compromisso”, a LAC, uma novidade que se obtém por via eletrônica mediante uma “declaração de adesão e compromisso”.

O texto modificado não é claro no que se refere a quais atividades podem ser licenciadas por cada licença. Essa definição fica para depois. Será feita por meio de resoluções do Conselho Estadual do Meio Ambiente (CONSEMA).

A resolução do CONSEMA 372/2018, por exemplo, especifica os tipos de empreendimento e o tipo de licenciamento a que estão sujeitos. Ela pode ser alterada a qualquer momento com modificação da classificação dos empreendimentos.

A subversão da lei vem na linguagem e num sem-fim de pequenos detalhes que, aparentando uma preocupação com a eficiência, na verdade invertem o sentido da lei e comprometem a capacidade do Estado proteger o ambiente e gerenciar o uso de recursos naturais com efetividade.

Por exemplo, o termo “Ministério Público” (MP) aparece três vezes no Código anterior, indicando situações em que alguém tem obrigação de dar ciência de algum procedimento ao MP ou dando ao MP o poder de convocar uma Audiência Pública.

Quantas vezes aparece “Ministério Público” no novo código? Zero.

De forma semelhante, em todos os lugares onde o código original estipulava publicação de alguma decisão no “Diário Oficial do Estado” , o CEMA alterado estipula publicação na “rede mundial de computadores”.

Por fim, numa alteração sutil e reveladora, que passa facilmente despercebida, o termo “Poder Público” foi substituído por “Estado”.

O “Poder Público” é um poder que representa o público e como tal tem de respeitar e proteger o interesse coletivo; aparecia trinta e oito vezes no código anterior. No novo texto é mencionado nove vezes. A troca foi sistemática, exceto nos trechos do CEMA novo que não constavam do Projeto de Lei e foram devolvidos ao texto do código antes da votação em janeiro de 2020.

As omissões, enfraquecimento e modificações de linguagem aqui mencionadas são apenas uma pequena amostra das mais de 150 mudanças introduzidas no CEMA.

Além das mudanças, foram eliminados 59 artigos e inseridos 46 novos que flexibilizam a legislação em favor do empreendedor.

Os autores da Nota Técnica reconhecem que o código anterior “não é a oitava maravilha do mundo”, mas foi fruto de décadas de busca e construção de um conjunto de regras para o bom uso de bens coletivos.

“O novo CEMA representa um desmonte da legislação ambiental, cujas implicações para a sociedade em geral são aumento dos problemas socioambientais, a deterioração ambiental e a diminuição de qualidade de vida”.

Em termos conceituais e de estratégia, as alterações realizadas implicam uma temerária mudança do princípio de gestão ambiental feita pelo Estado: privilegia-se uma abordagem reativa, na qual o poder público só entra em ação após os problemas ambientais ocorrerem, em desfavor de uma abordagem preventiva, de precaução, em que o poder público procura diminuir o risco de que problemas ambientais venham a ocorrer.  “A abordagem preventiva é mais efetiva em cuidar do ambiente, mais barata e menos conflituosa do que uma ênfase predominantemente reativa”.

“A concepção reativa de gestão ambiental também é extremamente arriscada, se considerarmos que diversas mudanças no Código implicam no enfraquecimento dos órgãos ambientais e de sua atuação. Sob um princípio reativo de gestão, a função de fiscalização dos órgãos ambientais deveria ser muito fortalecida, assim como as políticas e ações de recuperação ambiental e reparação de danos. Esperar-se-ia encontrar órgãos bem estruturados para exercer intensa e ampla fiscalização, e programas plenamente funcionais de recuperação ambiental, contando com tecnologia e número de servidores que dessem conta dessas demandas. Seria necessário, também, que as punições fossem exemplares para quem desrespeita as regras. É justamente o contrário do que vem ocorrendo com os órgãos ambientais no RS. O que estamos vendo com o impacto das cheias pode ser tanto percebido como resultado de uma gestão preventiva enfraquecida, como de uma gestão reativa não implementada: como a prevenção contra os eventos extremos tem sido fraca e a abordagem de fiscalização e recuperação é insuficiente, temos um enorme impacto socioambiental, cujo custo de recuperação pode chegar à casa da centena de bilhões de reais (sem contar os prejuízos gerados), e que produz enorme turbulência na vida das pessoas e na economia. As mudanças no CEMA reduziram o caráter preventivo da gestão ambiental e, paradoxalmente, não contribuíram para melhorar sua função reativa”.

Estão listadas as mudanças do CEMA de 2020 Lei Nº 15.434/2020 em relação ao CEMA de 2000 (Lei Nº 11.520/2000), na ordem dos capítulos do CEMA de 2000.