Por Ramana Rech para Mongabay
LINHARES, ES — Em frente à casa de Lucimar Dias dos Santos Silva, um rastro amarelo mancha o azul da caixa d’água. Uma cor de tonalidade similar ou mais intensa às vezes sai de sua torneira ou do poço d’água do vizinho. Lucimar, conhecida como Preta, nasceu e cresceu em Povoação, um distrito do município de Linhares (Espírito Santo), mais precisamente na comunidade de Brejo Grande.
Desde que se lembra, Preta tem visto enchentes em Brejo Grande alagarem a estrada, invadir casas e isolar moradores. Mas, após o rompimento da barragem de rejeitos de Fundão, ocorrida em 2015 em Mariana (MG), um novo problema com a água tem abalado sua vida e de outros quilombolas ao longo da foz do Rio Doce.
Povoação fica a 37 km da zona urbana de Linhares e o acesso ao distrito é apenas por estrada de terra. Localizada ao norte da foz do Rio Doce, a região também é banhada por 24 lagoas. O último censo do Instituto Brasileiro de Ciência e Geografia (IBGE) indicou que em Povoação vivem 3.274 pessoas, e um relatório feito pela Comunidade Tradicional Quilombola de Povoação diz que, dessas, cerca de 1.800 são quilombolas.
Em Brejo Grande, a visão de vastos campos é cortada de quando em quando por alguma casa e, nos dias ensolarados, o sol bate sobre a terra sem obstáculos. Uma estrada esburacada leva até a casa de Preta, onde de uma ponta se vê um aglomerado de árvores e, da outra, grama a perder de vista. Algumas árvores no quintal fornecem uma sombra e, na horta, sobrevive um pé de boldo e outro de camomila. O restante das plantas já não brota desde a chegada da lama, diz Lucimar.
A água do poço artesiano que sai da torneira e do chuveiro é salgada. Por vezes, tem mau cheiro e deixa uma sensação oleosa sobre a pele. Lucimar associa os banhos que toma com essa água à coceira e à irritação que costuma sentir logo após.
Para ingestão, a família de Preta prefere pegar água no poço do vizinho, que pelo menos não tem o mau cheiro ou o gosto salgado, mas pode vir amarelada. Comprar água mineral não é uma opção viável, pela falta de dinheiro. “Ou a gente compra água ou a gente passa fome”, explica. Com o desastre de Mariana e a consequente contaminação nas águas da foz do Rio Doce, ela perdeu seu ofício de pescadora e passou a depender do dinheiro trazido pelo marido, que trabalha por um sistema de diárias nas fazendas da região.
Ao se romper, a barragem de Fundão, de propriedade da Samarco (que tem como acionistas a Vale S.A. e a BHP Billiton), carregou 50 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração, compostos, principalmente, por óxido de ferro e sílica.
Mas um laudo técnico do Ibama sobre o desastre diz que a força e o volume da lama “provavelmente revolveu e colocou em suspensão os sedimentos de fundo dos cursos d’água afetados, que pelo histórico de uso e relatos na literatura já continham metais pesados”.
Em 21 de novembro de 2015, duas semanas após o rompimento da barragem, a lama chegou finalmente à foz do Rio Doce, em Linhares, a 600 km de distância, afetando os dois remanescentes de quilombos da região: Degredo e Povoação. O Acordo de Repactuação, assinado pela Samarco em outubro de 2024, reconheceu ambas as comunidades como atingidas. O acordo prevê o repasse de R$ 488.533.500,00 para Povoação e de R$ 98.615.670,00 para Degredo, para compensação e reparação dos eventuais danos coletivos causados pelo desastre em Mariana.

Transtornos no fornecimento de água
Em Degredo, a 20 km da foz do Rio Doce, a população também enfrenta problemas de qualidade da água, mas recebe água mineral da Samarco desde 2018. São 15 litros por dia por pessoa, conforme decidido pelo Comitê Interfederativo (CIF), que até o Acordo de Repactuação era responsável por orientar as medidas de reparação pela Samarco.
