As seis décadas do paisagismo modernista (e revolucionário) de Burle Marx

Exposição conjunta do MAM Rio e do Instituto Burle Marx revela um paisagista e artista à frente do seu tempo – tanto na estética quanto em temas como o direito à cidade e o ativismo ambiental

A exposição Lugar de estar resgata a parceria de cerca de três décadas entre Burl(”)

Em 1934, o artista e paisagista Roberto Burl(”), em 2015. Ao fim da década de 1930, havia assinado pelo menos mais quatro parques e jardins na capital pernambucana.

Era, no entanto, muita novidade para a época. Como precursor do paisagismo modernista no Brasil, Burle Marx não tardou a despertar estranhamento. Os críticos queriam saber: “Por que seus projetos de ajardinamento não contemplavam roseiras como na Europa?”

Suas escolhas para Recife já sinalizavam os caminhos adotados ao longo de suas seis décadas de carreira – o paradigma de toda a sua obra, não só como paisagista mas também como artista multifacetado. Seu objetivo era “subverter e ampliar o olhar de modo a valorizar o que o Brasil tem de belo”, define Isabela Ono, diretora-executiva do Instituto Burle Marx. “Ele tinha esse olhar propositivo no ato de projetar”, diz ela, ao NeoFeed.

No aniversário de 30 anos da morte de Burl(”), e Pablo Lafuente, diretor artístico da instituição carioca, assinam a curadoria de Lugar de estar: o legado Burle Marx.

“UMA PROVOCAÇÃO”

Luiz Zerbini leva para a mostra um conjunto de monotipias, com as texturas e cores de espécies coletadas no Sítio Burl(”)

A exposição parte de 22 projetos para espaços públicos, concebidos por Burle Marx e sua equipe.

Para tanto, o trio curatorial colocou estudos, croquis, desenhos, fotografias e recortes de jornal, entre outros tantos documentos, para dialogar com trabalhos de seis artistas convidados – João Modé, Luiz Zerbini, Maria Laet, Mário Lopes, Rosana Paulino e Yacunã Tuxá.

Os contemporâneos foram instados a ecoar as ideias do paisagista em suas criações, por meio de obras existentes ou produzidas especialmente para a mostra.

“Burle Marx era uma pessoa criativa, curiosa e ousada, e é quase que uma provocação convidar esses seis artistas, com perfis diferentes, e ver o que viria desse contato”, conta Isabela.

Um dos destaques da 35ª Bienal de São Paulo, a paulistana Rosana Paulino, por exemplo, leva para a exposição desenhos da série Senhora das Plantas, de 2019, nos quais corpos femininos se entrelaçam com raízes de plantas.

Já Luiz Zerbini mostra na exposição um conjunto de monotipias, impressões em que as matrizes vegetais das gravuras trazem as texturas, cores e materialidade de espécies coletadas no Sítio Burle Marx, reconhecido patrimônio mundial da humanidade, pela Unesco, em 2021.

Antiga residência do paisagista, na zona oeste da capital fluminense, o lugar abriga cerca de 3,5 mil espécies de plantas tropicais e subtropicais, em uma das coleções do gênero mais importantes do mundo.

“COMPROMISSO ESTÉTICO-ÉTICO”

O Parque do Flamengo, na orla da Baía de Guanabara, é emblemático do compromisso estético-ético do paisagista (Crédito: Nanquim sobre papel manteiga; foto de Rafae Adorján/Acervo Instituto Burl(”)

O ponto de partida de Lugar de estar é o Parque do Flamengo, na orla da Baía de Guanabara, projetado por Burle Marx e pelo arquiteto Affonso Eduardo Reidy, na década de 1950, e endereço do próprio MAM Rio.

A mostra é complementada por entrevistas em vídeo, algumas de acervo, outras feitas especialmente para a ocasião, que salientam o caráter coletivo do legado de Burle Marx.

“Ouvimos 11 colaboradores e selecionamos entrevistas antigas de Haruyoshi Ono, seu colaborador mais longevo em projetos paisagísticos, concebidos ao longo de quase 30 anos”, conta Isabela.

Arquiteto e paisagista, Ono começou a trabalhar com Burle Marx em 1965, como estagiário. Virou sócio do mestre e, em 1994, assumiu o escritório até morrer, em 2017, aos 73 anos.

Para além do caráter biográfico ou historiográfico, Lugar de estar propõe aprofundar a compreensão do pensamento do paisagista, à luz de questões prementes da atualidade.

Os curadores destacam o que chamam de compromisso estético-ético do paisagista, algo em consonância com temas como  direito à cidade, o ativismo ambiental, a sociabilidade nos espaços públicos e as espécies botânicas como patrimônio, elenca Lafuente.

A questão estética era inerente à formação de Burle Marx em artes plásticas, diz Isabela. “Sobre a ética, acho que eles, Burle Marx e equipe, tinham total noção, ao projetar jardins ou espaços, que era preciso refletir para quem e com que propósito de uso potente os espaços teriam, completa ela.

E o próprio Parque do Flamengo é emblemático do binômio estética e ética do paisagista. Segundo a diretora-executiva do Instituto Burle Marx, foi onde ele pôde expressar, de forma mais coesa, sua preocupação em construir cidades melhores e espaços públicos acolhedores.

Tudo isso em um projeto paisagístico moderno, de valorização da natureza e enaltecimento das vegetações nativas brasileiras. Não à toa o nome da exposição faz referência ao modo como Burle Marx indicava, as áreas de convivência, em seus projetos: “lugar de estar”.

PROVOCADOR E REVOLUCIONÁRIO

Nos projetos do paisagista, como o guache do jardim para o Edifício Palácio Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro, as curvas remetem ao movimento de caminhar no espaço e as cores aludem às vegetações (Crédito: Instituto Burl(”)

Fosse como paisagista ou artista plástico, Burle Marx era inovador, provocador e até mesmo revolucionário. Com lembra Isabela, mesmo em um desenho a guache, uma obra de arte em duas dimensões, é possível perceber seu entendimento de um espaço tridimensional.

“As curvas remetem ao movimento de caminhar no espaço, as cores aludem às vegetações, seus volumes, suas texturas, às florações e folhagens”, explica ela. “As árvores dão os elementos verticais dessas obras. Tudo pensado de uma forma quase que abstrata.”

Tendo em vista o contexto histórico em que muitas vezes produziu, o paisagista foi também um desafiador. “Ele fez muitos projetos para o governo militar, em Brasília. Ao mesmo tempo, tinha uma fala muito progressista na época”, afirma a diretora-executiva. “Não deixava de falar da abertura de rodovias, de como estavam devastando as florestas, o meio ambiente.”