Arthur Soffiati
As viagens “etnográficas” de Mário de Andrade à Amazônia e ao Nordeste, entre 1927 e 1929, com intervalos, proporcionaram ao intelectual paulistano uma experiência semelhante à overdose. Tudo o que Mário havia aprendido nos livros foi superado no contato com a realidade. A Amazônia colocou-o frente a frente com uma natureza equatorial, líquida, florestal, faunística, cultural, que o deslumbrou pela luxúria. No Nordeste, ele pôde não apenas confirmar ou infirmar seus estudos, mas embebedar-se com a cultura popular, que conhecia diretamente apenas em suas manifestações no Estado de São Paulo. Estas experiências místicas, estéticas e antropológicas produziram-lhe uma efervescente reflexão sobre a identidade nacional, tema bastante discutido e discutível, atualmente, entre antropólogos. Tais experiências foram registradas no livro O Turista Aprendiz(São Paulo: Duas Cidades/Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976), postumamente publicado, revelando, de forma excepcional, sua inquietação genial como pensador e artista. É neste livro, principalmente, que colhemos subsídios para o presente artigo.
Mário e os dilemas da cultura tropical
Na maior parte dos seus 28 anos de vida intelectual pública, Mário de Andrade pugnou por uma cultura apropriada às condições tropicais brasileiras. Em se tratando de Mário, entrementes, parece que o autor de Clã do Jaboti reservava o conceito de civilização para designar um modo de vida sofisticado, clímax, declinante e, muita vez, postiço. Cultura, por outro lado, designava, um estágio da vida humana caracterizado pela simplicidade e pelo ajuste às condições ambientais. Certamente, influência de Spengler via Keyserling, muito lido por Mário. Isto se torna claro quando ele explica que “… não aprecio a civilização, nem muito menos, acredito nela. Tanto o meu físico como as minhas disposições de espírito exigem terras do Equador. Meu maior desejo é ir viver longe da civilização, na beira de algum rio pequeno da Amazônia, ou nalguma praia do mar do Norte brasileiro, entre gente inculta, do povo”. Fugir da civilização, sim; da cultura não.
Colocada esta primeira questão, surge um problema crucial. Como e o que seria esta cultura tropical? Mário deu duas respostas à pergunta. A primeira, mais tolerante, entende a cultura tropical como sendo a cultura européia inconscientemente adaptada à realidade ambiental brasileira. Daí o seu fascínio por Belém, Ouro Preto e Salvador, cidades em que esta alquimia teria se processado, e sua aparente antipatia por São Paulo, Rio de Janeiro e Recife, muito contaminadas por influências européias. A segunda, radical, repudia mesmo as adaptações espontâneas da cultura européia para postular uma cultura semelhante à chinesa, à indiana e às africanas. Em ambos os casos, um dos traços mais marcantes da cultura brasileira seria o exercício da preguiça.
Não obstante, como era de se esperar, a questão não se resolveu facilmente. Embora defendendo a descoberta ou a construção de uma cultura apropriada para a tropicalidade brasileira, Mário de Andrade não podia negar as nossas raízes européias. Acontece, porém, que, em algumas páginas de O turista aprendiz, diário de sua viagem à Amazônia e ao Nordeste entre 1927 e 1929, ele denuncia o atraso daquela parte do país e reclama a sua modernização em moldes ocidentais. Também não hesita em enaltecer São Paulo – exemplo de falsa civilização encravada nos trópicos – às vésperas do levante constitucionalista de 1932. No seu último livro de poesia, Lira Paulistana, Mário faz as pazes com sua cidade e retoma o caso amoroso que com ela manteve em Paulicéia Desvairada. Numa de suas entrevistas, proclamou: “Minha maior esperança é que se consiga um dia realizar no mundo o verdadeiro e ainda ignorado Socialismo. Só então o homem terá direito de pronunciar a palavra ‘civilização’”. Esta civilização não seria também exótica?
Mário de Andrade é, ele mesmo, uma expressão viva desta contradição. Com relação à preguiça, por exemplo, seu entendimento é de que o amazônida não é intrinsecamente preguiçoso, mas, em função de fatores ambientais, deveria adotar este traço cultural. Numa entrevista concedida logo após retornar de sua visita a Amazônia, o jornalista provocou-o dizendo que “Lá os homens devem ser preguiçosos como o diabo!” Mário prontamente retrucou: “É um engano lamentável: o tapuio trabalha muito, trabalha bem e é alegríssimo. Para ganhar uma ninharia, quase degradante, a tapuiada passa uma noite inteira carregando lenha para dentro dos navios. Tudo isso no meio de ditos e gargalhadas…”. E completa: “É uma gente boa (a amazônida), gente que gosta de querer bem e que, de modo algum, tem menos capacidade de trabalho do que nós (…) São os desfavores de uma natureza excessivamente fácil que desprestigiam o homem e ainda não permitiram um ritmo normal de progresso por lá”. Acusar Mário de determinismo é fazer a mesma acusação a Marx, que, em diversas passagens de sua obra, defende o mesmo princípio.