Mas a quantidade é insuficiente para realizar todas as atividades do dia, e é necessário recorrer à água da casa, que – assim como no caso de Povoação – costuma vir de poços artesianos construídos pela própria população.
Uma nota técnica da Câmara Técnica Indígena e Povos e Comunidades (CT-IPCT), que fez parte do CIF, justificou a demanda com base na “impropriedade da água que sai da torneira de suas casas para consumo humano”.
Na ocasião, a Samarco argumentou que a má qualidade da água em Degredo não guardava relação com o desastre de Mariana, enquanto os moradores relatavam que alterações na cor da água, bem como efeitos negativos pelo uso dela na população, começaram a partir do desastre de Mariana. Apesar de não negar a determinação do CIF, que em um primeiro momento havia definido o fornecimento de 5 litros de água por pessoa por dia, a Fundação Renova — responsável por gerenciar a reparação dos danos causados pelo rompimento — não iniciou o abastecimento no prazo estabelecido pelo comitê, que, em resposta, instituiu uma multa de R$ 280 mil à fundação.
Pleiteando o fim da multa e o fornecimento de apenas 5 litros de água por pessoa por dia, ao invés de 15, a Samarco conseguiu em processo no Tribunal Federal o fim da obrigação de prover água à comunidade.
Até que, em setembro de 2022, uma decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) estabeleceu o retorno dessa obrigação à Fundação Renova, justificando que “o princípio da precaução ensina a necessidade de se fazer frente aos riscos e, mesmo na ausência de certeza científica, exige uma providência antecipada que coloque em risco a saúde humana pelo consumo de água imprópria, sendo desnecessária prova contundente quanto ao aspecto”.
A repactuação de 2024 extinguiu o processo e estabeleceu que a Samarco forneça água para consumo humano até implementar o sistema de abastecimento de água em Degredo.
Certificada como remanescente de quilombo apenas em agosto do ano passado, Povoação ficou de fora de qualquer discussão sobre fornecimento de água mineral aos quilombolas do distrito. Ao reconhecer a comunidade como atingida pelo desastre em outubro de 2024, o CIF havia determinado também que a Fundação Renova iniciasse de forma imediata o fornecimento de água à população para consumo. Mas o comitê foi extinto pouco tempo depois com a assinatura do Acordo de Repactuação.
Povoação conta com atendimento público de serviço de água, porém Walkimar Bispo Rodrigues, liderança que encabeçou o processo de certificação como remanescente de quilombo, diz que o abastecimento se restringe à sede de Povoação e não alcança os outros pontos. Moradores do distrito visitados pela Mongabay confirmam que utilizam água de poços artesianos ou compram água mineral.
Em Degredo, a solução definitiva consiste em um Sistema de Abastecimento de Água (SAA) baseado em poços profundos, cuja construção está prevista para começar no final deste ano e acabar em 2027. Depois que a obra for concluída, o sistema ficará sob operação do Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE) de Linhares.
Em dezembro de 2018, o CIF determinou que a Fundação Renova apresentasse uma solução definitiva para a questão da água em Degredo. O processo, porém, foi marcado pela morosidade, analisa uma nota técnica do CT-IPCT.
O prazo para a entrega do projeto básico, que traria o planejamento da obra, estava previsto para 14 de junho de 2019 e foi adiado sucessivamente até julho de 2020. Até que, em abril de 2022, o então prefeito de Linhares, Bruno Marianelli, e o presidente da Fundação Renova, André de Freitas, assinaram o Acordo de Cooperação para execução das obras do SAA com um investimento de R$ 10 milhões da Renova.
Uma vez concluída essa etapa, tiveram início as tratativas entre a Fundação Renova e o SAAE. O tempo levado para o andamento do sistema de abastecimento resultou em, abril de 2024, em uma deliberação que impunha prazos para que a Renova mostrasse o andamento do processo. A instalação do sistema em Degredo também está previsto pelo Acordo de Repactuação.
