Em que medida esses fenômenos que assistimos hoje – seca, incêndios, calor fora de época, etc – precisam ser entendidos em conjunto, tendo em vista o acúmulo científico sobre as mudanças climáticas?
A gente não tem mais como ver nada de forma isolada. As mudanças climáticas saíram dos relatórios, das previsões. O clima mudou. Essa frase nunca foi tão verdadeira. Para conseguir responder a isso, nós vamos ter que mudar também. Não adianta fazer a mesma coisa que antes, ter as mesmas ações, os mesmos planos governamentais, o mesmo comportamento, para enfrentar algo totalmente novo. Nitidamente, nos dois últimos principais eventos que a gente teve, no Rio Grande do Sul e agora com as queimadas, os governos – o governo federal e os governos locais – não conseguiram responder à altura. Não estavam preparados, os recursos e as contratações eram insuficientes. A prova de que tudo é insuficiente foi a própria reunião ministerial de ontem [dia 17], já no meio de setembro, praticamente dois meses depois de o período de seca e queimada se estabelecer no Brasil, para ter medidas mais extremas para tratar do assunto. E ainda assim são medidas que reforçam o que a gente já tem no script, que é mais dinheiro para apagar o fogo. Precisa disso, mas a gente precisa também de medidas estruturantes. Por exemplo, aumentar penas para crime ambiental, ter atitudes para acabar com o desmatamento. O desmatamento está autorizado no Brasil. São necessários dois eixos: um é cuidar da emergência, se adaptar a ela; outro é atacar a origem do problema. A gente ainda está bastante concentrado na emergência. Mas se a gente não atacar a origem do problema, principalmente combater o crime ambiental e o desmatamento, vamos continuar a ver essas cenas se repetindo.
Até que ponto o país ainda sente o efeito da política ambiental adotada durante o governo Jair Bolsonaro – acusada por ambientalistas de ser permissiva com os crimes ambientais e de operar um desmonte dos órgãos de fiscalização, como o Ibama? E qual é a parcela de responsabilidade do governo atual?
Primeiro que não existe comparação entre o último governo e esse na área ambiental. Veja, você tem um crime ambiental instalado, principalmente na Amazônia, mas em várias outras regiões do Brasil também. São máfias do desmatamento, que operam milhões e milhões de reais. Esse crime pode ser combatido, ou você pode se omitir e ele vai crescer na omissão do Estado. O que o governo Bolsonaro fez foi inaugurar um terceiro caminho, que foi colocar o crime ambiental sentado com ele na cadeira da presidência da República. O crime ambiental sabia que não seria punido e ouvia isso da boca do presidente, que falava claramente: ‘Quem desmata está correto, a lei é que está errada. Não será multado, não será pego, não será fiscalizado’. Foi assim durante quatro anos. Essas pessoas agiram confortavelmente, enriqueceram, colocaram mais influência na área política, ficaram mais poderosas. Os presidentes dos três poderes do Brasil disseram que os incêndios são criminosos, orquestrados, então eles têm informação sobre isso. Tem uma condição climática muito específica que permite isso, mas o crime está lá, se aproveitando dessa condição. Ele está apenas mostrando a força que adquiriu durante quatro anos do governo anterior. O governo Lula, pelo menos em discurso, tem a melhor narrativa em relação ao clima em comparação a qualquer outro que a gente já teve. Temos um presidente que fala em desmatamento zero, invasão de área indígena. Temos uma boa ministra do Meio Ambiente, o Fundo Amazônia foi retomado, o desmatamento diminuiu, aumentaram os investimentos na área. Tem realizações. É um governo que agregou coisas positivas na agenda, mas não o suficiente. Temos um regime climático totalmente novo. O governo precisa entender que em breve a gente vai colocar 50 mil brigadistas para apagar o fogo e não vai conseguir. Ou vamos ter atitudes para acabar com o crime e eliminar o desmatamento ou a quantidade de brigadistas nunca vai dar conta de apagar o fogo. A gente vai ter essa conversa ano que vem, o governo vai fazer uma outra reunião ministerial, a dotação orçamentária vai ser o dobro e mesmo assim vai ter o dobro de fogo para apagar.
“É bacana o crédito suplementar, mas a gente precisa começar a colocar essas pessoas na cadeia”
A ministra do Meio Ambiente usou a expressão “terrorismo climático” ao falar da hipótese de ação criminosa e orquestrada nos incêndios. Faz sentido pensar em uma represália à guinada na política ambiental?
