Rios das Ostras e São João

Por Arthur Soffiati

Rio das Ostras comprimido pela urbanização

O rio das Ostras “Caminho das ostras”. O rio principal e seus poucos afluentes correm em meio a planícies aluviais holocênicas que eles próprios formaram, carreando sedimentos das partes mais altas para as partes baixas. Sua bacia situa-se quase que inteiramente em terrenos de planície. A do rio São João está separada da do pequeno rio Una por uma extensa restinga holocênica e da do rio das Ostras por uma restinga pleistocênica. As suas planícies constituíram-se nos interstícios da zona cristalina pré-cambriana, que mergulha no mar ou que por ele é afogada. Alguns afloramentos marinhos dão origem a ilhas na altura de Macaé e do Cabo de Búzios (MARTIN, Louis; SUGUIO, Kenitiro; DOMINGUEZ, José Maria Landim; e FLEXOR, Jean-Marie. Op. cit.).

Dieter Muehe e Enise Valentini chamam atenção para a tendência da costa, a partir da foz do rio Macaé, em formar baías. De fato, percebem-se claramente as reentrâncias e saliências costeiras entre a desembocadura do Macaé e o cabo de Búzios. Os dois autores esclarecem que, nesse trecho da costa, há longos arcos de praia interrompidos por afloramentos do embasamento cristalino. As areias grossas e muito grossas encontradas na curva costeira entre rio das Ostras e Búzios testemunham a retrogradação (recuo) da planície costeira. Sobre ela, deposita-se uma lama proveniente dos rios Paraíba do Sul, Macaé e São João. O mais impressionante é que garrafas lançadas das plataformas da Petrobrás alcançam o trecho Cabo de Búzios-Cabo Frio, levando Saavedra e Muehe a encontrar influência das descargas sólidas do rio Paraíba do Sul em ponto muito distante de seu desaguadouro. O deslocamento em direção ao sul é, todavia, uma tendência preferencial. No inverno, o transporte residual se volta para o norte (MUEHE, Dieter e VALENTINI, Enise. O litoral do estado do Rio de Janeiro: uma caracterização físico-ambiental. Rio de Janeiro: Fundação de Estudos do Mar, 1998; e SAAVEDRA, L. e MUEHE, D. “Innsershelf morphology and sediment distribution in front of Cape-Frio – Cape Buzios embayment”. JOPS-I Workshop. Niterói: Brazilian German Victor Hensen Programme Joint Oceanographic Projects, 1993). Este aspecto é de considerável relevância para o estudo dos manguezais deste trecho da região, pois a origem deles pode estar relacionada a propágulos (sementes) colonos despregados de árvores-mãe do grande manguezal do rio Paraíba do Sul e dispersos por toda a área de influência do maior rio do estado.

Maximiliano de Wied-Neuwied registra uma exuberante floresta que se estendia do norte do cabo de Búzios ao rio São João, certamente uma extensa mata de restinga ainda existente nos anos de 1950 e 1960. O autor deste escrito foi testemunha ocular de tal vigor naqueles anos. Na foz do rio, o naturalista anotou que ele tinha trezentos a quatrocentos passos de largura, sendo atravessado de canoa, enquanto, mais acima, os animais podiam cruzá-lo a vau. Na sua avaliação, ele era navegável até certo ponto. Sua foz destacava-se por uma língua arenosa entre o rio e o mar. Ao chegar ao rio das Ostras, o naturalista alemão considerou-o um riacho de águas claras com margens aprazíveis, reclamando da falta de pontes nele como no São João. Entre os dois vales, o naturalista notou um altivo monte a separá-los, registrando-o com o nome de São João (WIED-NEUWIED, Maximiliano de. Viagem ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1989). Trata-se de formação intrusiva alcalina de origem cretácea. 