O Ministério Público do Espírito Santo (MPES) esclarece que, no caso de Povoação, a Samarco deve concluir a elaboração dos projetos de engenharia necessários para realizar melhorias na Estação de Tratamento de Água (ETA), construir uma captação alternativa para a ETA e implantar uma Unidade de Tratamento e Resíduos. Os recursos para as três obras devem ser repassados ao município.

A qualidade da água em Degredo e Povoação
O Estudo do Componente Quilombola da Comunidade Remanescente do Quilombo de Degredo (ECQ Degredo), de março de 2018, feito pela consultoria Herkenhoff & Prates, realizou análise da água do Rio Ipiranga — que está dentro da comunidade —, da água subterrânea que chega até os poços artesianos e de lagoas da região. A análise constatou a presença de ferro bem acima do normal, mas destacou que as causas para isso podem ser várias.
A pressão ambiental na região é anterior ao desastre de Mariana e envolve mineração ao longo do Rio Doce e fazendas. O documento ressalta que faltam dados anteriores ao rompimento para comparação e que outros elementos associados a rejeito de mineração, como manganês e cromo, foram identificados em baixa quantidade. Depois, conclui que o desastre foi um agravante para a má qualidade da água em Degredo, mas não o único fator.
Uma análise apresentada pela Fundação Renova em uma reunião da CT-IPCT de janeiro de 2019 indicou que, dos 128 poços em Degredo dos quais amostras foram coletadas, 34 estavam contaminados com arsênio.
Outra análise, dessa vez do Estudo de Avaliação de Risco à Saúde Humana em Localidades Atingidas pelo Rompimento da Barragem do Fundão, feita pela Ambios Engenharia e Processos Ltda, os níveis de chumbo estavam acima dos limites estabelecidos pelo Ministério da Saúde na água subterrânea para consumo humano. O estudo também detectou excesso de ferro e manganês na água subterrânea de Degredo, bem como de Povoação.
O ferro e o manganês são fundamentais para o funcionamento do corpo humano, mas em quantidades excessivas podem trazer malefícios. O ferro prejudica o estômago e os intestinos e causa vômito, náusea e dor abdominal. Já o manganês em excesso tende a se acumular no pâncreas, fígado, ossos, rins e, principalmente, no cérebro. Há casos de excesso de manganês associados a cirrose hepática e sintomas semelhantes à doença de Parkinson.
“As conclusões e recomendações em relação ao perigo à saúde para as populações expostas podem parecer extremamente conservadoras, dependendo dos interesses dos diferentes grupos envolvidos no caso, porque podem superestimar o risco. Porém, deve-se considerar que essas populações estão expostas a um ou mais poluentes, por várias vias, durante períodos distintos de tempo”, afirma o estudo.
Em Povoação, a análise indicou presença de antimônio e cádmio na poeira domiciliar e de cádmio no solo superficial, ambos acima dos valores de referência do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).
Metais pesados no rio e no mar
Os dados de contaminação do Rio Doce e de sua área costeira também tendem a variar. Um estudo publicado em 2023 concluiu que a região da foz do Rio Doce se recuperou do desastre pouco menos de dois anos após o rompimento da barragem.
O trabalho – que contou com apoio de uma das acionistas da Samarco, a BHP Billiton – utilizou dados do Programa de Monitoramento Quali-quantitativo Sistemático de Água e Sedimento (PMQQS), um dos programas de realização obrigatória pela Samarco que monitora de forma sistemática a qualidade da água ao longo da bacia do Rio Doce. O acompanhamento inclui amostras ao longo do rio, da zona marinha e estuarina, bem como de lagoas, com análise de 100 parâmetros físicos, químicos e biológicos.
Os autores do artigo, na falta de medições históricas da qualidade do Rio Doce, compararam dados do rio com o de outros sistemas fluviais costeiros próximos a ele. De acordo com a pesquisa, a partir de outubro de 2017, a qualidade da água nas áreas impactadas pela lama de rejeitos já era indistinguível das não impactadas.
