Por Ismael Machado da Amazônia Real
Belém (PA) – Professor da Universidade Federal do Pará e autor de Geografias do bolsonarismo, Bruno Malheiro analisa as contradições entre o discurso verde das corporações e a realidade dos territórios amazônicos. Para ele, a COP30 em Belém revela a tentativa de transformar a crise climática em nova fronteira de negócios — e os povos da floresta, mais uma vez, em alvo de um reposicionamento geoeconômico violento.
Bruno Malheiro é também corroteirista do filme Pisar suavemente na terra e autor do álbum Segura o céu.

Amazônia Real – O que representa a realização da COP30 em Belém, no coração da Amazônia?
Bruno Malheiro – A COP traz uma euforia em certos governos, ONGs e até movimentos sociais, mas precisamos relativizar isso. Grandes eventos como esse tendem a alavancar a especulação imobiliária, reorganizar as relações capitalistas e reposicionar a Amazônia na geoeconomia global. Por trás do discurso da sustentabilidade, há riscos profundos. A COP pode ser, na verdade, o anúncio de novas violências para a região.
Amazônia Real – Por que a Amazônia continua no centro das disputas globais?
Malheiros – Desde os séculos XVII e XVIII, o território amazônico é cobiçado — primeiro por razões coloniais e econômicas, agora por razões climáticas. A centralidade da Amazônia não é nova. Sempre estivemos no radar das potências, e essa visibilidade quase nunca significou proteção ou soberania, mas sim abertura de novas frentes econômicas e ciclos de espoliação.
Amazônia Real – Você fala em “falsas saídas verdes”. O que quer dizer com isso?
Malheiros – Vivemos o que chamo de necroeconomia da desfaçatez. Os mesmos responsáveis pelo caos climático — mineradoras, agronegócio, petroleiras — agora se apresentam como salvadores. Eles pintam de verde práticas que continuam devastadoras, usando palavras como “transição energética”, “bioeconomia” ou “descarbonização”. O que está em jogo é transformar as mudanças climáticas em oportunidade de mercado, garantindo a expansão ilimitada do capitalismo.
Amazônia Real- São novas formas de violência? Explica como isso se dá.
Malheiros – Sim, eu escrevi um artigo recente para o Le Monde Diplomatique em que falo dessas novas violências, que nada mais é que essa rearticulação das relações capitalistas operadas nesses tempos de COP30, quando transformam a mudança climática numa ideia de oportunidade de mercado. Elas colocam no centro dos processos de mercantilização e financeirização os territórios da vida, ou seja, os territórios florestados ainda, as unidades de conservação, as terras indígenas, que são quase 51% do Brasil. Tudo isso ainda está em disputa, são territórios que o agronegócio, a mineração ainda não conseguiu adentrar, mas que outras frentes, via o chamado capitalismo verde, via esses discursos de sustentabilidade, transição energética, estão conseguindo. São essas as novas violências, diretamente relacionadas a essas novas frentes econômicas que entram nesses territórios. Talvez a mais característica seja a mineração de minerais críticos que cerca territórios indígenas e unidades de conservação, não só na Amazônia, em todos os biomas, mas principalmente na Amazônia. Ou seja, a mineração tradicional se anuncia como uma nova solução de descarbonização de trânsito energético, mas no final das contas continua poluindo, continua matando, continua com a mesma violência. Outra frente que eu ressalto é o crédito de carbono que também imobiliza territórios. Então são novas frentes de violência abertas por conta dessa mercantilização e financeirização desses territórios da vida. Você transformar a mudança climática em oportunidade de mercado, ou seja, você dar saídas de mercado aos problemas que o mercado criou gera novas frentes econômicas que vão diretamente violar terras indígenas, terras quilombolas, unidades de conservação, enfim, os territórios que ainda mantêm a floresta em pé.
Amazônia Real – Ou seja, as COPs seriam parte desse sistema?
