Quando a cidade arde e a sociedade silencia: do fogo das queimadas ao ar que respiramos

Por Carlos Eduardo de Rezende

Escrevo este texto com a intenção de somar à reflexão iniciada pelo Prof.  Marcos Pedlowski, impulsionador deste blog, que tem exercido um papel fundamental ao abrir canais de diálogo entre a ciência e a sociedade. O motivo imediato é o episódio de queimada que vivenciamos ontem, um evento que me fez pensar que já estamos vivendo, de fato, o chamado “Piroceno”, a Era do Fogo. As consequências desse processo são muitas, complexas e, infelizmente, ainda pouco reconhecidas pela sociedade em geral.

No final da década de 1980, enquanto cursava o mestrado, participei de um cruzeiro oceanográfico a bordo do Navio de Pesquisa Victor Hensen, do Instituto Alfred Wegener, como parte de uma cooperação científica entre Brasil e Alemanha. A expedição percorreu a costa entre o Rio de Janeiro até a cidade de Recife, e teve como foco o estudo do aporte continental dos rios para o oceano, incluindo o nosso Rio Paraíba do Sul. Entre os diversos objetivos do projeto, estava prevista a investigação da dinâmica de poluentes metálicos na plataforma continental brasileira, com destaque para o mercúrio (Hg). Como desdobramento dessa iniciativa, em 1993, nos primeiros anos da UENF, publicamos o primeiro artigo científico sobre a presença de mercúrio na transição entre o Rio Paraíba do Sul e a Plataforma Continental da Bacia de Campos. Nesse estudo, evidenciamos um enriquecimento de 2 a 3 vezes nas concentrações de Hg na região estuarina do Rio Paraíba do Sul, em comparação com as áreas mais profundas da plataforma. O trabalho foi publicado na revista Marine Pollution Bulletin (Vol. 26, nº 4, pp. 220–222).

Esse enriquecimento de mercúrio observado na região estuarina estava associado, principalmente, a duas fontes de contaminação: as plantações de cana-de-açúcar, que na época faziam uso de compostos organomercuriais como agentes fungicidas {Cadernos de Saúde Pública Vol. 2(3): 359 – 372; 1986}, e as atividades de garimpo ao longo da bacia hidrográfica, nas quais o mercúrio (Hg) é utilizado para a complexação do ouro aluvionar. Em relação à agricultura, não disponho de informações atualizadas sobre a continuidade do uso desses agentes químicos nas lavouras de cana-de-açúcar. No entanto, no que se refere ao garimpo, posso afirmar que ainda hoje persistem atividades irregulares em diferentes trechos da bacia do Rio Paraíba do Sul, mantendo-se como uma fonte potencial de contaminação por mercúrio na região.

Embora minhas vindas frequentes a Campos tenham se iniciado ainda antes da inauguração oficial da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), em agosto de 1993, pois fiz parte do grupo inicial de instalação da universidade, algumas situações me chamaram atenção desde então. Era comum, no início das noites, perceber uma fuligem suspensa no ar e um odor bastante desagradável. Bom, o cheiro vinha do processamento da cana-de-açúcar, mais especificamente da vinhaça, ou, vinhoto, um subproduto cuja destinação, na época, incluía o despejo direto e irregular no rio ou o uso em um método chamado de ferti-irrigação. Já a fuligem, por sua vez, era resultado da queima da palha da cana, prática rotineira no período seco do ano e quase sempre realizada no início das noites. Ambos os fenômenos, o odor da vinhaça e a fuligem da queima, acabaram se tornando presenças constantes e indesejáveis nas minhas primeiras experiências com a cidade.

Em 1995, nasceu em Campos dos Goytacazes a minha filha mais nova. Foi também nessa época que comecei a perceber um problema que se repetia todos os anos durante o período mais seco, ela apresentava crises respiratórias que coincidiam com o início das queimadas nas áreas ao redor da cidade. A situação era tão visível que, como forma de alerta e até de desabafo, comecei a chamar aquele fenômeno de “black snow” ou “neve negra”, por causa das partículas escuras e cinzas que se espalhavam pelo ar e cobriam tudo, inclusive sujando nossas residências. Esse incômodo pessoal acabou despertando meu interesse científico sobre o tema. Anos depois, em 2012, publicamos um estudo que abordava exatamente esse tipo de prática, causada pelas queimadas e geravam essas partículas finas resultantes da queima incompleta de biomassa vegetal, denominado carbono negro (Nature Geoscience, 5: 618–622).

Historicamente, o uso do fogo foi fundamental para a sobrevivência humana, desde o preparo de alimentos até o manejo de terras. No entanto, a prática descontrolada de queimadas vem causando sérios impactos ambientais e à saúde pública. O carbono negro é uma forma de carbono extremamente resistente à degradação e, quando inalado, pode agravar doenças respiratórias e trazer outros efeitos adversos ao organismo. Hoje sabemos que a “neve negra” de Campos dos Goytacazes não é apenas um incômodo visual, mas um sinal claro de um problema ambiental com consequências reais para a saúde das pessoas.

