Amazônia Marítima

Por Arthur Soffiati

É bem conhecida a Amazônia como grande área do planeta Terra na zona equatorial. O que chama a atenção, no sentido científico, social e econômico é a grande floresta que a recobre (embora existam formações vegetais diferentes da florestal no seu âmbito) e os grandes rios que a irrigam. Trata-se da maior rede hídrica do mundo. Graças a ela e ao calor equatorial, a floresta se tornou tão pujante e tão crucial para o equilíbrio climático e ambiental global de um modo geral.

Essa grande maça fluvial e florestal foi ocupada por povos que chegaram à América antes dos escandinavos e dos ibéricos. Esses povos pré-europeus tinham uma economia de subsistência que se adaptou à floresta, vivendo dos seus frutos de forma sustentada. Além de extraírem da natureza o que ela fornecia sem ultrapassar sua capacidade de suporte, vários desses povos souberam ainda produzir terra preta e cultivar a floresta, como vêm mostrando os arqueólogos (NEVES, Eduardo Góes. Sob os tempos do equinócio: oito mil anos de história na Amazônia Central. São Paulo: Ubu/Edusp, 2022).

A economia de mercado, trazida pelos ibéricos e depois por outros europeus, passou a explorar a floresta de forma que ultrapassa sua capacidade de suporte para desenvolver uma economia que visa a maximização dos lucros em tempo rápido. Durante muitos séculos, essa economia não foi capaz de destruir a floresta amazônica como aconteceu com a Mata Atlântica. Por que? Primeiro, porque a Mata Atlântica corria junto à zona costeira, em área que poderia ser ocupada pela agricultura, pastoreio e mineração. Foi na zona costeira que começou a colonização europeia. Mesmo assim, a economia de mercado levou séculos para destruir o bioma atlântico.

Na marcha para o interior, a economia de mercado encontrou os campos do sul, o cerrado, o pantanal e a caatinga como biomas que não ofereciam a resistência da Amazônia. Mas ela estava lentamente conhecendo a penetração do modo de vida ocidental. Ele vem ocupando a Grande Amazônia, mas a um custo: precisa fazer algumas concessões aos rios, à floresta e a seus habitantes. De qualquer forma, tais concessões implicam na poluição dos rios (sobretudo por mercúrio), no desmatamento e na aculturação dos povos nativos.

De um modo geral, entende-se a floresta amazônica como uniforme desde o interior até a zona costeira. Mas a diversidade dentro dessa massa verde é grande. Primeiramente, existe a floresta irrigada pela água doce com seus matizes e encraves. Os ecossistemas que formam esse grande bioma podem ser denominados de Amazônia Fluvial. Esclarecendo, é a floresta em que predomina a água doce.

Existe outra Amazônia junto à costa. É a Amazônia Marítima. Ela se desenvolve numa vasta área em que as marés avançam pela foz dos rios, criando um ambiente de água salobra que permite o desenvolvimento surpreendente de espécies vegetais genericamente conhecidas por mangue. Essas espécies adaptam-se a ambientes aquáticos que sofrem influência direta ou indireta das marés.

Exemplar de siribeira, Bragança. Foto do autor

Por estar a Amazônia na zona equatorial, as temperaturas são muito elevadas. A amplitude das marés é bastante grande. Em certos lugares, a diferença entre a maré baixa e a maré alta alcança 8 metros. Engenhos de açúcar instalados na zona costeira do Norte contavam com grandes reservatórios de água, que eram abertos quando a maré estava subindo e fechados com o ápice das marés. Na vazante, eles eram abertos para que as águas represadas movessem os engenhos. O terceiro elemento fundamental são as chuvas copiosas que se formam por força da alta evaporação sobre o oceano e a floresta.

A penetração da língua salina a muitos quilômetros rios acima e nas vastas planícies costeiras favoreceu a constituição da maior floresta de mangue do mundo, tanto em extensão (maior que a do oceano Índico), quanto em estatura e complexidade. Com boa vontade, podemos delimitar essa grande franja de manguezal entre o rio Oiapoque e a baía de São Marcos. Ela não conta com a mesma diversidade de espécies vegetais do Índico, mas é a mais extensa do mundo. Desde minha primeira viagem à Amazônia, em 1989, distingui a Amazônia Fluvial da Amazônia Marítima.

