Boi, soja e agrotóxicos: as isenções tributárias do agro que alimentam o desmatamento e a poluição

Governo deixa de receber 158 bilhões de reais por ano em impostos federais do agronegócio, o que equivale ao orçamento do Bolsa Família e beneficia principalmente multinacionais que lucram com a exportação

As dez empresas ligadas ao agronegócio mais beneficiadas por isenções tributárias do governo federal deixaram de pagar pelo menos 26 bilhões de reais em impostos em 2024 – o que equivale a quase dez vezes todo o dinheiro já desembolsado pelo Fundo Amazônia, que investe em projetos que protegem e recuperam a Floresta. Somente as isenções federais dadas a uma dessas companhias, a Syngenta, que produz agrotóxicos e outros insumos agrícolas, somaram 4 bilhões de reais, mais do que todo o orçamento do ano passado do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, do qual dependem agências públicas fundamentais para o combate aos crimes ambientais, como o Instituto Nacional de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, o Ibama, e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, o ICMBio.

Ao todo, segundo informações prestadas pelas próprias empresas e divulgadas pela Receita Federal, as isenções de impostos que beneficiam diretamente a agropecuária e a agroindústria somaram 158,17 bilhões de reais em 2024. O valor é igual ao orçamento autorizado para o Bolsa Família em 2025. O programa social chega a mais de 20 milhões de famílias, que recebem em média 667,5 reais  – menos que a metade de um salário mínimo. Em outra comparação, é como se 1 em cada 6 reais do valor total das exportações do agro em 2024 tivesse sido bancado diretamente pelo governo.

As dez companhias do agro que atingiram os maiores valores de isenções federais em 2024 foram grandes multinacionais da carne, da soja, dos agrotóxicos e dos fertilizantes. Além da Syngenta – que tem sede na Suíça, mas pertence desde 2017 a uma empresa cujo controlador é o governo chinês​​ –, elas são a brasileira JBS, a maior produtora mundial de carnes e também líder do ranking de impostos não cobrados, com 6,4 bilhões de reais; as estadunidenses Bunge e Cargill, que comercializam e beneficiam grãos como soja e trigo; a brasileira Fertipar, a norueguesa Yara e a marroquina OCP, as três do ramo de fertilizantes; e a estadunidense Corteva e as alemãs Basf e Bayer, que produzem agrotóxicos, sementes e mudas.

A enorme quantia de dinheiro que o agronegócio deixou de pagar em impostos federais, que serviriam a toda a população por meio de políticas públicas, representa um sistema de incentivos distorcido, que beneficia principalmente grandes empresas, a pecuária e as monoculturas voltadas para a exportação, como as de soja e milho. Essas distorções impedem que haja maior velocidade na transformação do setor para sistemas agropecuários que provoquem menos desmatamento, sejam menos dependentes de agrotóxicos e fertilizantes químicos e tenham uma produção mais diversificada, compatível com a preconizada no Guia Alimentar para a População Brasileira.

Algumas das isenções que beneficiam as grandes empresas do agro existem desde os anos 1990, mas muitas foram estabelecidas nos mandatos anteriores de Luiz Inácio Lula da Silva e no governo de Dilma Rousseff, ambos do PT, sob a justificativa de que ajudariam a baratear o preço dos alimentos – o que não tem acontecido. Entre elas, as que desoneram totalmente dos impostos federais sobre produtos e serviços fertilizantes, agrotóxicos, sementes e mudas e alimentos da cesta básica, além das que beneficiam as cadeias de exportação de carne, soja e laranja. Hoje isso parece um paradoxo, dada a hostilidade da bancada ruralista no Congresso ao governo Lula.

Modelo consumiu o Cerrado e a Amazônia 

Enquanto multinacionais do agro se beneficiam de isenções de impostos no Brasil e pagam dividendos a seus acionistas, suas atividades impactam diretamente as Florestas brasileiras e, em consequência, o clima do planeta. A redução de incentivos públicos para atividades poluidoras e que destroem a Natureza é um dos compromissos dos países da Convenção da Biodiversidade das Nações Unidas, incluindo o Brasil. Diminuir a emissão de gases de efeito estufa é a meta principal da Convenção do Clima, e a COP30, de Belém, em novembro, discutirá como acelerar essa redução. Ou seja, os benefícios vão na contramão do que o Brasil precisa fazer para ajudar a conter a crise do clima.

Hoje, a agropecuária é responsável, no Brasil, por 28% das emissões de gases que provocam o aumento da temperatura da Terra. Isso ocorre principalmente por causa do metano emitido pelos Bois quando fazem a digestão, mas, também, pelo uso de fertilizantes sintéticos que emitem nitrogênio. Entre os cinco países que lideram a produção agrícola no mundo – Brasil, China, Estados Unidos, Índia e Rússia –, o Brasil é o que usa a maior quantidade de agrotóxicos por hectare plantado, ou 12,6 quilos, de acordo com a Organização da ONU para a Alimentação e Agricultura, a FAO.

Além disso, segundo o MapBiomas, que monitora a cobertura vegetal do território brasileiro, a agropecuária, e principalmente a abertura de pastos, é o principal vetor do desmatamento, que responde por 46% das emissões de gases de efeito estufa do país. Um estudo do MapBiomas mostra que a área ocupada pela agropecuária aumentou 50% entre 1985 e 2022, chegando a 282,5 milhões de hectares, ou um terço do território brasileiro. Dessa área total, 58%, ou 164,3 milhões de hectares, são pastos, que aumentaram principalmente na Amazônia. No período de 37 anos analisado, quase dois terços do desmatamento abriu espaço para a criação de Bois, enquanto 10% da vegetação nativa posta abaixo deu lugar a plantações. O Brasil tem hoje 238,6 milhões de Bois, mais do que sua população de pessoas.