Eu não sei se é uma represália política, mas pode acontecer, não seria uma novidade. Mas não tem uma coisa só que explica esse cenário. Veja só: em 2019, a gente tinha o governo Bolsonaro e houve o Dia do Fogo. E certamente não era uma represália às ações ambientais do governo. A gente tem ações orquestradas de invasão de terras indígenas há muito tempo. Nesse momento você tem muito banco, inclusive banco público, oferecendo financiamento para fazendeiros que estão com áreas embargadas, áreas que o Ibama lacrou. É tipo uma cena do crime. Sabe quando passa aquela fita preta e amarela em volta? Então, tem muita ação orquestrada. No próprio governo, temos um ministro da Agricultura que em novembro do ano passado pediu licença do cargo, reassumiu a cadeira no Senado e votou pela derrubada do veto do presidente na lei do Marco Temporal. Isso é uma ação orquestrada. Eu não vi até agora o ministro da Agricultura pedir para os fazendeiros do país pararem de tacar fogo. Mas não é só isso. Tem uma falta de coordenação do governo, e o script do desmatamento mudou, principalmente na Amazônia. Não há condições de combater esse crime hoje como ele era combatido anteriormente.
O script do desmatamento mudou em que sentido?
Antes chegava o madeireiro, abria uma estrada numa área intocada de floresta, retirava aquelas madeiras mais nobres, que tinham valor comercial. São árvores mais altas, que têm a copa maior. Quando retira essas árvores, você fragiliza o ecossistema, porque começa a liberar a entrada de raios solares que vão secando o solo. E essas árvores quando caem derrubam 20, 30 árvores. A gente chama isso de degradação. Isso torna aquela região muito mais fácil de ser incendiada. Depois dessa ação madeireira, chega o grileiro de terra, derruba as áreas que ficaram de pé, que não têm valor comercial e, como a região já está seca, ele taca fogo e entra com o gado, ainda em cima das cinzas. O gado come o rebroto da floresta e isso serve de instrumento jurídico para ele reclamar a posse da terra, dizendo que está exercendo uma atividade econômica. Esse foi o script do desmatamento e da grilagem de terras na Amazônia por décadas. O que está acontecendo agora é que eles estão pulando a etapa de derrubar as árvores, depois da entrada madeireira, e estão tacando fogo direto, com as árvores em pé, porque o clima está muito seco e eles não precisam derrubar para tacar fogo. E também porque, com a floresta em pé, fica mais difícil fazer a fiscalização, porque não tem fiscalização em área degradada, normalmente é só em área em que está tendo desmatamento. Então o crime está evoluindo para outros patamares, e nós não temos condição de combatê-lo como ele está empoderado hoje, com a legislação que temos. Hoje você aplica uma multa por alguma ilegalidade e é quase um estímulo, porque essa multa nunca é paga, ela serve de exemplo de como ninguém será punido. A multa não é paga, o processo prescreve, ou a pessoa dá uma cesta básica e não acontece nada com ela. Todas as pessoas que foram presas no Dia do Fogo foram liberadas. A impunidade serve de alimento para essa ilegalidade. O resultado é esse que estamos vendo. É preciso mudar a lei. É bacana o crédito suplementar, mas a gente precisa começar a colocar essas pessoas na cadeia.
Essa semana o Observatório do Clima publicou uma nota criticando a carta enviada pelos ministros Carlos Fávaro (Agricultura) e Mauro Vieira (Relações Exteriores) à União Europeia, pedindo que fosse adiada a entrada em vigor da regulação europeia que procura garantir o fornecimento de commodities livres de desmatamento ao bloco. Em que medida esse é um exemplo da dificuldade em avançar essa agenda dentro do governo hoje?