Mesmo nos períodos anteriores a essa data, as amostras que excediam o limite estabelecido para metais pesados pelo Conama eram a exceção e não tinham grande diferença dos valores estabelecidos pelo órgão, diz o estudo. Os pesquisadores concluem que os efeitos considerados efêmeros do rompimento não comprometeram a qualidade da água marinha.

Outro artigo a respeito do Rio Doce indica que a qualidade da água da bacia tem melhorado desde o rompimento da barragem, mas que ainda apresenta contaminação prejudicial à vida. Publicado neste ano na revista Environmental Pollution, a pesquisa não utilizou como indicador a água, e sim organismos de diferentes posições na cadeia alimentar.
Os dados desse estudo vieram de outra atividade prevista pelo Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC), o Programa de Monitoramento da Biodiversidade Aquática (PMBA), que avalia o impacto do rompimento sobre as espécies do ecossistema.
Na pesquisa, os autores usaram indicadores do PMBA que partiam da coleta de água e sedimento em diferentes pontos da bacia do Rio Doce e da observação da resposta dos organismos de laboratório em contato com essas amostras. A partir disso, se definiu a toxicidade, dividida entre os níveis: não tóxico, um pouco tóxico, moderadamente tóxico, tóxico e altamente tóxico.
O estudo se baseou em dez coletas de material que ocorreram entre 2018 e 2023. Nas duas últimas coletas nas regiões costeiras e próximas à foz do rio, os resultados variam entre um pouco tóxico e não tóxico. Nas primeiras coletas, as análises haviam indicado ambientes moderadamente tóxico ou tóxico.
Para a primeira autora do artigo, Camila Martins, professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Fisiológicas da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), o trabalho não aponta para um Rio Doce igual àquele de antes do desastre, e sim que houve uma redução de toxicidade de uma coleta para outra.
Em entrevista à Mongabay, ela destacou também que, mesmo a toxicidade baixa costuma apresentar efeitos agressivos nos organismos, com danos no crescimento, reprodução, desenvolvimento e fertilidade.
No último relatório do PMBA, programa que contempla apenas a porção capixaba da bacia do Rio Doce e a faixa marítima que vai de Guarapari (ES) até Abrolhos (BA), consta que os corpos d’água sofrem pressão da mineração, da urbanização e da agricultura, o que foi intensificado pelo rompimento da barragem, “resultando em alterações substanciais nos parâmetros abióticos e bióticos dos ecossistemas terrestres e aquáticos”. A foz do rio apresentou os maiores níveis de toxicidade, em especial nos sedimentos.
Adalto Bianchini, que também faz parte do PMBA e é professor da Pós-Graduação em Ciências Fisiológicas da FURG, explica que, por viverem um ambiente de transição entre água doce e salgada, os organismos que habitam a foz já vivem sob estresses naturais.
Somado a isso, o ambiente tende a viver em constante recontaminação. “O rio tenta colocar os contaminantes no mar, porque obviamente todo rio corre para o mar. Só que o oceano também tem a tendência de agir sobre a região costeira. Então, ele também tem essa tendência de devolver esses contaminantes para essa região. É meio que um fluxo de vai e vem”, explica. Essa mesma água do mar também entra, em parte, no subterrâneo.
Para Bianchini e Martins, se basear apenas na composição química para avaliar a qualidade da água é insuficiente, já que os valores podem variar bastante em um curto espaço de tempo e não mostram a resposta dos organismos a ela. Nos períodos de seca, por exemplo, os contaminantes, como metais pesados que não se degradam, tendem a se misturar ao sedimento, mas, quando a chuva cai, eles são suspensos e se diluem na água.
Em relação ao artigo que usou como base o PMQQS, aquele apoiado pela BHP Billiton, Bianchini critica a comparação da composição química da bacia do Rio Doce com a de outros rios. “As propriedades físico-químicas de uma bacia são diferentes da outra, porque o solo é diferente, o material biológico que cresce é diferente.”