Em 2024, um estudo feito pela consultoria Agroicone para o Ministério da Agricultura e Pecuária estimou que a área de pastagens já havia atingido 179 milhões de hectares. Deles, 107,6 milhões de hectares estão degradados ou em processo de degradação, o que diminui a eficiência da criação de animais e aumenta as emissões de gases de efeito estufa. No campo, a lógica de abertura de novas áreas, por meio da derrubada e da queima de árvores, quando o solo se esgota, ainda está longe de ser superada.

SYNGENTA, CORTEVA, BAYER E BASF DOMINAM 70% DO MERCADO GLOBAL DE AGROTÓXICOS E ESTÃO ENTRE AS MAIS BENEFICIADAS POR ISENÇÕES FEDERAIS. FOTO: SEBASTIEN BOZON/AFP

SUMAÚMA perguntou à Frente Parlamentar da Agropecuária – a bancada mais poderosa do Congresso, com 303 dos 513 deputados e 50 dos 81 senadores – se ela defendia a redução das isenções  tributárias para o setor ou pelo menos uma aplicação mais criteriosa delas. Em sua resposta, a FPA disse que são “evidentes” os resultados dos incentivos à agropecuária: “O Brasil saiu da condição de importador de alimentos para se tornar um dos maiores produtores e exportadores do mundo. Essa conquista só foi possível graças a uma política consistente de incentivo à produção nacional, que envolve redução de custos, pesquisa, tecnologia e estímulo à competitividade”.

André Guimarães, diretor-executivo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, o Ipam, concorda em parte com esse raciocínio. “Há 60 anos, o Brasil importava quase tudo e tinha um sério problema em sua balança comercial. Foram criados vários grupos no governo para a substituição de importações, incluindo as de alimentos. Daí nasceram a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), o Plano Safra, os incentivos fiscais mais diversos para as empresas do agro. Teve também infraestrutura, portos, estradas. Nós como sociedade fizemos um esforço brutal. Se olharmos friamente, essa estratégia deu certo porque hoje estamos entre os maiores produtores e exportadores das commodities agrícolas mais transacionadas do mundo”, diz Guimarães.

O grande senão, continua o diretor do Ipam, é que esse modelo voltado para a exportação “levou [embora] 50% do Cerrado e 20% da Amazônia, em números arredondados”. Por isso, ele “não tem como perdurar. A gente não consegue, até por uma questão lógica. Noventa por cento da nossa agricultura não é irrigada. E esses ciclos naturais de chuvas, que conferem à nossa agricultura uma grande vantagem comparativa, dependem de vegetação nativa. As ferramentas que temos não estão preparadas para um mundo em aquecimento. Então a gente tem, na realidade, o desafio de redirecionar esses incentivos fiscais”, enfatiza Guimarães.

A Frente Parlamentar da Agropecuária disse ainda defender “que toda política pública – inclusive os benefícios fiscais – seja acompanhada de critérios claros, objetivos e com avaliação de resultados”. E exemplificou: “Isso vale para o agro, mas também para programas como o BPC, o Bolsa Família, a Zona Franca de Manaus, entre outros”. O BPC é o Benefício de Prestação Continuada, pago a brasileiros acima de 65 anos que não contribuíram para a Previdência, a maioria trabalhadores mais pobres e que não tiveram carteira de trabalho assinada, e a pessoas de qualquer idade com doença que as impede de trabalhar ou estudar.

A bancada do agro tem liderado o arquivamento e a derrubada de propostas do governo para cortar benefícios tributários e aumentar impostos dos mais ricos e das aplicações financeiras.

SUMAÚMA também pediu comentários ao Ministério da Agricultura e Pecuária, comandado por Carlos Fávaro, do PSD, mas a pasta não respondeu.

A FRENTE PARLAMENTAR DA AGROPECUÁRIA AFIRMA QUE ISENÇÕES BENEFICIAM QUEM COMPRA ALIMENTOS, MAS OS PREÇOS DE VÁRIOS DELES SUBIRAM EM 2024.

Mais isenções do que Imposto de Renda

SUMAÚMA procurou nos balanços das dez empresas do agro que mais receberam isenções de tributos o valor do Imposto de Renda que elas pagaram no ano passado, mas a maioria delas não publica balanços específicos para o Brasil. A ideia era avaliar o quanto elas contribuem para o orçamento do país de cuja infraestrutura e mercado de consumo se beneficiam. Ao analisar os balanços globais, foi possível verificar que pelo menos cinco pagaram menos Imposto de Renda no mundo inteiro do que receberam de isenções no Brasil. Elas são a JBS, a Bunge, a Bayer – dona também da Monsanto –, a Yara e a Syngenta.

Nem todas as dez companhias, porém, divulgam balanços com informações sobre pagamento de impostos. As que fazem isso são aquelas que têm ações negociadas em bolsas de valores ou que atendem às exigências de transparência do seu país de origem.

A brasileira Fertipar, uma empresa familiar, não publica balanços financeiros. A estadunidense Cargill também é uma empresa familiar e não divulga quanto paga de impostos globalmente. A companhia publica balanços anuais de suas atividades no Brasil e declarou ter tido prejuízo em 2024 – ou seja, não pagou Imposto de Renda no país.

A Bayer e a Yara divulgaram informações sobre impostos pagos especificamente no Brasil em 2024. A Yara não pagou Imposto de Renda aqui porque contabilizou prejuízo no país no ano passado. A empresa norueguesa informou a SUMAÚMA que pagou 520 milhões de reais em outros impostos no Brasil. Ela pagou Imposto de Renda sobretudo em países ricos, como o Canadá, os Estados Unidos e a própria Noruega. Já a Bayer, que atua também na produção de remédios e outros produtos químicos além dos agrotóxicos, publica balanços anuais para o Brasil. Em 2024, ela pagou no país 283,7 milhões de reais em Imposto de Renda e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – no Brasil, este último tributo sobre o lucro das empresas é destinado ao financiamento da Seguridade Social, que inclui a Previdência e a saúde pública. No mesmo ano, ela deixou de pagar 2,11 bilhões de reais em impostos federais.