Descrição mais minuciosa do rio não será traçada por mais nenhum estudioso até o século XX. No ano de 1818, Saint-Hilaire segue os passos de Maximiliano, que percorrera o roteiro da costa em 1815. Logo após ter deixado Campos Novos, rumo à Barra de São João, ele atravessa a majestosa mata de restinga que extasiou o príncipe de Wied e exclama: “Nessa mata o terreno é arenoso; nela não se veem dessas árvores enormes que inspiram uma espécie de respeito; mas a vegetação, sem ter a magnificência comum aos lugares de terra boa, não é, todavia, desprovida de beleza. As árvores apenas têm tamanho médio, mas são muito próximas umas das outras e extremamente variadas; numerosas palmeiras produzem frequentemente os mais felizes contrastes; de todos os lados a Bougainvillea brasilisensis mistura seus longos cachos purpurinos à folhagem das plantas que a cercam; a Bromelia e Tillandsia de folhas rijas e uniformes cobrem, no meio dos grandes vegetais, vastos intervalos. Nesta mata não fui presa dessa espécie de temor religioso que causam ordinariamente as florestas virgens; aí gozei mais calmamente o prazer de admirar. O caminho é arenoso mas perfeitamente firme; não se vê nele nenhuma erva e assemelha-se às aleias desses jardins ingleses onde há o cuidado de, sem forçar a natureza, acrescentar algum conforto e gozo além do que concerne à vista.” (SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelo Distrito dos Diamantes e Litoral do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1974).

F:\São João 3.jpg
Lagoa de Juturnaíba, na bacia do rio São João. Foto DNOS

Pela descrição, não há dúvida de que Saint-Hilaire atravessa uma área de restinga. O solo é arenoso. Os gêneros e a espécie citada ocorrem em restinga. Todavia, o naturalista francês revela considerável admiração por uma formação vegetal nativa desprezada por ele em outros trechos da costa brasileira como insignificante. Mas, como ele cruza uma formação vegetal de restinga que se assemelha, pelas árvores, à mata atlântica, seu olhar se volta para ela com interesse. Não com a reverência religiosa de um Martius ou de um Burmeister, porém com o prazer de quem cruza um jardim inglês, caracterizado, nos séculos XVIII e XIX, por uma certa displicência que contratava com o rigor geométrico dos jardins franceses (ver THOMAS, Keith. O Homem e o Mundo Natural. São Paulo: Companhia das Letras, 1988).

Às margens do rio São João, o naturalista francês não deixou de anotar em seu diário o traço percebido por outros viajantes: a curva que o rio descreve antes de se atirar no oceano e a serra de São João. Seus apontamentos se referem à navegabilidade do curso d’água e à perspectiva de um futuro promissor para o povoado. Depois de cruzá-lo, ele seguiu em direção ao rio das Ostras e a Macaé. Atravessou novamente uma restinga, esta semelhante às charnecas europeias, constituída por arbustos interrompidos por poças d’água. Como não podia deixar de ser, a paisagem europeia serve sempre como referência aos naturalistas vindos do velho continente. A maré alta impediu que a expedição de Saint-Hilaire o cruzasse no mesmo dia. Em seu diário, anota ele que o rio não teria mais que duas léguas de curso, conquanto dispondo de embocadura para a entrada de pequenas embarcações. O antigo rio Leripe, que deriva do tupi reri, ostra, e talvez pe, caminho (DIAS, Antônio Gonçalves. Dicionário da Língua Tupi. Rio de Janeiro: São José, 1965; BARBOSA, A. Lemos. Pequeno Vocabulário Tupi-Português. Rio de Janeiro: São José, 1967; e TIBIRICÁ, Luiz Caldas. Dicionário Tupi-Português com Esboço de Gramática de Tupi Antigo. São Paulo: Traço, 1984) tem seu nome confirmado pelo botânico, que encontra este molusco em profusão na sua foz. Daí em diante, seus passos conduzem-no a Macaé.

F:\São João 5.jpg
Rio São João canalizado. Foto DNOS

Um viajante inglês sem a formação científica do príncipe alemão e do naturalista francês, conheceu melhor que ambos o rio São João, pois que o navegou da foz até o rio Dourado, um de seus afluentes, por onde entrou à procura de uma propriedade para adquirir. Trata-se de John Luccock Na foz, ele percebeu, melhor que os outros, tratar-se a elevação rochosa ali existente de antiga ilha ligada ao continente por uma língua arenosa, no que se denomina tômbolo. Salientou a dificuldade de vadear a barra com embarcações. De canoa, ele e seu grupo empreenderam uma excursão rio acima, informando sobre sua nascente, que se situa nas montanhas de Canudos, aos pés das quais existiria um belo lago com sete milhas de comprimento e três de largura. Com toda certeza, alude a lagoa de Juturnaíba. Dela até a foz, o rio corria em extraordinários meandros por uma dilatada planície, o que o tornava navegável da desembocadura ao lago num curso de quarenta milhas. Descontadas as sinuosidades, contudo, supunha o viajante que esta distância não distaria mais de vinte milhas do mar. O desejo de encurtar o trajeto do rio levaria, mais de cem anos depois da excursão de Luccock, os engenheiros do Departamento Nacional de Obras e Saneamento a “consertar” as tortuosidades do vale e de seus tributários, como o rio Dourado, singrado pelo viajante inglês numa extensão de quatro milhas, quando pretendia avançar sete. Ele não contém uma reclamação contra os brasileiros pelo abandono da via navegável.