Segundo o professor, elementos como a redução de toxicidade apresentada pelo artigo de Martins e a redução do impacto à medida que se afasta da foz – onde há concentração dos contaminantes – evidenciam o nexo causal entre o desastre de Mariana e a contaminação da água.
Questionada a respeito da qualidade da água do Rio Doce, a Agência Estadual de Recursos Hídricos do Espírito Santo (AGERH) disse que o governo do estado tem acompanhado os dados do PMQQS, “que demonstram que a qualidade da água do rio Doce varia de acordo com os períodos secos ou chuvosos, ao longo dos anos, não sendo possível afirmar que os parâmetros se equiparam aos valores encontrados no período anterior ao rompimento da barragem de Fundão”.
A agência também destacou que o Rio Doce, por ser de domínio federal, está sob competência da Agência Nacional de Águas (ANA), que não respondeu aos questionamentos da Mongabay.

Sem peixe
Desde fevereiro de 2018, após decisão judicial, a pesca está proibida até, pelo menos, 25 metros de profundidade na faixa que vai de Aracruz, também na região da foz do Rio Doce, até a costa de Degredo. A atividade poderá retornar no mar dois anos após o Acordo de Repactuação.
Segundo o ECQ de Degredo, das 147 unidades de renda — parâmetro utilizado pelo estudo e que leva em consideração diferentes provedores de renda em uma mesma casa — na comunidade, 95,2% (o equivalente a 140) tinham alguém que pescava antes do rompimento da barragem.
Em 132 unidades de renda, a pesca servia para consumo próprio e, em 117, para vendas. O ECQ avalia que, em relação à água, o maior impacto do desastre foi a impossibilidade de pescar. Mesmo os peixes capturados antes da chegada da lama sofreram desvalorização e tiveram de ser vendidos a preços mais baixos.
Para compensar a perda financeira em Degredo e Povoação, os pescadores têm direito ao AFE (Auxílio Financeiro Emergencial). Destinado àqueles que tiveram a renda impactada em função do desastre, o auxílio corresponde a um salário mínimo por mês acrescido de 20% por dependente. Os quilombolas, porém, afirmam que o auxílio é insuficiente para compensar os ganhos que vinham da pesca antes da lama.
Apesar de ainda não haver uma pesquisa similar para Povoação, a comunidade também se baseava fortemente na pesca.
Em Degredo, na casa de Pedro Costa, mestre cultural da Associação dos Pescadores e Extrativistas e Remanescentes do Quilombo de Degredo (Asperqd), as redes e utensílios de pesca permanecem penduradas nas paredes e árvores. O homem, de óculos retangulares, bigode escuro e mãos calejadas, não poupa palavras ao narrar histórias da comunidade. Ele é neto de Atalino Leite, patriarca de Degredo.
Segundo o ECQ, que se baseou no relato de moradores, Atalino chegou até a atual comunidade em uma jangada em cerca de 1800 após fugir de uma fazenda em São Mateus. A cidade, que por décadas fora o polo econômico do norte do Espírito Santo, na primeira metade do século 19 tinha uma população constituída 50% por negros escravizados.
Para Pedro, a chegada da lama foi “a coisa mais triste que já aconteceu na nossa vida”. Ele aprendeu a fazer as redes com a mãe e a pescar com os irmãos mais velhos aos 13 anos. Depois, passou a seus filhos o que sabia. A proibição de pesca, porém, tem dificultado que esses conhecimentos sejam transmitidos às novas gerações.
O mestre cultural explica que, para ele, que utiliza um bote motorizado, pescar só a partir de 25 metros de profundidade é impraticável. “[Essa profundidade] está mais ou menos 3 km de mar aberto. Aí você sai numa altura dessa, chega lá, vai que dá um problema no motor e é mar aberto?”, diz.