A pesquisadora Livi Gerbase atua no Centro Internacional de Transparência e Pesquisa em Fiscalidade Corporativa, o Cictar, organização não governamental que investiga os impostos pagos por grandes corporações globais. Ela examinou os números das empresas a pedido de SUMAÚMA. “Esses dados são preocupantes porque refletem a injustiça do sistema tributário contemporâneo”, diz Gerbase. Ressalta que várias das multinacionais de agrotóxicos e fertilizantes que atuam no Brasil declararam entre 2020 e 2024 lucros baixos ou prejuízo. Como o Imposto de Renda é calculado sobre o lucro, ele acaba sendo proporcionalmente pequeno. No entanto, os lucros baixos contrastam com o volume bem maior de dividendos que essas empresas declararam ter distribuído no mesmo período – o dividendo é a parcela do lucro que remunera os acionistas. Ou seja, existe uma aparente incoerência nas contas das empresas.

Livi Gerbase critica o fato de que nem todas as multinacionais do agro que têm o Brasil entre seus principais mercados publicam balanços financeiros de suas atividades no país. “Apesar de receberem bilhões em incentivos fiscais federais, não sabemos quanto pagam de impostos no Brasil, sua lucratividade e faturamento, seus investimentos no país ou o número de trabalhadores”, afirma. “Precisamos que essas multinacionais contribuam para o Brasil por meio do pagamento de seus impostos”, completa Gerbase.

Além das dez mais, ao menos outras oito companhias usufruíram em 2024 de isenções de impostos acima de 1 bilhão de reais: a Louis Dreyfus (fertilizantes e óleos vegetais), sediada na Holanda; a brasileira La Santé Torrefação de Café; a suíça Nestlé; a cooperativa agroindustrial Coamo, sediada no Paraná; a indiana UPL (agrotóxicos); a americana Archer Daniels Midland, a ADM (óleos vegetais, soja, fertilizantes); a brasileira Marfrig (carnes); e a Eurochem (fertilizantes), com sede na Suíça, dona, entre outras, da Fertilizantes Heringer e da Fertilizantes Tocantins. A Marfrig é a maior acionista da BRF – dona das marcas Sadia, Perdigão e Qualy, entre outras. A BRF, por sua vez, recebeu no ano passado 950 milhões de reais em isenções. Neste ano, as duas empresas anunciaram sua fusão.

Ao lado das companhias cujos dados sobre as isenções são públicos, divulgados pela Receita Federal, existe uma empresa, produtora de fertilizantes, cujo nome está sob “restrição judicial”. Ela deixou de pagar 2,74 bilhões de reais em impostos em 2024, o que a colocaria em terceiro lugar na lista das mais beneficiadas.

SUMAÚMA procurou as companhias do agronegócio que estão entre as dez que mais tiveram isenções de impostos federais. A JBS não se pronunciou. A Fertipar disse que não iria comentar as isenções. A OCP não respondeu à mensagem enviada por meio do seu site. Sete companhias se pronunciaram, afirmando que somente usam benefícios tributários previstos na legislação brasileira, que eles são importantes para a competitividade da agricultura e que contribuem para baixar o preço dos alimentos. Algumas, como a Yara, a Basf e a Cargill, enviaram respostas mais abrangentes, afirmando que investem em inovação e na ampliação da produção dentro do país (as respostas mais detalhadas estão no fim desta página).

De fato, todos os benefícios de que as empresas usufruem estão previstos em leis, embora sejam frequentes as divergências com a Receita Federal sobre o total de impostos pagos ou sobre remessas de dinheiro para empresas do mesmo grupo no exterior – há registros dessas disputas, por exemplo, nos balanços de 2024 da JBS e da Syngenta.

Um universo de privilégios

Até 2021, era impossível saber que empresas eram beneficiadas por isenções de impostos no Brasil, porque essa informação era mantida sob sigilo. Naquele ano, motivado pelo ânimo de regular os benefícios dados a entidades filantrópicas e sem fim lucrativo, o Congresso derrubou esse segredo. Só no governo Lula, no entanto, a Receita passou a divulgar publicamente os dados sobre isenções por empresa.

Os números de 2024 relativos às empresas do agro citados nesta reportagem foram declarados por elas próprias e constam da Declaração de Incentivos, Renúncias, Benefícios e Imunidades de Natureza Tributária, a Dirbi – guarde esta sigla. Essa declaração foi instituída pelo Ministério da Fazenda em 2024 e cobre 88 benefícios fiscais, 34 deles ligados diretamente à agropecuária e à agroindústria. A Confederação Nacional da Indústria foi ao Supremo Tribunal Federal pedir o fim da obrigatoriedade dessa declaração, mas a ação ainda não foi julgada.

O valor apurado na Dirbi não representa tudo o que o governo deixa de arrecadar em impostos, já que a autodeclaração não inclui todos os benefícios tributários. Ela não é obrigatória, por exemplo, para as empresas inscritas no Simples, regime que representa, individualmente, a maior renúncia fiscal federal, com 120 bilhões de reais estimados para 2025. O Simples está entre os benefícios que a Associação Nacional dos Auditores da Receita Federal do Brasil, a Unafisco, classifica como um “privilégio parcial”. Isso porque o programa, criado para micros e pequenas empresas, hoje admite um teto alto de faturamento – as vendas totais de uma empresa antes do abatimento de impostos e outras despesas – que chega a 4,8 milhões de reais por ano. “Esse teto não tem equivalente no resto do mundo. Tem grandes empresas no Simples, até mineradoras”, diz Mauro Silva, o presidente da Unafisco.

Ainda assim, a Dirbi fornece uma amostra significativa do que o governo federal deixa de arrecadar, principalmente no que se refere ao agronegócio. Os benefícios que constam da autodeclaração são classificados tecnicamente como “gastos tributários” – isto significa que o buraco que eles abrem nas contas públicas é bancado por todos os cidadãos, seja por meio do pagamento de Imposto de Renda, descontado diretamente dos salários, seja nos tributos sobre produtos e serviços que são pagos indiretamente, como os que incidem na conta de luz ou na compra de um bem. Ou, até, nos serviços públicos que a população deixa de receber por falta de dinheiro suficiente nos cofres públicos.

