O fato do Brasil ser hoje o principal mercado de agrotóxicos é uma daquelas honrarias que dispensam comentários. Afinal, ao concentrador 20% do consumo mundial, o nosso país vive inundado por substâncias banidas nos países que os desenvolveram por causa da sua alta toxicidade ambiental e para a saúde humana. Um aspecto especialmente macabro é que dezenas de agrotóxicos banidos na União Europeia por causarem inúmeros tipos de doenças, a começar por formas particularmente agressivas de câncer, mas fabricadas por multinacionais sediadas no Velho Continente, continuam sendo abundantemente usadas no Brasil, principalmente na forma de agrotóxicos genéricos.
Um exemplo disso é o herbicida Atrazina, que foi banido para uso nos países da União Europeia, mas que continua sendo exportado para o Brasil em grandes quantidades. A Atrazina foi banida para uso na Europa por ser um desregulador endócrino, ou seja, por interferir nos sistemas hormonais, podendo causar problemas reprodutivos e de desenvolvimento. Mas a Atrazina também é uma possível causadora de câncer. Como essa é uma substância que se mova rapidamente na água, ela está hoje presente de forma ampla na água que chega nas torneiras que abastecem diariamente na casa dos brasileiros. Apesar disso, para alegria dos acionistas da multinacional sino-suíça Syngenta, não há proibição à vista para o uso da Atrazina na agricultura brasileira. Aliás, como não existe proibição para dezenas de outros agrotóxicos tão ou mais tóxicos do que a Atrazina, mas que continuam sendo liberados de ampla, geral e irrestrita para uso no Brasil.
A questão que escapa da maioria das pessoas é que a transformação do Brasil em uma imensa latrina química onde são despejadas toneladas de venenos poderosos para alimentar a agricultura de exportação é que até a década de 1960 a realidade era bem diferente. Na verdade, a transformação da agricultura brasileira se deu a partir do golpe civil-militar de 1964. Alinhados com os latifundiários que se opunham à reforma agrária, os militares iniciaram uma transição para adotar o pacote tecnológico da Revolução Verde que impunha a adoção de agrotóxicos e fertilizantes sintéticos. Com isso, se passou de um consumo anual irrisório de 40.656 toneladas em 1969 para cerca de 800.000 toneladas em 2024.
Para conseguir iniciar essa ascensão do consumo de agrotóxicos, os militares lançaram em 1975 o Programa Nacional de Defensivos Agrícolas (PNDA). Apesar de ter durado apenas 4 anos, o PNDA lançou as bases de sustentação da elevação continuada do consumo de agrotóxicos. Isso foi feito de várias maneiras, mas o receituário incluiu a obrigação de usar agrotóxicos para obter financiamento agrícola e adoção de uma série de benefícios fiscais para fabricantes e vendedores de agrotóxicos. A questão é que após quarenta anos do fim do ciclo militar, as políticas de sustentação da indústria de agrotóxicos permanecem basicamente as mesmas. A manutenção desses benefícios pelos governos civis que se iniciaram após o fim do ciclo militar em 1985 foi um dos elementos basilares tanto da aprovação da Lei 14.785/2023, apelidada de “Pacote do Veneno”, como a da Reforma Tributária, ambas em 2023. Essas duas legislações continuaram a receita de benefícios fiscais e tributários que permitem o uso intensivo de agrotóxicos no Brasil. Um estudo do grupo de pesquisa em justiça ambiental, alimentos, saberes e sustentabilidade da Universidade do Vale do Taquari (RS), calculou soma da renúncia de todos os estado e Distrito Federal para o ano de 2017, apenas com o que se deixa de cobrar com o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Quando esses valores de 2023 são atualizados com base no IPCA, temos uma perda de R$ 7,05 bilhões.
Mas a perda de recursos públicos bancando a indústria de agrotóxicos não se limita a isenções e redução de alíquotas do ICMS. O fato é que os fabricantes de agrotóxicos se beneficiam também das isenções em impostos e contribuições federais, que foram sendo concedidas a partir da década de 1990: o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), o Imposto de Importação (II), Contribuição Social para Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e as Contribuição Social dos Programas de Integração Social (PIS) e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep).
O mais absurdo é que apenas quatro commodities agrícolas de exportação (soja, milho, algodão e açúcar), que concentram 80% do consumo de agrotóxicos no país, acabam saindo com pouquíssimo ganho para a maioria dos brasileiros já que estão livres do pagamento do ICMS ao serem exportadas por causa da Lei Kandir (Lei Complementar nº 87/96). E não é de menos importância notar que o principal comprador dessas commodities, a China, é também hoje o maior fornecedor dos agrotóxicos usados para produzi-las. Essa situação exemplifica de forma explícita o processo de trocas desiguais, na medida em que as commodities são mais baratas e sofrem mais flutuações para baixo do que os agrotóxicos cuja tendência tem sido sempre de alta.
Em outras palavras, o ganho fica todo como latifúndio agroexportador, enquanto os prejuízos ficam todos com a população. E os sinais dessa perda são abundantes, principalmente nas regiões que concentram a produção de commodities agrícolas de exportação. A verdade é que o Brasil atravessa atualmente uma grande epidemia derivada da exposição a agrotóxicos, seja na forma aguda ou na crônica. Estudos científicos comprovam que estamos testemunhando um forte aumento em diferentes tipos de doenças que está associado à exposição a agrotóxicos. O problema é que isto está acontecendo no mesmo momento em que os recursos para a saúde pública estão sendo diminuídos. A consequência disso está sendo o aumento exponencial na detecção de diversos tipos de câncer, inclusive pelo consumo de água contaminada por agrotóxicos.
Finalmente, é precisar lembrar que enquanto não se mudar o panorama de termos uma agricultura fortemente dependente de agrotóxicos para produzir, e que só se sustenta com os beneplácitos concedidos pelo Estado brasileiro, o que pairará sobre todos nós é a herança tóxica da ditadura de 1964.