Em relação a si mesmo, dizia: “Meu maior sinal de espiritualidade é odiar o trabalho, tal como é concebido, semanal e de tantas horas diárias, nas civilizações chamadas ‘cristãs’. O exercício da preguiça, que eu canto no Macunaíma, é uma das minhas maiores preocupações”. Por mais que Mário quisesse se referir à preguiça criativa, é inegável que não a praticou do modo como a concebeu. Em 1943, ele revela que, “De outubro a dezembro do ano passado, trabalhei de 14 a 15 horas por dia, cigarro na boca e uísque ao lado. Fiquei intoxicado. Nos últimos dias de dezembro, nem pensava mais em dormir”. Não resta dúvida de que o excesso de trabalho agrediu o seu organismo e contribuiu para a sua morte prematura. O que Mário, afinal, entendia por preguiça? Direito ao lazer? Um tipo de comportamento adequado aos países quentes? Um comportamento típico de uma cultura apropriada aos trópicos que contestasse o capitalismo e o socialismo, ambos apologistas do trabalho?
Nosso escritor acreditava que não só os hábitos de fumar e beber eram tropicais. Gostava de fumo e café fortes, que considerava típicos do Brasil. “Gosto de comer e beber bem. Exerço a preguiça sistematicamente porque considero a preguiça uma necessidade para os povos de climas quentes. De resto, somente um pequeno contato com as minhas obras, me demonstra muito mais marcado pelo tropicalismo que propriamente pelo nacionalismo. Passagem altamente elucidativa esta, não esclarece, porém, quais os pratos que Mário considerava tropicais. No correr de seus escritos, ficamos sabendo que se trata da culinária ocidental-afro-ameríndia, bem imprópria aos climas quentes. Todos estes hábitos “tropicais” contribuíram para o desenvolvimento de sua úlcera duodenal e de outras tantas doenças que culminaram no seu infarto fulminante aos 51 anos. O uísque, de origem escocesa, bem como as roupas ao estilo europeu, inclusive os sapatos apertados que lhe produziram calos vascularizados, completam a personalidade rica deste intelectual complexo e contraditório.
Mário e a jardinagem
Nossas escolas de arquitetura visam formar profissionais elitistas, que se consideram os únicos detentores do saber relativo aos ecossistemas urbanos. Assim, o arquiteto que se especializa na concepção de jardins recebe o pomposo nome de paisagista, quando, na verdade, o termo paisagismo deveria ser reservado ao profissional multi ou transdisciplinar que trabalha com a construção ou a restauração de paisagens, sejam elas nativas ou antrópicas. Com relação às cidades, o paisagista deve ter a capacidade de pensá-las no seu conjunto, como o ambiente de seres humanos, animais e plantas. Falta ao arquiteto e ao urbanista, como de resto a qualquer profissional, a faculdade de lidar com a complexidade, salvo raríssimas exceções.
Entendendo o paisagista como um jardineiro especializado, podemos dizer que a história dos jardins no Brasil começou sob forte influência europeia. O botânico francês Glaziou, que viveu entre nós, desenhou jardins magníficos, mas utilizou-se pouquíssimo da rica flora brasileira. Um século depois, Burle Marx deu um salto significativo, ao valorizar as plantas nativas da América. No entanto, não aboliu dos seus projetos as espécies européias, da mesma forma que não distribuiu as espécies brasileiras segundo seus ecossistemas. O Parque do Flamengo é uma boa amostra desta miscelânea. O projeto de ajardinamento de Palmas, capital do Tocantins, de autoria de um jardineiro carioca, avança mais, na medida em que se utiliza de 70% de espécies típicas do cerrado. Todavia, os 30% restantes têm várias procedências.
É surpreendente como Mário de Andrade, no esforço de construir uma cultura brasileira, propõe, no longínquo ano de 1927, uma jardinagem revolucionária, que, nos dias que correm, ainda conta com pouquíssimos adeptos. Ele estava realizando a sua célebre viagem pela Amazônia quando foi abordado por um jornalista de Folha da Noite, jornal de Belém, para uma entrevista publicada em 24 de maio de 1927. Numa determinada passagem, ele declara que “O Brasil possui algumas cidades bonitas: o Rio, Belo Horizonte, Recife, São Paulo; mas a todas estas falta caráter. Belém é como Ouro Preto, como Joinvile, como Salvador: possui beleza característica. Este céu de mangueiras, filtrando o sol sobre a gente, produz uma ambiência absolutamente original e lindíssima. Vejo com terror que em certas ruas estão plantando árvores estrangeiras”.
Neste momento, o repórter atalhou, ponderando: “Há o problema da umidade a resolver…” Mário de Andrade prontamente respondeu: “Será um problema ou fatalidade climática? Aliás, a solução do problema não implica importação de árvores da ‘estranja’. Essa arvoreta bem educada que andam plantando é insuportavelmente monótona e estúpida como um pato. Imagine só uma alameda arborizada com tufos de açaizeiros? Seria adorável e vivaz como esses mameluquinhos que andam nus nas praias afastadas. Com as mangueiras, os barcos de velas coloridas, e tantos outros encantos originais, vocês têm um tesouro de beleza nas mãos. Aproveitado seu espírito de imitação, Belém será a mais linda cidade equatorial”.