O consumo do peixe também diminuiu. O alimento passou a ser consumido de meses em meses. O questionário do ECQ de Degredo indica que, antes, 47% das unidades de renda consumiam peixes com frequência, toda semana. Após a lama, não houve resposta de consumo frequente.
Marcilene Penha de Jesus, uma das lideranças locais que participou da criação da Assessoria Técnica Independente da Asperqd, e nora de Pedro, diz que a comunidade sabe dos riscos da ingestão do pescado, mas que banir esse hábito por completo é inviável.
Logo após a lama, ela, que não seguia o ofício da pesca, “não queria saber de um peixe dentro de casa”, mas com o tempo foi entendendo a dor dos pescadores. “Trabalhando na área, ouvindo as pessoas, a gente vai entendendo que a cultura de você comer um peixe é tão forte que é muito difícil [parar]”, conta.

Um óleo que fica na terra
Para Elizabete Leite Monteiro, moradora de Brejo Grande, em Povoação, a agricultura costumava ser uma forma de complementar a renda que obtinha enquanto seringueira. De seu sítio, ela tirava da terra para comercializar farinha, feijão, polpa de frutas, abóbora e quiabo, e vendia os produtos de porta em porta na comunidade.
Ela deixou o trabalho de carteira assinada na seringa em setembro de 2023, com a esperança de poder se dedicar apenas ao seu sítio, mas acabou dependendo da renda do AFE. Atualmente, vende de vez em quando cacau.
“Hoje em dia, [quando] você vai molhar a sua plantação, a água tem tipo um óleo e fica na terra”, relata. O solo já não é o mesmo. Os pés de graviola que seu pai plantara morreram, e os esforços de Elizabete para fazer com que outros nascessem foi infrutífero. As bananeiras enfraqueceram e os pés de maracujá têm sido mantidos vivos com muita dificuldade. A impressão é de que mesmo as plantas que sobrevivem costumam produzir de forma muito mais lenta.
“[Você] planta um feijão, fica a coisa mais linda, quando começa a florar, começa a murchar, Você puxa o pé de feijão, o pé de feijão simplesmente está morrendo debaixo da terra. É de baixo para cima”, relata. O problema parece ser a água da torneira, ela diz ao se lembrar de um chuchu que crescia enquanto recebia apenas água da chuva. Quando o período chuvoso acabou, porém, Elizabete precisou irrigá-lo com a água de casa e a planta acabou morrendo.
A perda financeira se traduz na necessidade de comprar frutas e vegetais que antes ela obtinha em seu próprio quintal, em meio a um cenário já de redução da renda. Elizabete agora tem que comprar o feijão, a abóbora e o quiabo.
As dificuldades com a terra também têm prejudicado a manifestação da cultura e do saber popular, dado que algumas ervas medicinais, cujo uso já havia sido reduzido pela ampliação do consumo de remédios industrializados, já não crescem como antes da chegada da lama.
A efetividade dessas plantas contra doenças detêm a confiança das comunidades de Degredo e Povoação, onde alguns moradores são capazes de listar para que cada uma delas serve: joão-brandim para dor de dente, folha de maracujá para dor de cabeça e chá de cipó-cravo para homens e mulheres com problemas sexuais. Em Degredo, 56% das unidades de renda cultivam essas plantas para preparar chás, garrafadas e banhos.
Desde a lama, a criação de abelhas também não tem sido a mesma. Pedro Costa, de Degredo, era conhecido por Pedro do Mel, em função do produto que vendia. A apicultura é desenvolvida por 14,2% das unidades de renda de Degredo, mas Pedro diz que a água também trouxe danos às abelhas.
Ele trabalha há 23 anos como apicultura. Antes da lama, tinha 85 colmeias; hoje, são 16. Parte das abelhas morreu e parte emigrou, “porque os animais também têm noção de alguma coisa que vai prejudicar eles”. Pedro lembra de quando, após ficar desempregado ainda antes do desastre de Mariana ocorrer, conseguiu se manter apenas com as vendas do mel. A notícia da qualidade do mel se espalhou, e o mestre cultural não precisava sair de casa para vender os produtos; os fregueses vinham de fora da comunidade.