A autodeclaração feita na Dirbi demonstrou que a estimativa de gastos tributários feita oficialmente pela Receita Federal está subdimensionada, pelo menos no caso do agro. Essa estimativa é enviada todo ano ao Congresso para a aprovação do orçamento do ano seguinte. Em 2024, o governo estimou que as isenções fiscais para o setor agropecuário somariam 87,7 bilhões de reais, ou seja, 55% dos 158,17 bilhões declarados na Dirbi. A estimativa da Receita, por exemplo, foi de que as isenções para “defensivos agropecuários”, os agrotóxicos, somariam 6,85 bilhões de reais, mas essa indústria deixou de pagar 22,42 bilhões de reais em impostos.

Além disso, a estimativa da Receita de gastos tributários com o agro inclui as isenções que o setor tem por meio da Zona Franca de Manaus, da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia, a Sudam, e da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste, a Sudene. Essas isenções, que também beneficiam empresas de outros setores, como as indústrias de automóveis e eletrodomésticos, não entraram no cálculo feito por SUMAÚMA para chegar aos 158,17 bilhões de reais a partir da Dirbi. Em 2024, a Receita previu que esses três regimes de benefícios – Zona Franca, Sudam e Sudene – somariam 8,4 bilhões de reais em impostos não pagos pelo agro. Outra renúncia fiscal que aparece apenas nos cálculos da Receita decorre da não cobrança de contribuição previdenciária sobre a receita das exportações rurais. Em 2024, essa desoneração representou um valor não arrecadado de 20,4 bilhões de reais – número que passa a 22,8 bilhões de reais nas estimativas para 2025.

Outro número que não entra na autodeclaração feita pelas empresas na Dirbi é o da isenção de pagamento do Imposto de Renda para quem aplica dinheiro na Letra de Crédito Agrícola, a LCA, um título de investimento que é usado para financiar o crédito rural. Em 2025, a Receita estimou que deixará de arrecadar 16,8 bilhões ao não cobrar o Imposto de Renda sobre os rendimentos da LCA e também da Letra de Crédito Imobiliário, esta usada para financiar as empresas de construção civil. A Receita não desmembra o gasto tributário específico com cada um desses títulos.

No início de junho, quando o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou que as LCA e LCI passariam a pagar 5% de Imposto de Renda, a Frente Parlamentar da Agropecuária foi uma das 19 bancadas ligadas a diferentes setores empresariais que reagiram com fúria: “Não podemos continuar a ser a fonte inesgotável para cobrir a ineficiência e o gigantismo do Estado”, disseram, colocando-se no papel de vítimas.

Todos esses números, finalmente, mostram que o valor total que as empresas do agro deixam de pagar em impostos é muito maior do que a Dirbi deixa entrever. E, portanto, muito maior do que os 158,17 bilhões de reais de 2024.

Cesta básica para exportação

Um dos argumentos frequentes das empresas do agronegócio é que grande parte das isenções de impostos dadas ao setor visa reduzir o preço dos alimentos para o consumidor. Isso se aplica especialmente a alimentos da cesta básica, como carnes, farinhas, queijo, leite e óleos vegetais, cujas vendas dentro do Brasil e as importações são dispensadas de pagar dois impostos federais sobre produtos e serviços – o PIS, sigla de Programa de Integração Social, que financia programas como o seguro-desemprego, e a Cofins, que financia a Seguridade Social. De fato, a desoneração da cesta básica corresponde a cerca de metade do gasto tributário com a agropecuária previsto na lei orçamentária – sendo que o cálculo feito pela Receita inclui no item “cesta básica” não apenas alimentos, mas vários insumos da cadeia de produção do setor, tais como fertilizantes, sementes e mudas e vacinas veterinárias. Pela Dirbi, somando apenas as isenções dadas para 19 alimentos e para o papel higiênico (que beneficiam principalmente indústrias da silvicultura), elas correspondem a 81,12 bilhões, ou seja, 51% dos 158,17 bilhões.

A Frente Parlamentar para a Agropecuária ressaltou esse dado. “É importante esclarecer que muitos dos benefícios associados ao setor agropecuário não são privilégios concedidos a produtores ou grandes empresas, mas sim políticas públicas voltadas à segurança alimentar e à estabilidade econômica”, disse a bancada em sua resposta a SUMAÚMA. “Um bom exemplo é a tributação reduzida sobre alimentos da cesta básica. Esse benefício não está direcionado ao produtor, mas ao consumidor”, continuou. A Bunge e a Cargill, embora também recebam benefícios concedidos para a exportação da soja, usaram o mesmo argumento. “Sendo a Bunge uma das maiores fabricantes de óleo de soja e farinha de trigo do país, a maior parte do valor mencionado corresponde à desoneração desses produtos da cesta básica, em que o desconto do tributo é repassado para o produto final para benefício do consumidor. Portanto, não há benefício tributário direto para a companhia”, disse a primeira.

INSTALAÇÃO DA BUNGE NA BAHIA, ESTADO ONDE ÁREAS DO CERRADO TÊM SIDO DEVASTADAS PELO AUMENTO DE MONOCULTURAS VOLTADAS À EXPORTAÇÃO

A Frente Parlamentar da Agropecuária enviou um estudo de 2020 da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE, o chamado “clube dos países ricos”, sobre a tributação das atividades agrícolas. Em 35 países analisados, oito isentam ao menos parte dos alimentos do imposto sobre produtos e serviços – como faz o governo federal no Brasil – e 22 aplicam alíquotas reduzidas. Segundo diz o estudo, “preços reduzidos dos produtos agrícolas podem ser benéficos para os agricultores por meio do aumento da demanda, mas os consumidores são os principais beneficiários e o alvo dessa política”.