Material particulado, a neve negra, cobre calçada em Campos dos Goytacazes

Ontem, dia 21 de junho de 2025, tudo isso voltou com muita intensidade e me fez fazer uma viagem ao passado quando cheguei a Campos dos Goytacazes. Mais uma vez me vi refletindo sobre o motivo pelo qual as poucas usinas que ainda operam nesta cidade continuam utilizando uma prática quase medieval como a queimada da palha da cana assim como a prática da queimada nas plantações de cana-de-açúcar. Isso acontece mesmo diante de tantas evidências científicas que mostram, de forma inequívoca, os danos causados à saúde humana e ao ambiente. Além da fumaça que se espalha, transformando o ar em um agente nocivo, a cidade e nossas casas ficam cobertas por sujeira, como se fôssemos obrigados a conviver com essa “neve negra” ano após ano. Os prejuízos não param por aí. As queimadas também trazem impactos negativos à fertilidade dos solos e contribuem para outros desequilíbrios ambientais. O mais desagradável é saber que não há qualquer justificativa plausível para a manutenção dessa prática, já que existem tecnologias acessíveis, e, Campos dos Goytacazes tem o segundo polo universitário do estado e parece que o município desconhece totalmente. As instituições aqui presentes podem com toda certeza colaborar com melhores práticas que serão eficazes para recuperar a qualidade do solo e eliminar, por completo, o impacto direto e indireto sobre o ambiente e sobre a saúde da população.

A essa altura do texto, algumas pessoas podem estar se perguntando das conexões entre as práticas do garimpo, uso de organomercuriais no passado e as queimadas. Pois bem, hoje sabemos que parte do Hg usado no passado permanece nos ecossistemas locais, um tipo de memória de práticas passadas, assim como as práticas das queimadas,  enquanto a mineração de ouro ainda aparece esporadicamente. O Hg é um elemento que possui baixa pressão de vapor, portanto, com estas queimadas ele é reemitido para a atmosfera, podendo ficar meses ali disponível.  Além disso, embora em menor escala, a mineração de ouro ainda ocorre de forma esporádica na região. O mercúrio é um elemento químico com baixa pressão de vapor, o que significa que, quando há queimadas, ele será liberado novamente para a atmosfera. Uma vez no ar, o mercúrio pode permanecer circulando por meses, antes de se depositar novamente no solo ou na água, muitas vezes através da chuva e ser incorporado a partir do nosso sistema respiratório. Em 2002, realizamos um estudo para avaliar justamente essa deposição de mercúrio nas chuvas que caem sobre Campos dos Goytacazes e outras cidades do Estado do Rio de Janeiro. Os resultados, publicados no Journal of the Brazilian Chemical Society (Vol. 13, nº 2, p. 165-169), mostraram que as concentrações de mercúrio em Campos, em vários momentos, se aproximavam dos níveis encontrados em áreas mais urbanizadas e industrializadas. Além disso, observamos uma tendência sazonal muito clara, e com aumento das concentrações deste elemento durante o outono e o inverno exatamente no período em que se intensificam à queima das plantações da cana-de-açúcar. Por isso, o episódio de ontem (21/06/2025) representa a repetição de uma prática que já deveria ter sido definitivamente banida, tanto em Campos dos Goytacazes quanto em todo o Norte e Noroeste Fluminense.

Nas considerações finais que faço destaco que toda atividade agrícola que receba qualquer tipo de incentivo público (ex.:Federal, Estadual ou Municipal) deve operar com base em práticas sustentáveis, socialmente responsáveis e ambientalmente referenciadas. Não é aceitável que políticas públicas ou discursos empresariais tentem mascarar os impactos dessa atividade com slogans publicitários como “O Agro é Pop“, quando, na realidade, os danos à saúde da população, ao ambiente urbano e ao meio rural são evidentes e recorrentes. É importante reforçar que esta não é uma posição contrária à agricultura enquanto atividade econômica essencial. Trata-se, sim, de uma defesa clara e fundamentada da adoção de práticas sustentáveis, técnicas de manejo responsável e políticas de fiscalização efetiva. Ferramentas para isso existem e estão amplamente disponíveis. O que falta, infelizmente, é a vontade política e o compromisso de certos setores em romper com práticas que, ano após ano, têm trazido prejuízos socioambientais a nossa cidade e a toda a região.


Carlos Eduardo de Rezende é professor titular do Laboratório de Ciências Ambientais (LCA) do Centro de Biociências e Biotecnologia (CBB) da Uenf, e Pesquisador 1A do CNPq.