Em Degredo, as famílias também costumam criar animais geralmente para consumo próprio. O ECQ indica que 60,8% delas mantêm criação de aves; 30,4%; de porco e 23,7% de bovinos. Pedro também costumava ter algumas galinhas, porém os ovos começaram a vir estragados e as vacas em seu quintal começaram a abortar as crias.

A relação entre arsênio e coceira
Em comum entre quase todos os relatos é a sensação de coceira após o banho com a água encanada, ao que os moradores atribuem a contaminação da água após a lama. Há também problemas de estômago e mal-estar. Marcilene conta que crianças e idosos são mais vulneráveis aos problemas de pele.
Ela utiliza a água recebida da Samarco para dar banho em seu filho de dois anos. Mas nos momentos em que se distrai, e a criança entra em contato com a água da torneira, costumam aparecer na alguns caroços.
A coordenadora interina da Assessoria Técnica Independente Asperqd, em Degredo, Luciana Andrade Jorge Oliveira diz que faltam estudos para analisar a relação entre o desastre e as condições de saúde da população e que o assunto tem sido negligenciado.
Um dos poucos trabalhos nesse sentido foi realizado pela Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de Ribeirão Preto (FCFRP) da USP, cujos pesquisadores coletaram em 2017 amostras de cabelo, sangue e urina de moradores da foz do Rio Doce e de uma região na cidade de São Mateus, no Espírito Santo. Eles também analisaram a água, os alimentos e os pecados consumidos nas regiões.
Degredo não entrou na coleta, mas o distrito de Povoação, sim. Segundo a tese de doutorado de Ana Carolina Paulelli, realizada com dados dessa coleta, 99% das 300 amostras de sangue apresentaram arsênio quando comparadas a biomonitoramentos em outras regiões brasileiras. Na urina, essa porcentagem foi de 19% e, nos casos mais extremos, chegou a valores 93 vezes maiores do que os de referência.
Além disso, 47% das amostras de urina tinham níquel acima dos valores obtidos por demais monitoramentos. As altas concentrações de arsênio e níquel são conhecidas por causar problemas de pele, diz o trabalho, que registrou, ao realizar 315 questionários, uma incidência de 36% de problemas cutâneos.
O arsênio é potencialmente tóxico e não cumpre função no organismo. Em longo prazo, a substância está associada a câncer de pele, alterações no pigmento da pele, problemas na gravidez e mortalidade infantil.
As amostras de alimentos indicaram uma concentração de arsênio em peixes, crustáceos e moluscos ingeridos pela população acima do preconizado pela Anvisa. Esses produtos também apresentaram mercúrio perto do limite. Os crustáceos tiveram média elevada de ferro e manganês.
A coleta da urina indicou uma alta de bário em 20% das amostras e de chumbo em 6% delas. O bário prejudica principalmente os rins, enquanto o chumbo é neurotóxico e afeta a memória, a capacidade cognitiva e está associado a transtornos mentais e ao comportamento antissocial.
As mechas de cabelo foram utilizadas para reconstruir a retrospectiva de uma possível contaminação da população a partir do comprimento dos fios, sendo que os mais compridos davam pistas do passado mais distante. Com isso, foi possível observar um pico de contaminação logo após o desastre.
Na faixa de novembro e dezembro de 2015, as amostras apontaram que houve um aumento, seguido de queda repentina, de arsênio, alumínio, mercúrio, níquel, chumbo, manganês e cromo.
Houve impacto também na saúde mental, como no caso de Lucimar, que liga seu diagnóstico de ansiedade e depressão ao rompimento da barragem. Há um ano, toma remédio para os transtornos sem interrupções. No doutorado de Paulelli, sintomas psicológicos foram os mais citados e, em Povoação, foram assinalados em 63% dos questionários.
