O território de São Francisco de Itabapoana tem seus mistérios, por mais degradado que esteja depois de séculos de exploração da natureza. Na década de 1990, por ter escolhido os manguezais da região norte-fluminense para estudar no doutorado, comecei a desvendar os segredos do território do município. Meu plano era examinar os manguezais entre os rios Itapemirim e São João. Para tanto, fiz todo esse trajeto costeiro a pé por etapas. O ambiente de mais difícil compreensão estende-se entre Marataízes e Guaxindiba como resultado de profundas e destruidoras ações humanas.
Recorri a mapas antigos desse trecho costeiro. Os cartógrafos não deram muita atenção a ele no passado, embora a primeira tentativa de colonização portuguesa da região tenha ocorrido ali. Só no final do século XVIII, algum detalhe aparecerá no mapa de Manoel Martins do Couto Reis (1785). Mesmo assim, os córregos não foram registrados com seus nomes. Apenas o Guaxindiba. Há poucos avanços nos mapas do século XIX. Para meus estudos, tomei como base a folha Barra Seca, do IBGE, levantamento 1:50.000, publicado em 1968. Creio que foi o mais detalhado levantamento feito até então.
Pela Folha Barra Seca, encontram-se alguns cursos d’água com nome. Outros não. No terreno, essa lacuna foi suprida com informações de moradores. A discrepância era enorme. O maior córrego entre Itabapoana e Guaxindiba é o de Tatagiba. Ele é conhecido como córrego Baixa do Arroz na nascente e como brejo do Largo na parte final. Foi batizado de Tatagiba, nome da praia em que desemboca.
O menor deles entre Guaxindiba e Itabapoana é o córrego de Barrinha. Nas proximidades dele existe uma comunidade quilombola conhecida como Barrinha. O córrego é conhecido mais como Barrinha. Sua diminuta extensão permite acompanhar seu curso a pé da nascente à foz em pouco tempo. O terreno em que ele ainda tem seu leito foi muito revolvido pela agropecuária e pela atividade de lavra das Indústrias Nucleares do Brasil. Na folha citada do IBGE, ele aparece mais íntegro do que hoje, correndo entre os córregos de Manguinhos e de Buena.
O primeiro exame do córrego revelou que ele alimentava um reservatório escavado na terra, que absorvia toda a sua água. Dali em diante, já bem próximo do mar, seu leito estava apenas úmido, mas sem fluxo de água. Pouco mais adiante, sua foz foi separada do leito como uma cobra cuja cabeça tivesse sido separada do corpo. Na foz, foi encontrado um tronco de mangue branco (“Laguncularia racemosa”) de dimensões consideráveis, desenterrado do local tempos depois.
Com o tempo, detalhes do córrego de Barrinha foram sendo registrados. Ele era maior do que atualmente quando toda área de tabuleiros entre os rios Paraíba do Sul e Itapemirim era coberta por densas florestas estacionais semideciduais. A remoção progressiva delas deixou o solo exposto à erosão causada por chuvas e ventos. Os leitos dos córregos foram entupidos pelo assoreamento. As represas nesses córregos para formar reservatórios de água destinadas a lavouras e pastos afetaram profundamente a vazão dos rios. Sendo um dos mais frágeis da região, o córrego de Barrinha sofreu redução em sua extensão, em sua largura e em seu volume. A rodovia RJ-196 também cortou seu leito, agravando mais ainda sua fluidez.
Junto à nascente, foi aberto um conjunto de tanques. No trecho médio, foi feito o rebaixamento do leito para formar um reservatório de água. Na foz, houve um corte que causou descontinuidade ao curso. Posteriormente, um canal foi aberto para esgotar água em tempo de chuva.
Mas mesmo estropiado, o riacho ainda é reativado pelas enchentes. A água volta a circular, abastece os reservatórios, ultrapassa o obstáculo junto à foz e chega ao mar por estreito canal. Ele funciona como defluente num território que acumula muita água com as chuvas de verão e que não conta mais com o sistema natural de drenagem do passado, visto que os cursos d’água estão barrados ao longo dos seus cursos e na foz.
O ambiente da foz é propício para o desenvolvimento de plantas de mangue. Existem guaiamuns nela, indício de que existem fatores apropriados para o ecossistema. Sempre que a água doce proveniente dele se mistura com a água do mar, que chegam à foz pelas marés, formando um pequeno estuário, sementes (propágulos) de plantas de mangue transportadas pelas correntes marinhas fixam-se no local e começam a crescer. A única espécie registrada foi o mangue branco (“Laguncularia racemosa”), que cresce e chega à condição de jovem. Mas, com as estiagens, as condições necessárias ao manguezal desaparecem e as plantas morrem.
O córrego de Barrinha corre quase totalmente em terras de uma só propriedade. Já se pretendeu erguer nela um porto que receberia o nome de Canaã. Agora, a intenção de construir ali, mais uma vez, um porto associado a duas termoelétricas coloca em risco o córrego e a comunidade quilombola de Barrinha.