Em 2024, o Brasil arrecadou R$ 108,2 bilhões das chamadas “rendas do petróleo” provenientes dos royalties, participações especiais e bônus de assinatura, sendo o Pré-sal responsável por 79% desse montante.
No entanto, apenas 0,16% desse total (ou R$ 168,33 milhões) foram efetivamente direcionados a ações ambientais e climáticas.
O dado integra a Nota Técnica “Renda do petróleo: desafios, contradições e caminhos para a superação da era fóssil”, elaborada pelo Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), que analisa como a renda petroleira tem sido gerida pelo país e mostra o abismo entre o potencial desse recurso e sua real aplicação.
O estudo revela que, apesar da arrecadação vinda com o petróleo, critérios de partilha obsoletos, entraves jurídicos e a falta de regulamentação efetiva, impedem uma distribuição estratégica dessa renda.
Na prática, os recursos do Pré-Sal ainda não chegaram à população da forma como foram prometidos, especialmente àqueles que mais dependem de políticas públicas para enfrentar a pobreza.
“Enquanto bilhões deixam de ser usados, o Brasil adia investimentos fundamentais em educação, saúde e enfrentamento às mudanças climáticas”, disse Alessandra Cardoso, assessora política do Inesc e autora da Nota Técnica.
Concentração geográfica
Segundo o estudo, a distribuição atual da renda do petróleo evidencia “desigualdades regionais gritantes”. Só o estado do Rio de Janeiro recebe 82,6% da renda do petróleo destinada a todos os estados.
A concentração da renda também ocorre no nível municipal: cinco cidades fluminenses — Maricá, Macaé, Niterói, Saquarema e Campos dos Goytacazes — receberam R$ 10,6 bilhões em royalties, o equivalente a 59% dos R$ 18 bilhões transferidos a todos os municípios cariocas.
Segundo o estudo, essa distribuição tem origem nos critérios legais estabelecidos no século passado, que se basearam na proximidade geográfica dos entes federativos em relação aos campos de produção.
“Esta extrema concentração colide frontalmente com as promessas de uso da renda do petróleo para redução das desigualdades sociais no país, potencializa as desigualdades regionais e dificulta, ainda mais, a construção de uma trajetória de desenvolvimento que supere a dependência fóssil”, explica Alessandra.
Renda judicializada
A Lei nº 12.734, aprovada em 2012, prevê uma distribuição mais igualitária da renda do petróleo, garantindo 49% da renda da partilha entre todos os estados e municípios, com base nos critérios do FPE (Fundo de Participação dos Estado) e do FPM (Fundo de Participação dos Municípios).
Contudo, o Inesc aponta que a medida foi contestada pelos estados “produtores” e, desde então, essa partilha mais democrática encontra-se suspensa. Segundo o Instituto, cerca de R$ 8,7 bilhões deixaram de ser repassados a outras regiões do Brasil por causa deste entrave judicial em 2024.
Outro entrave jurídico acontece em torno da Lei nº 12.858/2013, que buscou direcionar a renda dos entes subnacionais às políticas de educação (75%) e saúde (25%) como resposta às manifestações de 2013 (jornadas de junho).
Com a judicialização desta Lei, o Inesc aponta que não existe hoje uma obrigação legal de destinação de qualquer parcela da renda distribuída aos entes subnacionais à educação e à saúde.
Dinheiro represado
Enquanto os entes federativos não chegam a um acordo sobre a distribuição e uso da renda do petróleo, a União enfrenta obstáculos para o uso estratégico dessa renda, avalia o Inesc.
Dos R$ 48,5 bilhões recebidos pela União com o petróleo e gás, mais de R$ 20 bilhões não foram sequer executados em 2024.
Segundo Alessandra, a baixa execução se deve, em grande parte, à ausência de regulamentação do Fundo Social, instrumento criado em 2010 para financiar políticas estratégicas e redistributivas.
Ela destaca a ausência de estrutura de governança e política de investimentos que levam a um uso pouco transparente, baseado em decisões circunstanciais e de cunho político, dos recursos advindos da capitalização do Fundo – que alcançam entre R$ 15 e 20 bilhões anuais.
Em 2024, foram usados R$ 20 bilhões para socorro a grandes empresas afetadas pelas enchentes do Rio Grande do Sul, e, em 2025, o Governo anunciou que serão usados outros R$ 20 bilhões para financiar o Minha Casa Minha Vida.
“São gastos importantes e necessários, mas não resultam de uma visão estratégica, planejada e transparente acerca do destino dessa renda, cuja natureza é distinta e deve estar a serviço de uma trajetória de construção de uma economia e sociedade mais justa e livre do petróleo”, disse ela.
No que se refere às políticas sociais, o estudo aponta que a área da educação foi a que mais recebeu a parcela executada pela União no ano passado, com R$ 18,2 bilhões autorizados, dos quais R$ 17,9 bilhões, efetivamente utilizados. Já a saúde recebeu autorização e executou R$ 700 milhões em 2024.
Meio ambiente
Além do modesto percentual de 0,16% da renda do petróleo ter sido aplicado em políticas ambientais e climáticas no ano passado, o relatório do Inesc revela que o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação recebeu 1% dos recursos, quase totalmente direcionados ao setor de petróleo, em detrimento da pesquisa em energias renováveis ou tecnologias limpas.
“Soma-se isso aos atuais critérios do Novo Arcabouço Fiscal, que dificultam que a renda do petróleo possa ser aplicada em despesas primárias para investimentos em adaptação climática, gestão de riscos, ciência e tecnologia, que são essenciais para que o país possa enfrentar os extremos climáticos e construir saídas de médio prazo para a dependência em relação ao petróleo”, diz Alessandra.
Neste cenário, a Nota Técnica do Inesc traz sugestões como:
- Superar a judicialização da Lei 12.734/2012 para permitir uma distribuição mais equânime entre os entes federativos;
- Restabelecer a obrigatoriedade de aplicação em educação e saúde nos estados e municípios, como previsto na Lei 12.858/2013;
- Regulamentar de forma clara o Fundo Social, destinando ao menos 20% dos recursos para ações climáticas;
- Retirar a renda do petróleo das amarras do Novo Arcabouço Fiscal, para permitir sua utilização em políticas públicas de enfrentamento às mudanças climáticas e combate à desigualdade.
“É urgente transformar essa renda em um instrumento de justiça social e climática.”, conclui Alessandra.
Para mais informações, acesse o estudo neste link.