Ao retornar, volta seus olhos com mais vagar para uma notável elevação que suspeita seja um antigo vulcão desativado, mas logo a abandona. Referia-se ele ao monte de São João, já observado antes por seus antecessores europeus. De São João a Macaé, Luccock não faz registro significativo da costa, omitindo o rio das Ostras (LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e Partes Meridionais do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975). Nenhum dos autores mencionados até aqui escreve uma linha sequer sobre os manguezais dos rios das Ostras e São João, exceto Sait-Hilaire. 

A longa permanência de Luccock no Brasil estendeu-se de 1808 a 1818, com pequenas interrupções. Em 1832, um ilustre conterrâneo seu, Charles Darwin, empreendeu uma excursão meteórica a Macaé em companhia de um inglês que lá possuía uma propriedade. Atravessou matas costeiras, topou com lagoas, fez coletas de animais, surpreendeu-se com a biodiversidade e admirou a vida patriarcal brasileira em sua tranquilidade, não fosse a escravização de africanos e descendentes. Todavia, nenhuma informação mais precisa ele fornece em seu diário de viagem (DARWIN, Charles R. Viagem ao Redor do Mundo, 2 vols. Rio de Janeiro: Sociedade Editora Gráfica, s/d).

Num relatório que se tornou verdadeiro marco no conhecimento das planícies fluminenses, Hildebrando Araujo Góes informa que o rio das Ostras é formado pelos rios Iriri e Jundiá, ambos nascendo nas serras do Iriri e do Berta e formando as duas o divisor de águas das bacias da lagoa de Imboacica e do rio das Ostras. Depois de cruzar o brejo do Saco Grande até o Poço do Boi, os dois rios formam o rio das Ostras. Para o Brejo do Saco Grande também confluía o rio Maurício. Depois de formado, o rio das Ostras percorria uma extensão de 17 quilômetros até lançar-se ao mar. Quanto ao rio São João, o maior da planície de Araruama, Góes toma por base, para sua descrição, o relatório de Saturnino Braga (GÓES, Hildebrando de Araujo. O Saneamento da Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: s/e, 1934). 

Na cartografia, os dois rios figuram desde o século XVIII. Num mapa da baixada fluminense de autor anônimo datado de 1747, publicado por Lamego, o rio São João figura volumoso descendo da grande Serra do Mar e sobrepujando o rio Macaé (LAMEGO, Alberto Ribeiro. O Homem e o Brejo. Rio de Janeiro: Conselho Nacional de Geografia, 1945). Vinte anos depois, Manoel Vieira Leão estampa, em sua “Carta Topográfica da Capitania do Rio de Janeiro”, os rios das Ostras e São João, este segundo com uma impressionante riqueza de detalhes, registrando seus afluente de ambas as margens e a lagoa de Juturnaíba (LEÃO, Manoel Vieira. Carta Cartográfica da Capitania do Rio de Janeiro feita por ordem do Conde de Cunha, Capitão General e Vice-Rei do Estado do Brasil. Rio de Janeiro: 1867). Vemos os dois também na Carta Corográfica da Província do Rio de Janeiro, obra coletiva sob a presidência do Brigadeiro João Paulo dos Santos Barreto (BARRETO, João Paulo dos Santos. Carta Corográfica da Província do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 1839). Por fim, mencione-se o monumental trabalho cartográfico de Bellegarde e Niemeyer, publicado em 1865, em que os rios das Ostras e São João aparecem minuciosamente traçados (BELLEGARDE, Pedro d’Alcantara e NIEMEYER, Conrado Jacob de. Nova Carta Corográfica da Província do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Litografia Imperial, 1865).