O problema é que, pelo menos no caso brasileiro, não há nenhum controle de que proporção dessa vantagem dada às empresas é repassada aos preços dos produtos vendidos às pessoas que estão na ponta da cadeia. Entre especialistas com quem SUMAÚMA conversou, existe a avaliação de que o aumento de impostos sobre alimentos é imediatamente repassado ao cidadão, mas o mesmo não se dá no caso da diminuição dos tributos, especialmente dos produtos que são muito presentes no comércio internacional, como soja, trigo e café. A isenção seria mais efetiva para alimentos cujo cultivo é voltado para o comércio local, como frutas, legumes e verduras.

O que se verifica por meio da Dirbi é que as multinacionais do agro, ao lado das grandes redes de supermercados, lucram muito com a não cobrança de impostos sobre alimentos. Segundo a Dirbi, com base na isenção de 19 itens, as companhias mais desoneradas são a JBS, a Sendas, o Atacadão (do grupo Carrefour), a Seara, que é parte do grupo JBS, a La Santé Torrefação de Café e a Bunge Alimentos.

Em 2024, quando as empresas deixaram de pagar 27,58 bilhões de reais em impostos sobre o comércio de carnes no Brasil, o preço desse alimento para o consumidor teve um aumento de 20,84%, sendo um dos “vilões” da inflação. A mesma coisa aconteceu com o café. A isenção de impostos do café somou 8,72 bilhões de reais, mas o preço do café moído aumentou 39,06%. No caso dos dois produtos, isso aconteceu porque, com o real desvalorizado em relação ao dólar, valeu mais a pena, para as empresas, exportar do que vender dentro do país – e assim receber na moeda estadunidense. A exportação de carne cresceu 11,4%, e a do café, impressionantes 52,6%.

Numa entrevista ao portal O Joio e o Trigo, o economista José Giacomo Baccarin, professor da Universidade Estadual Paulista, a Unesp, observou que o preço dos alimentos no Brasil vem aumentando acima da média da inflação desde 2007. Segundo Baccarin, que é um dos fundadores do Instituto Fome Zero, como a produção agrícola brasileira se tornou estruturalmente voltada para a exportação, os preços internos são influenciados diretamente pelos do mercado internacional. Isso afeta inclusive as lavouras dirigidas ao mercado interno. “Se sobe, por exemplo, o preço da soja, o pessoal vai aumentar o plantio de soja. Vai pegar sua terra, seu capital, e usar mais na soja. Pode tirar investimento do feijão. Ou seja, sobe o preço da soja, diminuem o investimento e a produção do feijão, e o preço do feijão também aumenta”, explicou ele.

No Brasil, a área de cultivo de soja aumentou dez vezes entre 1985 e 2023, passando de 4,4 milhões para 40 milhões de hectares, de acordo com o MapBiomas. Enquanto isso, a área das lavouras do feijão e do arroz diminuiu entre 2006 e 2022, segundo informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE.

A Unafisco, a associação dos auditores fiscais da Receita, mantém um site chamado Privilegiômetro tributário. No site e num relatório anual, aponta os gastos tributários que considera privilégios, definidos como aqueles concedidos “sem que exista contrapartida adequada, notória ou comprovada por estudos técnicos, para o desenvolvimento econômico sustentável sem aumento da concentração de renda ou diminuição das desigualdades” no país.

A Unafisco considera as isenções de impostos para os produtos da cesta básica um “privilégio parcial”. Essa classificação se dá porque, quando se refletem em preços menores dos alimentos, elas beneficiam toda a população, e não apenas as famílias de menor renda. É a mesma conclusão de uma avaliação publicada em 2023 pelo Ministério do Planejamento e Orçamento. Esse estudo estima que a ausência de impostos federais para 23 alimentos reduz seus preços em 5% em média. No entanto, o gasto tributário que isso representa acaba “direcionado aos grupos de maior renda”, pela razão óbvia de que as famílias que têm mais dinheiro compram mais comida. “Então uma política que reduz preços para todos termina beneficiando também aqueles que não precisariam desse incentivo”, diz o resumo do estudo.

Para Mauro Silva, o presidente da Unafisco, o ideal seria que as famílias inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais tivessem direito a uma devolução dos impostos aplicados tanto a alimentos quanto a medicamentos, que em alguns casos também recebem isenções.

Essa devolução, conhecida como cashback, está prevista na reforma tributária, aprovada no fim de 2023 e regulamentada no ano passado. A reforma, que só entrará em vigor em 2027 e terá um período de transição até 2032, acaba com três impostos federais, um estadual e um municipal e cria um único Imposto sobre o Valor Agregado das mercadorias e serviços, com uma parte da arrecadação indo para o governo federal e uma parte para estados e municípios.

Apesar da previsão do cashback, a Frente Parlamentar da Agropecuária teve sucesso em incluir as carnes, vários tipos de queijo e a farinha de trigo entre os produtos da cesta básica que ficarão totalmente isentos de pagar o novo imposto único. A isenção para esses produtos vai até aumentar, porque até agora eles ainda pagam o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços, o ICMS, cobrado pelos estados, que vai acabar. No projeto originalmente enviado pelo governo, esses alimentos teriam a alíquota do Imposto sobre Valor Agregado reduzida em 60%, e os mais pobres poderiam receber a devolução do imposto pago quando os comprassem. Sua inclusão na isenção total, sobretudo no caso das carnes, levou a uma estimativa de aumento do tributo único, que todos os cidadãos pagarão na compra de produtos.

Sem cobrança de contrapartidas

A falta de controle e revisão da eficácia das isenções tributárias é um problema generalizado, que não se aplica apenas ao agronegócio. Esse controle é ainda mais difícil porque, quando as isenções são criadas, por proposta do governo ou do Congresso, elas raramente especificam “objetivos, indicadores e metas”, como enfatiza o “Relatório Nacional sobre Gastos Tributários” elaborado por pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas e divulgado em novembro de 2024. Ou seja, não são exigidas contrapartidas como investimentos ou a criação de postos de trabalho.

“A falta de avaliações e revisões dos incentivos os torna privilégios, que sugam os recursos das políticas públicas brasileiras”, diz Livi Gerbase, do Centro Internacional de Transparência e Pesquisa em Fiscalidade Corporativa. “O benefício tributário é ruim? Não, ele é ruim se você não controlar, se você não associar ao que interessa ao país. É o que vem acontecendo”, ressalta Mauro Silva, da Unafisco.