Cultura devorada pela natureza. Ilha de Marajó. Foto do autor

Desde o século XVII, a Amazônia Marítima encanta e assusta. O missionário capuchinho francês Claude d’Abeville, participando da tentativa de se criar uma colônia no Maranhão com o nome de França Equinocial (entre 1612 e 1615), teve sua atenção voltada para os manguezais, grafados como “appariturier”, palavra que mudou posteriormente para “paretuvier” e “palétuvier”, cujo significado é planta tropical anfíbia. Mas não só o exotismo dessas plantas chamou a atenção de D’Abbeville. Ele alertou também para os perigos que os bosques de mangue representavam à navegação: “Para além do cabo das Tartarugas, até o cabo das Árvores Secas, há somente bancos de areia e recifes que penetram mar adentro quatro a cinco léguas e às vezes até seis, sete, oito e dez, não sendo possível a ninguém se aproximar da terra nem embarcado, nem a nado ou a pé. Também entre os dois cabos se encontram bancos de areia e recifes, e, sem o conhecimento das duas passagens existentes, não há homem por mais destemido que se atreva a tentar a travessia. É o que concorre para exaltar a coragem dos maranhenses, os quais, sentindo-se em lugar tão seguro, fazem a guerra aos outros sem que ninguém ouse atacá-los (…) Por outro lado, do cabo de Tapuitapera, próximo ao Maranhão, até o rio  das Amazonas, há tantas ilhas ao longo da costa que se faz impossível chegar à terra firme; tanto mais quanto esta se acha coberta de certas árvores que dão o  nome de Apparituriers, cujos galhos se vergam ao tocarem o chão, criam raízes formando outras árvores que crescem e deitam novos galhos, os quais criam raízes e formam novas árvores; e de tal modo se entrelaçam árvores e raízes que parecem constituir uma só planta alastrando-se por toda parte. Quando outra coisa não houvesse, isso bastaria para tornar a costa inacessível a ponto de não se poder imaginar sem o ter visto. Somente um puro espírito, suscetível de penetrar através das coisas, ou um pássaro capaz de voar por cima delas, poderia atravessar esses baluartes erguidos por Deus e pela natureza em redor do país. Mas o acesso se torna tanto mais difícil quanto, nessas ilhas e sob os apparituriers, só se deparam charcos e areias movediças, nas quais a gente afunda até a cintura e mesmo até a cabeça e das quais uma vez atolado, não há força humana capaz de safar o sujeito. E acontece ainda que duas vezes ao dia, cobre a maré esses pântanos e areias movediças e passa por cima das raízes dos apparituriers erguidas além da superfície da terra, em muitos lugares à guisa de altas muralhas.” (História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão e terras circunvizinhas. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975).

Mangue vermelho em Soure, ilha de Marajó. Foto do autor

No capítulo da “Flora Brasiliensis” dedicado ao mangue vermelho, Karl Friedrich von Martius menciona o caso de Alonso Ojeda, registrado por Antonio de Herrera y Tordesillas em “Historia general de los hechos de los castellanos en las islas y tierra firme del Mar Oceano”, publicada em quatro volumes em Madri entre 1601 e 1615. Ojeda, “forte e destemido explorador, e seus setenta companheiros suportaram na floresta litoral até a margem de terra firme, enquanto se defendendo da perseguição dos índios, se ocultavam nos densos esconderijos das árvores de mangue, durante os trinta dias em que, pulando de um arco a outro dos ramos, através da lama profunda, vagou em torno delas e perdeu a metade dos companheiros, durante todo o tempo que levou para sair até o litoral firme.” 

Quem foge de indígenas dentro de um espesso manguezal, enfrenta dois perigos: a habilidade dos nativos e as armadilhas do manguezal. Ainda no século XIX (1883), um ofício do Barão de Tefé a Eusebio Paiva Legey Affonso Celso, instruindo-o no reconhecimento e levantamento da costa entre o Maranhão e o Pará, alerta: “Toda a costa do Maranhão até a baía Gurupy, e a do Pará até o canal de Bragança, é bordada de baixios que mais ou menos avançam para o mar e cujo limite deve ser determinado.” 

A respeito da Amazônia Marítima, o biólogo e fotógrafo Luciano Candisani lançou o “Amazônia Atlântica” (Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio Editorial Ltda, 2025), dedicado a essa floresta equatorial que sofre influência das marés. As fotografias sobre as plantas, o substrato (lamoso e arenoso), dos animais e das comunidades que vivem da coleta e da pesca são deslumbrantes. Noto apenas que o autor dedicou a maior parte das fotos do bosque ao mangue vermelho, que se destaca como a marca registrada do manguezal com suas ramificações caulinares. Apenas duas fotos mostram o mangue siribeira e o mangue branco.

Também essa floresta está ameaçada, sobretudo pela exploração de petróleo que o governo do Brasil anuncia na Margem Equatorial.