Chuvas de outono

Por Arthur Soffiati

Às margens do rio Itapemirim, sul do Espírito Santo, o príncipe alemão Maximiliano de Wied-Neuwied observou: “O rio, no qual se viam alguns pequenos brigues ancorados, é muito estreito, mas comporta certo comércio de produtos das plantações, como açúcar, algodão, arroz, milho e madeira das florestas. Um temporal, que desabou na serra, veio mostrar-nos quão rápida e perigosamente sobem as águas na zona tórrida; porque o rio se tornou logo tão caudaloso, que quase transbordou: aliás, tem sempre correnteza maior que o Itabapoana”. Era o ano de 1815. O príncipe naturalista empreendia sua excursão científica entre Rio de Janeiro e Salvador.

De lá para cá, o mundo mudou bastante, mas as bases da atualidade já estavam lançadas. Observemos que Maximiliano registra o comércio de madeiras das florestas, o que implica em desmatamento, assim como plantações que se praticavam nas áreas desmatadas. Mas não apenas. Se quisermos entender as catástrofes climáticas que ocorreram no princípio do outono de 2024, devemos considerar fatores de ordem meteorológica. Hoje, o aquecimento global do planeta produz muito mais evaporação e acumula muita água em estado gasoso na atmosfera. Ela funciona como mísseis potentes apontados para a Terra prontos a ser lançados por massas frias. Lembremos que, no final do verão, houve fortes ondas de calor (nunca as senti mais fortes que em 2024) com grande evaporação.

Mas outros fatores devem ser levados em conta. Se chuvas volumosas caem no meio do oceano, elas não causarão impactos à vida e aos humanos. Mas se elas se precipitam em zona serrana com grande declividade, as águas correm com força para as partes baixas, abrindo trilhas no meio da mata. Se esta já foi removida por ação humana, as águas correm com mais facilidade, produzindo grande erosão e correndo para as partes baixas, onde, geralmente, encontram um ou mais rios. A terra transportada se deposita no fundo dos rios, reduzindo sua capacidade de absorver o excesso hídrico, e o rio transborda. Foi o que aconteceu em Petrópolis com o rio Quitandinha, um curso d’água domesticado que teve suas margens urbanizadas por ruas. Estudiosos sustentam que o Quitandinha é o rio que mais transborda no Brasil.

Mas consideremos a urbanização como um todo. Normalmente, cidades se erguem às margens de rios. Não são os rios que cortam as cidades. Eles não mudam de trajeto para serem conhecidos pelas cidades às suas margens. Petrópolis se instalou em lugar problemático. No relatório “Saneamento de Petrópolis”, de 1898, redigido pelo engenheiro sanitarista Saturnino de Brito, lê-se: “As águas descem impetuosamente das cabeceiras afluentes e em diminuto tempo uma onda volumosa invade o canal que atravessa a cidade, sobremonta as margens e eleva-se de um metro acima do nível das ruas, alagando os terrenos e as casas”.

O engenheiro propunha soluções para minorar, não para solucionar definitivamente, os problemas decorrentes das chuvas torrenciais. Elas valeriam também para Teresópolis e Nova Friburgo. Mas, historicamente, esses problemas foram intensificados: No vale, as ruas foram impermeabilizadas com asfalto. Nas encostas, as florestas foram derrubadas, abrindo espaço para expansão da cidade. Mas foram moradores pobres que se instalaram nas áreas mais íngremes. Embora, no penúltimo grande temporal, casas de classe média e de ricos tenham sido atingidas, as principais vítimas são os pobres.

Tomemos outro caso dramático: Mimoso do Sul, no Espírito Santo. Conheço a cidade. Não é grande como Petrópolis. Na verdade, é pequena. Ela ergueu-se em zona serrana, às margens do rio Muqui do Sul, que faz parte da bacia do Itabapoana. A cidade tem três tentáculos espalhados por vales estreitos. As encostas foram desmatadas, restando pouca vegetação. A calha do rio é pequena. Lance-se nesse ambiente um dilúvio. As águas descem pelas encostas desprotegidas, caem no rio, que logo transborda e transforma as ruas também em cursos d’água. Casas, carros, pessoas, bens materiais são arrastados etc.

Terceiro caso: Santo Eduardo, 13º distrito de Campos dos Goytacazes. O núcleo urbano também ergueu-se na zona serrana baixa, ao lado e sobre um córrego também integrante da bacia do Itabapoana. A toada é a mesma: desmatamento, assoreamento, urbanização desordenada e uma precipitação pluviométrica nunca registrada. A água que vem do céu não consegue fluir na terra. Mesmo antes da colonização portuguesa, tal volume de chuva não conseguiria passar pelo cano do funil. A diferença é que, em 1500, havia florestas densas, rios desentupidos, baixa população de povos indígenas que se movimentavam rapidamente. Hoje, as pessoas abrem espaço nas florestas, entopem os rios, constroem suas casas na área de expansão dos rios. Leve-se em conta, principalmente, que as chuvas se tornaram mais volumosas. Quando elas caem, moradores perdem tudo ou quase tudo. Governantes sobrevoam os locais atingidos. A defesa civil enxuga gelo. Tudo volta a ser como era antes quando a chuva passa. As cidades estão se adaptando ao novo clima muito lentamente. Mas não apenas na zona serrana o estrago é grande. É preciso também examinar as altitudes médias e baixas.