Lucimar relata se afligir com a questão financeira, os problemas psicológicos — que também atingem outros membros da família — e a contaminação da água. “Acabou nossa vida. Você quer ver você estar morando em um lugar que você não tem água para beber?”, diz.
Povoação tem um posto de saúde em sua sede, mas, por ficar distante, quando precisa ir ao médico, Lucimar prefere ir ao ponto de apoio instalado em Brejo Grande de 15 em 15 dias e aonde chega com 30 minutos de carro. Em Degredo, o posto de saúde mais próximo fica a 13 km de distância.
A resposta da Samarco
Questionada pela Mongabay a respeito dos impactos em Degredo e Povoação, a Samarco, empresa responsabilizada pelo rompimento da barragem do Fundão, enviou a seguinte resposta:
“O Novo Acordo do Rio Doce prevê repasse de R$ 488.533.500,00 para a compensação e reparação dos eventuais danos coletivos causados pelo rompimento da barragem de Fundão à comunidade quilombola de Povoação. Esse montante engloba diferentes tipos de apoio: auxílio financeiro emergencial e investimentos em ações e medidas estruturantes que visam transformar a realidade local.
Por meio de um processo de consulta a ser conduzido pela União Federal, a comunidade poderá decidir se deseja se vincular aos termos do Novo Acordo do Rio Doce, e, em caso positivo, decidirá a destinação dos recursos, em modelo de autogestão com governança colaborativa do Poder Público. A referida consulta está prevista para ocorrer em até 18 meses após a homologação judicial do Novo Acordo, ocorrida em novembro de 2024.
É importante esclarecer que o Acordo não define obras específicas — como a construção de um Sistema de Abastecimento de Água — para Povoação. Caso, após o processo de consulta, a comunidade opte por se vincular aos termos do Novo Acordo, poderá direcionar parte dos recursos para projetos como o abastecimento de água potável, além da implantação de poços artesianos e cisternas, conforme suas necessidades e prioridades.
Adicionalmente, o Novo Acordo prevê um investimento total de R$ 11 bilhões em obras de saneamento na bacia do Rio Doce, e o município de Linhares, onde Povoação está localizado, está incluído entre os que podem receber esses fundos compensatórios.
Sobre o AFE
O AFE é um pagamento mensal destinado às famílias que tiveram suas atividades econômicas afetadas pelo rompimento da barragem de Fundão. O valor corresponde a um salário mínimo, acrescido de 20% por dependente e do valor de uma cesta básica, conforme parâmetros do DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos).
No âmbito do Novo Acordo do Rio Doce, homologado em novembro de 2024 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a Samarco assumiu o pagamento do AFE.”https://brasil.mongabay.com/2023/06/vitimas-indigenas-de-brumadinho-ainda-lutam-para-recuperar-seu-territorio/embed/#?secret=DmHgFYKn1q#?secret=HrAdBa6Hrz
Imagem do banner: Lama com rejeitos de minério, decorrente do rompimento da barragem do Fundão, chega à foz do Rio Doce, em dezembro de 2015. Foto: Arnau Aregio, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons.
Citações:
Negin Kananizadeh, Michael Wild, Jacob Oehrig, William Odle, Shahrokh Rouhani, Determining recovery of marine water quality of the Rio Doce using statistical and temporal comparisons with nearby river systems, Integrated Environmental Assessment and Management, Volume 20, Issue 1, 1 January 2024, Pages 99–116, https://doi.org/10.1002/ieam.4818
T.O.M. Lopes, C.R. Silveira, J.A. Silva, T. Guedes, R.A. Tavella, R.C. Rola, J.A. Marques, C.E.D. Vieira, A. Bianchini, C.M.G. Martins. A six-year ecotoxicological assessment of the Doce river and coastal marine areas impacted by the Fundão tailings dam failure, Brazil Environ. Pollut., 371 (2025), Article 125897,10.1016/j.envpol.2025.125897