Exemplifica totalmente, porque você tem dois ministros falando à União Europeia, teoricamente em nome do governo, contradizendo o discurso do próprio presidente, que fala que não vai ter mais desmatamento no Brasil. E os ministros estão dizendo que vai ter, sim. Uma bagunça. Eles estão com o país embaixo de fumaça, escrevendo uma carta para a União Europeia dizendo que são contra acabar com o desmatamento. São contra provar que o Brasil parou de desmatar, são contra produzir sem desmatar. Eles estão deixando bem claro para quem quer desmatar no Brasil que eles encontram guarida dentro do próprio governo e que não vai ser tão fácil assim combater toda essa situação. Eu não vi nenhum desses ministros, principalmente da Agricultura, fazer campanha pelo fim do desmatamento. Mas ele escreve cartas se indignando que alguém quer acabar com o desmatamento. Nesse cenário, se o ministro da Agricultura ficar quieto, já está errado. Falando isso então, ele atravessou completamente o samba.
“Fake news mata, esse é o resumo. E no caso do meio ambiente, mata e desmata”
Ano que vem completam-se dez anos da assinatura do Acordo de Paris, que em 2015 apresentou um conjunto de metas para a redução da emissão de dióxido de carbono, aprovado por 195 países da ONU durante a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática. Em novembro de 2025 o Brasil sedia a 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas, a COP30. O que esperar do evento e do Brasil?
Essas negociações estão em um cenário turbulento e incerto hoje, porque a gente tem duas guerras acontecendo no mundo, pouco avanço em termos de confiança entre os países, principalmente por conta de um item que é o financiamento: os países ricos prometeram dinheiro para financiar países em desenvolvimento a fazer seu dever de casa e esse dinheiro nunca apareceu. Então, você acaba criando uma celeuma porque os países em desenvolvimento dizem que não vão fazer nada enquanto não aparecer o dinheiro, e os países ricos dizem que só vão colocar dinheiro quando algo começar a ser feito. Fica nesse empurra para lá, empurra para cá. A gente tem também a eleição dos Estados Unidos, que é algo muito importante, porque é o país que mais pode contribuir financeiramente para a solução e é também o que mais deve na conta do clima, porque é o que mais poluiu. O [Donald] Trump já declarou que, se ganhar as eleições, vai tirar os Estados Unidos do Acordo de Paris e não vai cumprir nada da agenda de clima. E aí você ganha um novo desestímulo. É aquela pessoa que sentou na mesa, comeu mais que todo mundo, pediu as coisas mais caras e se nega a pagar a conta. É um calote. A gente precisa esperar essas definições globais e a conferência do Azerbaijão [a COP29, em novembro de 2024], que é importantíssima, inclusive para que a nossa [a COP30] tenha alguma possibilidade de sucesso. Se a do Azerbaijão terminar em briga, sem resolução, sem avanço, e o mínimo de entendimento nas questões principais, principalmente de financiamento, a do Brasil não vai fazer mágica sozinha.
Durante a pandemia de covid-19 foi possível sentir o quanto o negacionismo científico e a disseminação das fake news atrapalharam os esforços no enfrentamento da emergência sanitária. O quanto esses fenômenos são desafios também para as mudanças climáticas?
As fake news atrapalham em todas as áreas. E na área da saúde e do meio ambiente, elas são extremamente danosas. Elas têm um efeito prático imediato sobre a população. Na saúde temos as campanhas antivacina, que estão aí há muito tempo. A gente lembra de toda a desinformação da indústria do tabaco também na década de 1980. A mesma coisa aconteceu com o clima. Elas atrapalham porque criam uma espécie de inação. Se o problema não existe, por que você vai agir sobre aquele fato? Essa dúvida sobre se existe ou não o aquecimento global, as mudanças climáticas, vai diminuindo o compasso das ações que deveriam ser tomadas de forma emergencial. Na verdade, a gente deveria estar em absoluto desespero na agenda de clima. Porque nós estamos falando de uma agenda que se não for resolvida na próxima década vai condenar o planeta a extinções em massa de espécies. De forma bem clara, nós não teremos mais um planeta que suporta a continuidade da vida tal qual ela se encontra hoje. Este é o prognóstico de um clima extremo no planeta e é para lá que a gente está caminhando. Nós estamos vendo agora uma pequeníssima fração disso. As fake news atrasam toda essa urgência com que a gente precisa tratar o fato. Foi assim na pandemia. E isso resulta em morte de pessoas. A gente vai continuar vendo pessoas perdendo suas vidas, suas casas, perdendo plantio, pagando mais caro no arroz no supermercado, na conta de luz. A crise do clima nos joga no buraco e arrasta um monte de vida que existe no planeta junto. Fake news mata, esse é o resumo. E no caso do meio ambiente, mata e desmata.