COP 30: O saber das mulheres da floresta em risco com a crise climática

Arlete Pantoja, 61 anos, moradora de Gurupá. Crédito: Divulgação

por Bruna Lima para CDC Revista

No Quilombo Gurupá-Miri, no Pará, no município de Gurupá, basta que a noite caia para que Arlete Pantoja faça o que aprendeu com seus pais e avós, observar. Aos 61 anos, guardiã de um conhecimento ancestral, ela sempre soube quando o inverno chegaria apenas pelo coaxar de um sapo ou quando o verão firmaria, pelo zunido incansável das cigarras. “Quando a flor do rabo-de-camaleão amanhecia cheia, já era certo, vinha chuva forte no mesmo dia”, conta.

Esses sinais, que estruturaram durante séculos a vida agrícola, espiritual e comunitária de povos amazônicos, começam a falhar. A mudança no clima tem alterado o comportamento de plantas e animais a ponto de desorientar a própria leitura do mundo. “Hoje o tempo não avisa mais”, diz Arlete. “Nem fizemos roça este ano, com medo do fogo se alastrar. A temperatura subiu demais. A floresta está diferente”.

O que ela descreve, com precisão sensorial, é também o que a ciência tem registrado com números duros, oscilações extremas de temperatura, perda de habitat, alterações nos ciclos de chuva, pressão atmosférica e um processo acelerado de desarranjo ecológico que atinge a Amazônia.

Enquanto Belém vive a COP 30, o mundo mira a floresta como potencial solução climática. Mas, como alertam especialistas, discutir clima na Amazônia sem escutar quem a lê há gerações é repetir a velha lógica de decisões tomadas longe de quem vive o impacto no corpo.

Para a pesquisadora Lene da Silva Andrade, doutoranda em Antropologia pela UFPA e mestra em Meteorologia, o que se fala de “saber popular do tempo” não é curiosidade folclórica, é uma tecnologia sensível de leitura ambiental.

“É uma inteligência que nasce do corpo, da escuta fina das águas, do toque na terra molhada, do cheiro da chuva que se aproxima”, explica. “As mulheres são centrais nisso porque convivem diariamente com as variações atmosféricas. Elas percebem quando o vento muda de humor, quando o calor rasga o dia, quando os ciclos desacertam”.

O aprendizado não acontece por aulas formais, mas pela prática nos roçados, nas casas de farinha, na travessia de igarapés, na divisão de tarefas que organiza o cotidiano. São as mulheres que decidem a hora de plantar, de queimar a roça, de torrar a mandioca, que interpretam o comportamento dos bichos e os sinais do céu.

Esse sistema observação articula florestas, humanos, encantados, águas, ciclos lunares, cheiros, ventos. Não é superstição, é ciência em outra linguagem.

“Andorinhas que chegavam sempre no mesmo mês agora se atrasam. Sapos que anunciavam o inverno simplesmente silenciam. Plantas florescem fora de época”, descreve o doutorando em Ciências Ambientais Andrey Souza, do Instituto de Geociências da UFPA.

Segundo ele, alterações na temperatura, intensidade das chuvas e qualidade da água agravadas por desmatamento, queimada e contaminação por mercúrio, afetam diretamente o comportamento de animais considerados bioindicadores. “Quando o habitat é perturbado, eles se deslocam, mudam seus ciclos ou deixam de exercer suas atividades. Isso rompe a previsibilidade”.

O impacto é existencial

“O clima deixa de ser parceiro. Os corpos que sempre sentiram o tempo passam a errar”, explica Lene. “Isso desorganiza o calendário agrícola, a pesca, a alimentação, e abala a autoestima dessas mulheres, porque toca o centro do que elas fazem e do que elas são. Não é só técnica, é identidade”, pontua.

A instabilidade dos sinais não acontece em um campo neutro. Ela se soma a um processo histórico de desvalorização dos conhecimentos tradicionais.

“Durante séculos, esses saberes foram tratados como menores ou não científicos”, explica Lene. “Quando o clima muda e certos sinais deixam de funcionar, isso intensifica a sensação de que são conhecimentos ultrapassados. Mas isso não é verdade. Eles continuam sendo fundamentais, só estão sendo pressionados por um clima em colapso”.

Arlete sente essa ruptura no dia a dia. “O tempo está desnorteado. As coisas que aprendi com meus pais não acontecem mais do mesmo jeito. A gente tem que inventar outro calendário”.

A COP frequentemente discute florestas em termos de carbono, de mercados e de metas globais. Mas os saberes que mantêm essas florestas vivas muitas vezes entram apenas como narrativa lateral.

“A COP 30 tem o dever de tratar mitigação e adaptação de forma séria, com transição energética, desmatamento zero e financiamento climático”, afirma Andrey. “Mas também precisa respeitar os alertas da ciência e proteger quem vive da floresta, porque eles são a floresta”.

Lene complementa, “quando se fala em clima, fala-se muito em produzir mais, crescer mais, inovar mais. Mas pouco se fala de quem percebe primeiro as mudanças. A COP 30, dentro da Amazônia, precisa escutar essas mulheres”.

Belém tem a responsabilidade de abrigar não só debates internacionais, mas também vozes que conhecem a floresta pelo cheiro, pelo vento e pelo canto dos sapos. Para que esses conhecimentos sobrevivam, e continuem sendo ferramenta de adaptação, é preciso mais do que registro. é preciso política pública.

Enquanto o mundo olha para o céu com satélites, radares e modelos climáticos, a Amazônia continua formando leitoras do tempo a partir de um outro tipo de tecnologia, o corpo. Um corpo que escuta, que sente, que interpreta.