O Instituto Escolhas, um centro de estudos não governamental, tem pesquisas que demonstram o direcionamento das subvenções oficiais à agropecuária para os setores exportadores já consolidados. Um deles, que analisou os anos entre 2008 e 2017, mostrou que as isenções na cadeia da carne bovina compensaram, naquele período, 79% do que as empresas do setor pagaram em impostos.

O diretor-executivo do Escolhas, Sérgio Leitão, ressalta a dificuldade de rever os benefícios fiscais depois que eles são concedidos. “Aqui no Brasil, depois que você concede um apoio, ele é visto como uma coisa que pertence a quem recebe, como se fosse um filho que nunca sai de casa”, diz ele. “E o país vai carregando o peso dessas ineficiências.”

Outro exemplo, que vai além do agronegócio mas também diminui os impostos pagos por algumas companhias do setor, é a desoneração da folha de pagamentos. Esse benefício foi concedido em 2011, no governo Dilma. Ele reduz a contribuição para a Previdência Social das empresas – o que, além de tudo, contribui para minar as contas do sistema público de aposentadorias. Em 2023, o governo Lula tentou derrubar essa desoneração, mas o Congresso a prorrogou até 2027. No ano passado, ela representou 19,09 bilhões de reais em gastos tributários, segundo o que foi declarado na Dirbi, e as empresas mais beneficiadas foram a BRF, a Seara, do grupo JBS, e a Globo Comunicações.

FÁBRICA DA JBS EM ALTA FLORESTA, MATO GROSSO. A EMPRESA LIDERA O RANKING DE IMPOSTOS FEDERAIS NÃO PAGOS POR MULTINACIONAIS DO AGRO. FOTO: CARL DE SOUZA/AFP

As quatro grandes dos agrotóxicos

O mesmo estudo da OCDE, o “clube dos países ricos”, que analisou a desoneração de alimentos em 35 países também verificou como se dá a tributação dos agrotóxicos e dos fertilizantes. Nesse caso, o estudo se restringiu às 27 nações da União Europeia e ao Reino Unido. Desse conjunto de 28 países, 13 reduzem o imposto cobrado de fertilizantes e oito, dos agrotóxicos. Em alguns casos, como na França, há reduções seletivas, beneficiando produtos de origem biológica ou que são considerados menos tóxicos. Dinamarca, Suécia e Noruega (que não é da União Europeia e está fora do grupo de 28 países) aplicam taxas ambientais sobre o consumo de pesticidas. Na Alemanha, a alíquota do imposto é reduzida para uma parte dos fertilizantes.

A cobrança de impostos nunca é zerada, como no caso do Brasil. Aqui, essa desoneração representou, em 2024, uma renúncia de arrecadação federal de 29,27 bilhões de reais para adubos e fertilizantes e de 22,42 bilhões para agrotóxicos.

Atualmente, está em julgamento no Supremo Tribunal Federal uma ação direta de inconstitucionalidade movida pelo PSOL que questiona duas isenções dadas aos agrotóxicos – a redução de 60% do ICMS cobrado pelos estados, um benefício que vigora desde 1997, e a não cobrança do Imposto sobre Produtos Industrializados, o IPI, um tributo federal. A existência desses benefícios significa que as isenções para os pesticidas são muito mais volumosas do que as que constam da Dirbi, que só inclui a não cobrança do PIS e da Cofins.

Os autores da ação argumentam que os danos provocados pela isenção de impostos são maiores do que os benefícios, já que ela estimula o uso dos agrotóxicos, com custos para a saúde e o meio ambiente.

Numa audiência pública convocada em novembro de 2024 pelo relator da ação, o ministro Edson Fachin, o Ministério da Agricultura e Pecuária defendeu a manutenção dos benefícios, enquanto os ministérios do Meio Ambiente e Mudança do Clima e do Trabalho e Emprego se posicionaram em sentido contrário. O representante da pasta de Marina Silva, Adalberto Maluf, disse que, a cada dólar que é gasto no país com pesticidas, é preciso 1,28 dólar (10,08 reais) para tratar das intoxicações provocadas por eles. O representante da pasta da Agricultura, Silvio Farnese, argumentou que os agrotóxicos representam 35% do custo das lavouras e que o fim da isenção provocaria aumento de preços para o consumidor.

O advogado Emiliano Maldonado é professor de direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e integra a Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida, da qual fazem parte organizações de saúde, de alimentação e ambientais, além de sindicatos urbanos e rurais. Ele pondera que os cultivos que usam mais agrotóxicos são os destinados à exportação. De fato, de acordo com a Embrapa, o maior consumo de pesticidas se dá nas plantações de soja (32,6%), milho (11,8%), cítricos, como a laranja (9,8%), e cana-de-açúcar (7,6%). “São culturas que não necessariamente vão refletir diretamente na nossa cesta básica”, diz o professor.

Maldonado lembrou um estudo recente do Instituto Escolhas, divulgado primeiro pela Folha de S.Paulo, que mostra que a cultura da soja no Brasil está consumindo cada vez mais agrotóxicos e fertilizantes como proporção das sacas colhidas. Ou seja, são usados mais pesticidas e adubos para produzir um volume menor da leguminosa.

No julgamento no STF, o ministro Fachin, o relator, se posicionou pela inconstitucionalidade da isenção aos agrotóxicos. No entanto, a maioria dos demais ministros que já se pronunciaram, incluindo Gilmar Mendes, apoiou o argumento do agro sobre o suposto risco inflacionário que o fim da isenção provocaria. Fachin ainda tem que pautar a retomada da votação no plenário do Supremo.