Malheiros – Sim. As COPs são arenas onde Estado e mercado selam acordos com pouco envolvimento da sociedade civil. E veja a contradição: os maiores emissores de gases de efeito estufa são também os principais financiadores das conferências. No Brasil, Vale, JBS e a Confederação Nacional da Agricultura têm presença central. Essas mesmas empresas financiam obras e até a cobertura jornalística da COP 30. É um jogo de poder e discurso.
Amazônia Real – Por que você prefere o termo “necroeconomia da desfaçatez” a “greenwashing”?
Malheiros – Porque não se trata apenas de maquiagem verde. É algo mais perverso. São dinâmicas econômicas que matam a vida em nome da vida. Chamam de “baixo carbono” práticas que envenenam territórios e violentam povos. É uma economia que destrói para dizer que está salvando — e que, ao longo da história, sempre concentrou o poder decisório nas mãos dos grandes: latifundiários, mineradoras, corporações de energia.
Amazônia Real – Que novas frentes econômicas se abrem na Amazônia em tempos de COP?
Malheiros – Estamos diante de um novo projeto de territorialização capitalista. Agora, o mercado avança sobre o ar, as florestas, os conhecimentos tradicionais e até os modos de vida. O que se mercantiliza hoje são bens comuns e práticas ancestrais. Terras indígenas, quilombolas, ribeirinhas, assentamentos e unidades de conservação tornam-se alvos de uma financeirização global. É o capitalismo verde abrindo novas frentes de espoliação.
Amazônia Real – O mercado de créditos de carbono é uma dessas frentes?
Malheiros – Sem dúvida. Esse mercado se vende como solução, mas é uma ilusão. Ele não reduz emissões — apenas cria um sistema de compensações em que se compra, de uma área que captura carbono, o direito de poluir em outra. Na prática, comunidades amazônicas estão sendo imobilizadas. Seus territórios são transacionados sem levar em conta suas práticas de manejo e autonomia.
Amazônia Real – E há sobreposição entre esse mercado e a mineração?
Malheiros – Sim, e isso é gravíssimo. Um levantamento do InfoAmazonia mostra que 61% de todo o crédito de carbono vendido da Amazônia está em áreas destinadas à mineração. Ou seja, o setor mais destrutivo da região se sobrepõe ao suposto mercado “verde”. E as empresas que compram esses créditos — Google, iFood, Uber — reforçam a dependência do nosso território para sustentar o modo de vida urbano globalizado.
Amazônia Real – Você também menciona a mineração de minerais críticos. Que relação ela tem com a COP?
Malheiros – É outro exemplo da transformação das crises em negócios. Minerais como cobre, níquel, manganês, lítio e terras-raras são apresentados como “verdes” porque servem à transição energética — baterias, carros elétricos, painéis solares. Mas, na prática, essa mineração ameaça povos e ecossistemas. Existem milhares de requerimentos de lavra na Amazônia, e muitos a menos de 40 km de povos indígenas isolados. É um novo cerco aos territórios da vida.
Amazônia Real – Diante desse cenário, onde está a resistência?
Malheiros – Nas margens. Nos povos que há séculos resistem. A COP30 é dos governos e corporações, mas há também a Cúpula dos Povos, a COP do Povo, os movimentos que articulam uma agenda política real. Esses grupos afirmam que não há justiça climática sem enfrentar a concentração de terra — porque terra é energia vital, é vida. Eles propõem integrar os territórios da vida, não expandir as infraestruturas do colapso.
Amazônia Real – O que esses povos estão dizendo ao mundo?
Malheiros – Que justiça climática não se faz com monocultivo, com veneno ou com mercantilização da floresta. Produzir alimento é produzir saúde e autonomia, por meio da agroecologia, não do agronegócio. Eles lembram que não basta conter o desmatamento — é preciso que os territórios da vida avancem sobre os territórios da destruição. Esse é o recado mais potente vindo da Amazônia.