É bem verdade que Mário cometeu um erro ao julgar que a mangueira é uma espécie nativa da Amazônia. Na verdade, ela é originária da Ásia Meridional. Todavia, o que importa é o princípio. Ao defender a ideia de que cada ecossistema contém um conjunto rico e variado de espécies autóctones para a construção de um belo jardim, Mário de Andrade estava lançando os fundamentos de um “paisagismo” ecologicamente apropriado. Mas a aplicação de tal princípio depende de pesquisa básica, que custa dinheiro e não interessa aos governantes. É por isso que até hoje os nossos jardineiros de luxo só se preocupam com o efeito ornamental das plantas, sem saberem se elas provêm do Velho Mundo, da América ou da Oceania, se elas são originárias da Amazônia, da Mata de Cocais, da Caatinga, da Mata Atlântica, do Pantanal ou do Cerrado.
Mário, o mogno e a farra do boi
No ano em que Mário de Andrade, o mais complexo e inquieto intelectual brasileiro, completou seu centenário de nascimento, decidi trazer a público, ainda que precariamente, um dos muitos temas que o preocupavam e que pesquiso há tempo: a natureza. Os estudiosos de sua obra discutem muitos aspectos, mas limitam-se a uma abordagem culturalista. Quase ninguém se deu conta de três questões. 1 – Mário de Andrade é um grande observador da natureza não-humana e tem por ela uma especial simpatia. São famosas as suas crônicas sobre plantas e animais. Olímpio José Garcia Matos, pesquisador já falecido da Biblioteca Nacional, redescobriu um conto esquecido de Mário, “A guitarra frustrada de Romeu”, publicado no número 20 de A ilustrada, em 15 de fevereiro de 1924. Nele, o autor nos leva a crer, até o final, que as duas personagens – Romeu e Rita – são seres humanos, quando, na verdade, são gatos no cio. 2 – Mário de Andrade é um dos primeiros no Brasil a romper com o dualismo cartesiano, ao divisar uma continuidade entre natureza não-humana e cultura humana. São, todos eles, assuntos que dão panos pra manga. Tentemos ilustrar brevemente apenas o primeiro.
Em 1927, em Nanay, Peru, no meio de sua famosa viagem à Amazônia, Mário de Andrade nos informa sobre uma das maiores agressões cometidas atualmente contra a floresta. “Estão embarcando duzentos toros de caoba, cada um pesando de duas a três toneladas, me disseram. Caoba é castelhano; aqui na região se diz aguano, nós dizemos mogno… Vão pra Boston, pra uma fábrica de vitrolas”.
Na página 75 de O Turista Aprendiz, seu diário de bordo, ele revela sua compaixão pelos animais numa passagem que poderia corresponder à atual farra de boi, de Santa Catarina. Reproduzimo-la na íntegra. “Ali pelas vinte-e-quatro horas da noite de ontem pra hoje, paramos na fazenda do Tapará, pra embarcar vinte bois de corte. Que coisa desumana! é assim: Numa espécie de corredor assoalhado que dá pra um terracinho junto d’água, vem um homem correndo que as luzes do navio concedem vestir de um último pedaço de calça esmolambada. Atrás dele vem um boi corcoveando embrabecido. Então surge de repente no terracinho um farrancho de tapuios seminus, corpos admiráveis de estilo, rebrilhando na chuvinha propicia, grande cena de teatro. E o grupo dança detrás do boi uma mazurca muito viva de gestos, ‘êh, boi!’ E só se escuta ‘êh boi!’, ‘êh, boi!’… O homem da frente corre até a beirada do assoalho e atira pra bordo a corda em que o bicho está preso. A corda salta que nem se vê, mas de bordo o trabalhador infalível não erra uma, pega a corda e grita ‘Vá!’. Então a barulheira dos tapuios se esganiça em histerismos alegres que aguçam o medo do boi. O pobre animal se atira n’água e vem nadar no costado no navio. O homem da corda puxa o boi, ajeita o boi, prende o laço do guindaste nas guampas do bicho e “Devagar!”que avisa o boi. E o santinho, com as mãos cruzadas no peito, olhos de terror que não se agüenta, nasce das águas como o dia e vai mansamente subindo, subindo, pensando em Deus. Mas eis que um braço diabólico interrompe e assunção, agarra o bicho pelo rabo e o traz pra junto do navio. O guindaste desce um pouco, o boi se agarra como pode e é puxado pro convés de baixo, onde em pouco está dormindo entre as redes do pessoal terceira classe”.
Alguns estudiosos, preocupados com os problemas ambientais no Brasil, olharam para o passado e descobriram que a preocupação já era externada por José Bonifácio, Joaquim Nabuco, André Rebouças, Euclides da Cunha, Alberto Torres e Monteiro Lobato. Mário de Andrade não pode ficar fora deste time.