O agrônomo Gerson Teixeira presidiu a Associação Brasileira de Reforma Agrária e foi coordenador do Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas para a Agricultura da Fundação Perseu Abramo, do PT. Ele lembra que, em 2024, foi aprovada uma Lei de Bioinsumos, que visa estimular a substituição de agrotóxicos e fertilizantes químicos por produtos de origem biológica, que causem menos danos ao ambiente e às pessoas. A lei inclui a produção de bioinsumos nas fazendas para consumo próprio, e não para comercialização. “Ela permite o desenvolvimento de um setor industrial menos oligopolizado”, diz Teixeira.

Hoje, quatro corporações multinacionais – justamente Syngenta, Bayer, Corteva e Basf – controlam 70% do mercado mundial de pesticidas e 60% do mercado de sementes, de acordo com um relatório de 2022 da Fundação Heinrich Boll, do Partido Verde alemão.

UMA AÇÃO NO STF QUE CONTESTA A ISENÇÃO DE IMPOSTOS PARA OS AGROTÓXICOS PROVOCA DIVERGÊNCIAS NO MINISTÉRIO DE LULA. FOTO: Sir Velpertex di Crantx/WIKIMEDIA COMMONS

O ideal, segundo Gerson Teixeira, é fazer a transferência progressiva dos recursos públicos que hoje vão para os agrotóxicos “para essa indústria florescente e que tem potencial”. Ele explica: “Seria para incentivar uma nova modernização na agricultura, livre dos químicos ou pelo menos não tão intensiva nos químicos, e mais compatível com os desafios da crise climática”. Na prática, porém, isso não está acontecendo, ressalta o agrônomo, que afirma que a grande indústria agroquímica tenta também “se apropriar desse nicho” dos bioinsumos.

No final de junho de 2025, o governo Lula lançou um Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos, o Pronara, que vinha sendo discutido desde 2014. Segundo pessoas que acompanharam o debate, a demora se deu por causa de divergências internas no governo e da pressão das empresas do setor.

Na reforma tributária, as organizações que integram a Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida pediram que os pesticidas fossem incluídos no Imposto Seletivo, ou “imposto do pecado”, que pagarão uma alíquota do Imposto sobre Valor Agregado maior do que a padrão. Mas, no final, eles se beneficiarão da alíquota que reduz o tributo em 60%, assim como os fertilizantes. Com isso, os agroquímicos terão o mesmo benefício dos bioinsumos.

A associação CropLife, que representa a maior parte das empresas do setor de agrotóxicos, entrou em contato com SUMAÚMA depois que algumas de suas associadas foram contatadas pela reportagem. Mandou um posicionamento em que afirma que “a manutenção dos incentivos vigentes garante previsibilidade e segurança jurídica, evitando mudanças abruptas que podem desorganizar cadeias produtivas inteiras, levar ao aumento de custo de produção e impacto direto na inflação”.

Emiliano Maldonado se contrapõe a essa alegação: “O relevante de ser ressaltado é que sempre se discute a falta de verbas para viabilizar políticas públicas essenciais. Quando há cortes no orçamento, eles são direcionados para políticas que garantem direitos sociais. Nunca se pensa em reduzir os benefícios do agronegócio, e em especial das empresas de produção e comercialização de agrotóxicos”, argumenta.

O incrível caso da soja

A cadeia das renúncias tributárias que beneficiam especificamente a agropecuária voltada para a exportação fica clara num estudo sobre a soja publicado em 2023 por cinco organizações, incluindo o Instituto Democracia e Sustentabilidade e a ACT Promoção de Saúde. O levantamento concluiu que o setor sojeiro deixou de pagar 56,8 bilhões de reais em impostos em 2022, o que representou 14% de seu faturamento, ou seja, de tudo o que ele vendeu.

Para chegar a esse número, o estudo somou as isenções do PIS, da Cofins e do Imposto sobre Produtos Industrializados dadas aos insumos para o plantio da soja, incluindo sementes, fertilizantes e agrotóxicos (18,6 bilhões de reais); as isenções do PIS e da Cofins para a industrialização da soja, com a produção de óleo, farelo e biodiesel (9,9 bilhões de reais); e as isenções do PIS e da Cofins para a exportação de soja, óleo e farelo (28,2 bilhões de reais).

O levantamento ainda levou em conta 2,8 milhões de reais que a indústria da soja abateu em seus impostos devido a um mecanismo chamado “crédito presumido”. Por esse mecanismo, outra fonte frequente de embates entre empresas e a Receita Federal, quando a agroindústria vende ou exporta um produto beneficiado a partir de matérias-primas agrícolas ela pode abater de tributos que tem a pagar o valor dos impostos embutidos nos preços de insumos comprados pelos seus fornecedores – isto é, os agricultores ou pecuaristas.

O estudo do Instituto Democracia e Sustentabilidade sobre a soja considerou apenas a isenção de impostos federais. Como é a regra na maioria dos países, o governo federal não cobra tributos sobre produtos exportados, o que inclui o IPI, o PIS e a Cofins. Porém, desde 1996, quando foi aprovada a chamada Lei Kandir, as exportações não pagam também o ICMS, que é cobrado pelos estados. No entanto, se uma carga de tomate, por exemplo, atravessa uma fronteira estadual, ela pode ter que pagar imposto.

“A megaescala de produção é o fator que viabiliza economicamente o agronegócio”, enfatiza o agrônomo Gerson Teixeira. “E isso tem um custo ‘oculto’, entre aspas, ambiental e social. A contrapartida dessas subvenções é a falta de recursos para setores que realmente poderiam contribuir para a gente caminhar para um outro modelo de agricultura.”

O que dizem as empresas

Algumas das dez empresas do agronegócio que mais se beneficiam de isenções tributárias enviaram respostas mais detalhadas aos pedidos de comentários feitos por SUMAÚMA.

A Yara, produtora de fertilizantes, afirmou que a ausência de lucros em suas operações no Brasil na maior parte dos anos recentes – e portanto do não pagamento de Imposto de Renda no país em 2024 – se deve a um contexto “desafiador”. Citou, entre outros eventos, a epidemia da covid-19, a guerra da Rússia contra a Ucrânia e a queda dos preços internacionais dos grãos, que gerou “níveis históricos de inadimplência” dos seus clientes. 

A empresa norueguesa afirmou que, nos últimos 15 anos, investiu mais de 15 bilhões de reais no Brasil, a fim “de incrementar a produção nacional de fertilizantes e seus insumos” – hoje, grande parte dos fertilizantes químicos usados no país é importada. A Yara defendeu as isenções tributárias para o setor: “O fertilizante é o insumo que isoladamente mais contribui para a alta produtividade do agronegócio brasileiro, setor propulsor da economia nacional”, disse. A companhia afirmou ainda que os fertilizantes biológicos – cuja utilização uma lei aprovada no ano passado pretende estimular – “são uma alternativa importante para suportar a nutrição de solos e culturas, mas não têm característica de substituir os insumos atualmente utilizados”. 

A Basf mencionou que “está no Brasil há mais de 110 anos e emprega mais de 4,4 mil pessoas no país”. Disse que “atua com total transparência, prestando informações às autoridades fiscais sobre sua carga tributária”. Afirmou ainda que os benefícios fiscais para o setor de agrotóxicos “impactam toda a cadeia de produção, até chegar ao consumidor final, e assim trazem equilíbrio econômico para o país”. A companhia alemã argumentou ainda que, “sem considerar os demais impostos aplicáveis” a ela, não seria “possível avaliar com precisão técnica qualquer proporção ou desproporção” entre o Imposto de Renda pago pela Basf globalmente, os dividendos distribuídos a seus acionistas e os benefícios fiscais de que usufrui no Brasil.

A também alemã Bayer afirmou que as isenções fiscais no Brasil “fomentam investimentos em pesquisa, desenvolvimento, geração de empregos e desoneração da cadeia de produção de alimentos”.  

A Syngenta disse que seus produtos “desempenham papel essencial na ampliação da produção de alimentos com qualidade, segurança e sustentabilidade, contribuindo diretamente para a segurança alimentar”. A empresa sediada na Suíça, mas controlada pelo governo chinês, informou que passará a divulgar, em seus balanços globais, dados específicos sobre seus resultados no Brasil, que “se consolidou como uma região independente na estrutura global da Syngenta”.

A Cargill disse que os incentivos fiscais e outros programas de financiamento ao setor agrícola fazem parte de “políticas de longo prazo” do Estado brasileiro “com o objetivo de levar alimentos mais baratos aos consumidores”. A companhia lembrou que atua no Brasil há 60 anos e afirmou que “investiu mais de R$ 8,1 bilhões no país nos últimos anos”. 

A também estadunidense Bunge, além de mencionar as isenções que recebe relacionadas a produtos da cesta básica, disse que atua há 120 anos no Brasil e “tem importante contribuição ao fortalecimento da segurança alimentar, além do apoio ao desenvolvimento das comunidades onde está presente, com a geração direta e indireta de empregos, bem como com a criação de oportunidades econômicas para milhares de agricultores e parceiros de sua rede de abastecimento”.

A Corteva limitou-se a afirmar que “somente utiliza benefícios que estejam em total conformidade com a legislação brasileira”.  


Metodologia

A relação das dez empresas do agronegócio mais beneficiadas por isenções de impostos em 2024 leva em conta apenas os números declarados por elas mesmas na Dirbi, a Declaração de Incentivos, Renúncias, Benefícios e Imunidades de Natureza Tributária, instituída pelo governo federal em 2024. A Dirbi cobre 88 benefícios fiscais, e não a totalidade deles, o que significa que as mesmas empresas ou outras podem ter usufruído de isenções ainda maiores. Para chegar à relação de dez, SUMAÚMA examinou a tabela bruta com dados agregados da Dirbi das isenções por CNPJ, divulgada na página de dados abertos das renúncias fiscais de tributos federais. Foram excluídas redes de supermercados e outras empresas sem ligação com o agronegócio. A partir da relação dos CNPJs de empresas do agronegócio que mais receberam isenções, de acordo com a tabela bruta da Receita, SUMAÚMA procurou os dados relativos a cada uma delas, para o ano de 2024, no Painel de Benefícios Fiscais, disponibilizado pela Receita Federal. Para chegar ao número final das isenções por conglomerado empresarial, foram somadas, nesse painel, as informações de todos os CNPJs identificados como pertencentes ao mesmo grupo em 2024, a partir da análise do balanço financeiro das empresas e de informações públicas.

Os CNPJs considerados foram: para a JBS: JBS S/A, JBS Aves, Seara Alimentos, Seara Comércio de Alimentos, Seara Indústria e Comércio de Produtos Agropecuários; para a Syngenta: Syngenta Comercial Agrícola, Syngenta Digital, Syngenta Proteção de Cultivos, Syngenta Seeds, Dipagro, Agro Jangada, Agrocerrado Produtos Agrícolas e Produtécnica Nordeste; para a Bunge: Bunge Alimentos; para a Fertipar: Fertipar Bandeirantes, Fertipar Fertilizantes do Maranhão, Fertipar Fertilizantes do Mato Grosso, Fertipar Fertilizantes do Nordeste, Fertipar Fertilizantes do Paraná e Fertipar Sudeste Adubos e Corretivos Agrícolas; para a Yara: Yara Brasil Fertilizantes; para a Corteva: CTVA Proteção de Cultivos e Corteva Agriscience do Brasil; para a Bayer: Bayer S.A. e Monsanto do Brasil; para Basf: Basf S/A; para a Cargill: Cargill Agrícola, Cargill Alimentos e Cargill Novos Horizontes; para a OCP: OCP Fertilizantes.


DÉCADAS DE POLÍTICAS PÚBLICAS QUE PRIVILEGIAM O SETOR FAZEM COM QUE HOJE O BRASIL TENHA MAIS BOIS DO QUE PESSOAS. FOTO: LELA BELTRÃO/SUMAÚMA


Reportagem e texto: Claudia Antunes
Edição: Talita Bedinelli
Edição de arte: Cacao Sousa
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Tiago Aguiar e Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o castelhano: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Sarah J. Johnson
Infográficos: Rodolfo Almeida
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Coordenação de fluxo editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum